LOUCURA EM & POR CRISTO

tradução de monja Rebeca (Pereira)

Um louco por Cristo não busca a estima ou o amor das pessoas; ele nem sequer se importa em deixar uma boa lembrança de si mesmo entre elas. Esse princípio fundamental foi a fonte da força e da coragem demonstradas pelos loucos por Cristo, quando trilharam o doloroso caminho do exílio e se opuseram ao mal e à injustiça, independentemente de sua origem ou do respeito ou posição social daqueles que os cometeram.

Leroy Bolier, um destacado especialista francês em assuntos relacionado à Rússia em geral, fez uma observação muito verdadeira: “Os russos são uma das poucas pessoas que amam o que constitui a própria essência do Cristianismo: a cruz. Os russos não se esqueceram de como valorizar o sofrimento, percebem seu poder, sentem a eficácia da redenção e conhecem o sabor de sua amarga doçura”.

A loucura por Cristo (yurodstvo) nada mais é do que uma das formas, uma das manifestações desse amor pela cruz, como observado por Leroy Bolier. No âmago desse podvig* (um dos maiores poderes humanos) está um sentimento de terrível culpa diante de Deus dentro da alma, que a impede de aproveitar todos os confortos terrenos e a impele a sofrer e ser crucificada com Cristo.

A essência dessa façanha está na aceitação voluntária de humilhações e insultos para atingir o ápice da humildade, mansidão e bondade de coração e, com isso, cultivar o amor até mesmo pelos inimigos e perseguidores. É uma luta de vida ou morte não apenas com o pecado, mas com a raiz do pecado – o orgulho em todas as suas manifestações secretas. Um tolo por Cristo (yurodivy) está determinado a seguir o Cristo crucificado e a viver completamente afastado de todos os confortos terrenos. Mas, ao mesmo tempo, ele está ciente de que tal comportamento ameaça-lhe a reputação de santo entre o povo e contribui ao fortalecimento de seu amor-próprio e o aumento seu orgulho como um dos eleitos de Deus – que é uma das pedras mais perigosas na luta pela santidade. Para não ser tomado por um santo, um tolo por Cristo rejeita o aspecto exterior da dignidade e da serenidade que inspira respeito e prefere parecer uma criatura miserável e fraca, merecedora de zombaria e até mesmo de violência. Privações às quais se submetem, seus heroicos, quase sobre-humanos esforços ascéticos – tudo isso deve parecer desprovido de qualquer valor e evocar apenas desprezo. Em outras palavras, é uma negação completa da dignidade humana e até mesmo de qualquer valor espiritual do próprio ser – humildade elevada a um grau heroico e, às vezes, como pode parecer superficialmente, caindo ao extremo.

Mas no coração de um louco por Cristo vive a memória da Cruz e do Crucificado, os tapas em Seu rosto, o ser cuspido e flagelado - tudo isso o encoraja a qualquer momento a suportar qualquer injúria e opressão por amor a Cristo.

Assim, por exemplo, alguns loucos por Cristo se consideravam livres até dos compromissos mais elementares com a sociedade humana, de seus costumes e tradições, a fim de desafiá-la. Não apenas apresentavam como evidência de sua negação sua nudez quase total e imundície física,
mas até mesmo aparências externas de imoralidade (isso acontecia até mesmo com aquelas pessoascuja santidade era oficialmente confirmada pela canonização).

Um louco por Cristo não busca de forma alguma a estima ou o amor das pessoas; ele nem mesmo se importa em deixar uma boa lembrança de si mesmo entre as pessoas. Este princípio fundamental foi a fonte da força e da coragem demonstradas pelos loucos por Cristo, quando seguiram o doloroso caminho do exílio e se opuseram ao mal e à injustiça, independentemente de sua origem ou do respeito ou posição social

daqueles que os cometeram. O Professor Fedotov apresentou um plano específico, que nos ajuda a compreender melhor os vários aspectos que compõem este aparentemente paradoxal podvig:

1. O desafio ascético à vaidade, que é sempre perigoso para o ascetismo monástico. Nesse sentido, a loucura por Cristo é uma forma fingida de loucura e imoralidade com o propósito de ser injuriado pelas pessoas.

2. Revelar as contradições entre a profunda verdade cristã e o senso comum superficial e a lei moral, com o objetivo de se expor à zombaria do mundo. (1 Coríntios 1-4)

3. Servir ao mundo por meio de um tipo peculiar de pregação, proferida não por palavras ou atos, mas pelo poder do Espírito e pela autoridade espiritual da pessoa, muitas vezes investida com o dom de profecia.

O dom da profecia é atribuído a quase todos os loucos por Cristo. A iluminação espiritual e um senso de razão mais elevado tornam-se as recompensas por desafiar os sentidos humanos, assim como o dom da cura está quase sempre conectado ao ascetismo do corpo e à tomada de controle sobre a própria carne.

O primeiro e o terceiro aspectos da loucura por Cristo são podvig, serviço e trabalho árduo; eles têm implicações espirituais e práticas. O segundo aspecto fornece a expressão direta das necessidades religiosas. Há uma contradição viva entre o primeiro e o terceiro aspectos. A opressão ascética do próprio orgulho é alcançada ao custo de expor outras pessoas à tentação e ao pecado da condenação, ou mesmo à crueldade. Santo André de Constantinopla implorou a Deus que perdoasse aqueles que ele havia provocado a persegui-lo. Qualquer ato para a salvação das pessoas evoca gratidão, respeito e, assim, elimina o propósito ascético da loucura por Cristo. É por isso que a vida de um louco por Cristo é uma oscilação constante entre atos de salvação moral de pessoas e atos de zombaria imoral. Na Rússia, a loucura por Cristo foi dominada no início pelo primeiro lado, ou ascético; mas, no século XVI, era sem dúvida o terceiro aspecto – o serviço social – que era dominante.

Costuma-se acreditar que o podvig da loucura por Cristo é uma vocação exclusiva da Igreja Russa. Essa opinião, no entanto, contém um exagero da verdade. A Igreja Grega venera seis loucos por Cristo. As vidas de dois deles – São Simeão (século VI) e Santo André (século IX) – eram muito extensas e interessantes, e eram conhecidas na Rússia Antiga. Nossos ancestrais amavam especialmente a Vida de Santo André pelas revelações escatológicas que ela continha. E a amada Festa da Proteção da Mãe de Deus tornou o "Santo de Constantinopla" próximo de todos na Santa Rússia. De fato, foi Santo André quem, durante a Divina Liturgia em Constantinopla, teve uma visão da Mãe de Deus cobrindo o mundo com Seu manto – em homenagem à qual a Festa da Proteção da Mãe de Deus é celebrada em 1º de outubro.

Por outro lado, deve-se ressaltar que essa variedade de ascetas chegou à Rússia não diretamente de Bizâncio, mas de forma bastante inesperada, de forma indireta, através do Ocidente, e penetrou pela primeira vez em Novgorod. É interessante notar que o primeiro santo tolo por Cristo na Rússia, Prokopy Ustyuzhsky (1302) – de acordo com sua Vida, composta no século XVI, era de

origem alemã, “do Ocidente, da língua latina e das terras germânicas”. O podvig da tolice por Cristo não era conhecido na experiência espiritual russa até o século XIV. Havia apenas formas temporárias e transitórias de ascetas, como, por exemplo, quando São Teodósio das Cavernas de Kiev usava vestes rasgadas, ou Santo Isaac das Cavernas de Kiev fingia ser um tolo na frente de seus companheiros monges para evocar sua zombaria. Somente a partir do século XIV a loucura por Cristo se tornou uma forma original de serviço a Deus, para a glória de Deus e da sociedade. Atingiu seu ápice no século XVI. Os loucos por Cristo eram considerados na época, em consonância com os príncipes santos, como lutadores pelo triunfo da verdade de Cristo na vida pública. Após o século XVI, iniciou-se um declínio na loucura por Cristo, mas ela nunca desapareceu completamente das páginas da história da experiência espiritual russa. A partir do século XVIII, a Igreja não mais reconheceu ou abençoou essa forma única de podvig espiritual.*

* No século XX, a Igreja Ortodoxa Russa canonizou dois loucos por Cristo: a Beata Xênia de São Petersburgo e o Bem-aventurado Alexis de Yelnat. (Ed.)

É importante notar que o início da loucura por Cristo correspondeu à época em que a santidade dos príncipes como representantes dos leigos começou a declinar. Isso não é uma coincidência acidental. Novos tempos exigiam novas formas de santidade por parte dos leigos. O louco por Cristo tornou-se o sucessor dos príncipes santos em questões de serviço ao povo.

Mesmo que a loucura por Cristo fosse de origem ocidental, em solo russo ela adquiriu um desenvolvimento sem precedentes. Pode-se dizer sem exagero que essa maneira de servir a Deus tocou as cordas mais profundas da alma russa e se encaixou perfeitamente na visão do povo russo sobre a vida religiosa. Viajantes estrangeiros que visitaram a Rússia no século XVI relataram sobre os loucos por Cristo, descrevendo-os como "pessoas estranhas vagando pelas ruas com cabelos soltos, uma corrente no pescoço, sem roupas exceto trapos de linho na cintura". E mais: "Esses loucos, honrados comoprofetas, podiam tirar das lojas o que quisessem, e os comerciantes lhes agradeciam sem exigir nenhum pagamento". Isso nos permite concluir que havia muitos loucos por Cristo em Moscou no século XVI e eles representavam uma classe especial da sociedade. Observando isso, Fedotov continua:

“O respeito geral por eles, com exceção, é claro, de alguns casos isolados de zombaria por parte de crianças ou de pessoas que faziam bagunça, as correntes usadas para se exibir, transformaram completamente o significado da antiga loucura cristã por Cristo. Muito menos era uma façanha de humildade. Naquela época, a loucura por Cristo era uma forma de serviço profético combinada com uma forma extrema de ascetismo. E não era o mundo que ultrajava os abençoados, mas os abençoados ultrajavam o mundo.”

O declínio geral da vida espiritual a partir da segunda metade do século XVI não poderia ter ignorado a loucura por Cristo. No século XVII, havia menos loucos por Cristo e eles não eram canonizados pela Igreja. A loucura por Cristo, assim como a santidade monástica, localizou-se na parte norte do país, retornando à sua terra natal, Novgorod. Vologda, Totyma, Kargopol, Arkhangelsk, Vyatka – essas foram as cidades dos últimos santos loucos por Cristo. Em Moscou, a Igreja e as autoridades estatais começaram a tratar os loucos por Cristo com suspeita. Perceberam entre eles a presença de pseudo-loucos por Cristo, pessoas realmente loucas ou simplesmente impostores. Houve uma depreciação das festas da Igreja em homenagem a santos já canonizados (São Basílio). O Sínodo parou completamente de canonizar loucos por Cristo.

Tendo perdido o apoio da intelectualidade da Igreja, perseguido pela polícia, a loucura por Cristo recuou entre o povo comum e passou por um processo de degeneração. No entanto, o povo apesar desse declínio óbvio continuou a vê-los como representantes genuínos do heroísmo agradável a Deus. Assim, “a loucura por Cristo permaneceu um dos fenômenos mais característicos da religiosidade popular russa; frequentemente estava fora da Igreja, misturando-se com seitas hostis à Igreja. Embora, na maioria dos casos, permanecesse fiel à Igreja, desde que as autoridades eclesiásticas não restringissem suas atividades ou tentassem organizar sua vida e poder à sua maneira, desconsiderando qualquer tipo de disciplina social e eclesiástica”. Assim, um individualismo absoluto constitui uma das características mais distintivas dessa tendência espiritual paradoxal.

Como vimos, o primeiro louco por Cristo conhecido na Rússia foi Procópio, que havia chegado da Alemanha e falava latim. Não se sabe se ele era alemão ou se tinha acabado de chegar das terras do Sacro Império Romano. De Novgorod, mudou-se para Ustyg, fingindo ser um louco e levando um estilo de vida incrivelmente severo: dormia nu nos pórticos das igrejas, rezava à noite pela cidade e pelo povo, recebia comida apenas dos pobres e tratava os ricos com desprezo. Foi abusado, espancado, mas no final conquistou respeito e, após sua morte, tornou-se profundamente venerado. Cem anos depois, os moradores de Ustyg decidiram até construir uma capela em sua homenagem, mas o clero se opôs e ordenou a destruição da obra já iniciada. No entanto, a comemoração local finalmente triunfou e foi confirmada pelo Concílio de Moscou em 1547.

Este primeiro exemplo foi seguido por outros. Embora, durante um longo período, o terreno fértil para esse novo tipo de santos tenha permanecido provavelmente nas áreas do norte da Rússia, que estavam em contato direto com o oeste e, em particular, com a Novgorod comercial, meio europeia. Não é possível enumerar aqui todos os loucos por Cristo, honrados pelo povo russo, tanto canonizados quanto não canonizados. O número de oficialmente canonizados como santos pela Igreja é comparativamente pequeno: 36. O número de loucos por Cristo não canonizados é bastante grande.

Seria interessante, no entanto, contar sobre um caso deste podvig, datado de uma época mais recente, no século XVIII. Trata-se de Xênia, que se tornou muito famosa, especialmente em São Petersburgo, onde seu túmulo se tornou um local de peregrinação popular. As pessoas rezam a ela junto com os santos mais distinguidos e inúmeros milagres são atribuídos à sua intercessão.

Xênia era uma mulher casada. O nome de seu marido era Andrei Petroff e ele era chantre em um coral da corte. Ela tinha 26 anos quando seu marido, a quem ela adorava, morreu. Então, ela se tornou uma louca por Cristo. Línguas malignas continuavam dizendo que ela simplesmente perdeu o juízo. Ela doou seus bens insignificantes, incluindo seus vestidos, mas deixou as roupas do marido e começou a usá-las, alegando que seu nome não era Xênia, mas Andrei. Ela começou a morar em um dos subúrbios, mas sem ter residência permanente, mudando-se de casa em casa e desaparecendo à noite. Ela era frequentemente vista saindo da cidade e rezando no campo, voltando-se para os quatro cantos da terra. Ela também era vista trabalhando furtivamente à noite, trazendo tijolos para a construção de uma grande igreja. Algum tempo depois, quando as roupas do marido viraram trapos, Xênia voltou a usar roupas femininas, mas de uma forma muito estranha. uma saia verde ou vermelha e uma jaqueta e, ao mesmo tempo, andava descalça o  usava sapatos rasgados e sem meias. Gradualmente, ela parou de se chamar por nomes masculinos e voltou a ser Xênia.

Mas ela nunca mais se submeteria às condições da vida normal, nunca restauraria o relacionamento com seus parentes. Ela alegava que não precisava de nada.

As pessoas do bairro em que morava a adoravam. As mães davam-lhe seus bebês para embalar ou beijar – e isso era considerado uma bênção. Os cocheiros imploravam para que ela se sentasse em seus táxis por um curto período e, depois disso, tinham certeza de que ganhariam muito naquele dia. Os comerciantes tentavam entregar suas mercadorias em suas mãos – se ela as tocasse, os clientes certamente viriam. Xênia se tornou uma grande fazedora de milagres em vida. Suas previsões estavam na boca de todos. Por exemplo, na véspera do repouso da Imperatriz Elizabeth Petrovna (5 de janeiro de 1761), Xênia corria pelas ruas da cidade gritando: "Façam panquecas, amanhã todo mundo na Rússia vai fazer panquecas!" (Na Rússia, panquecas - bliny - fazem parte de um repasto fúnebre).

Após a morte de Xênia, sua veneração continuou a crescer e penetrou também na alta sociedade. O Czar Alexandre III, enquanto herdeiro do trono, adoeceu com febre tifoide recorrente, e sua esposa, a futura Imperatriz Maria Feodorovna, ficou muito preocupada. Então, um dos servos da corte trouxe-lhe um punhado de terra do túmulo de Xênia e aconselhou-a a colocá-la sob o travesseiro do doente e rezar para a Bem-aventurada. A jovem grã-duquesa seguiu o conselho e sua prece foi atendida. Após a recuperação do futuro czar, nasceu-lhes uma filha, que foi chamada de Xênia em homenagem a essa humilde louvada por Cristo. E até a revolução, entre os inúmeros fiéis que vinham rezar no túmulo da Bem-aventurada, via-se frequentemente a Imperatriz Viúva.

Um tipo de louco por Cristo também se refletiu na literatura russa. Pushkin, em "Boris Godunov", retratou o Bem-aventurado Ivan, que viveu em Moscou durante o reinado do Czar Fiódor Ioanovich, filho de Ivan, o Terrível. Dizia-se dele que ele gostava de "olhar para o sol e meditar no Sol da Verdade". As crianças zombavam dele, mas ele nunca as punia, mas sorria e previa seu futuro. Outro louco por Cristo chamado Grisha é descrito no livro de Liev Tolstói "Infância. Adolescência. Juventude".

Depois de tudo o que foi dito acima, é provavelmente possívelconcluir que o louco por Cristo é um tipo de santo que transmite melhor do que qualquer outro as características espirituais peculiares ao povo russo. O amor a Cristo e à Sua Cruz, o amor até a morte e a disposição de imitá-Lo estão vivos no coração de cada russo que professa conscientemente o Cristianismo. Nos loucos por Cristo, esse amor é levado ao extremo. Os meios para alcançá-lo são a negação deste mundo e de suas riquezas, exercida com a ajuda da graça em um nível sobrenatural. A divagação espiritual e a liberdade que equivalem ao individualismo anárquico se desenvolvem em plena extensão na vida de um louco por Cristo. Desprezo por qualquer tipo de forma ou limites razoáveis, sede pelo absoluto em tudo, aversão a quaisquer regras geralmente adotadas, estreiteza de espírito em qualquer forma – todas essas coisas são plenamente expressas na loucura por Cristo. Todas essas coisas são desprezadas e ridicularizadas pelos tolos por Cristo, em nome de Cristo e da Sua Verdade. Acreditando na transformação na vida futura, o tolo por Cristo é santificado pela Cruz e pelos sofrimentos infinitos que Ela traz. Esta é a síntese das aspirações mais íntimas de um russo e a chave final para o quase sobre-humano podvig de yurodstvo – a tolice por amor a Cristo.


* podvig = uma façanha ou feito espiritual que exige grande esforço, às vezes até de proporções sobre-humanas.

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