COMO LER A BÍBLIA
KALLISTOS Ware, Metropolita de Diokleia
tradução de monja Rebeca (Pereira)
“Se um rei terreno, nosso imperador”, escreveu São Tikhon de Zadonsk (1724-1783), “lhe escrevesse uma carta, você não a leria com alegria? Certamente, com grande júbilo e cuidadosa atenção.” Mas qual, ele pergunta, é a nossa atitude em relação à carta que nos foi endereçada por ninguém menos que o próprio Deus? “Você recebeu uma carta, não de um imperador terreno, mas do Rei do Céu. E, no entanto, você quase despreza tal presente, um tesouro tão inestimável.” Abrir e ler esta carta, acrescenta São Tikhon, é entrar em uma conversa pessoal, face a Face, com o Deus vivo. “Sempre que lês o Evangelho, o próprio Cristo está falando contigo. E enquanto lês, está orando e conversando com Ele.”
Essa é exatamente a nossa atitude ortodoxa em relação à leitura das Escrituras. Devo ver a Bíblia como a carta pessoal de Deus, enviada especificamente a mim. As palavras não se destinam apenas a outros, distantes e distintos, mas são escritas particular e diretamente para mim, aqui e agora. Sempre que abrimos a Bíblia, estamos nos engajando em um diálogo criativo com o Salvador. Ao ouvir, também respondemos. "Fala, porque o Teu servo ouve", respondemos a Deus enquanto lemos (1 Sm 3:10); "Eis-me aqui" (Is 6:8).
Dois séculos depois de São Tikhon, na Conferência de Moscou realizada em 1976 entre ortodoxos e anglicanos, a verdadeira atitude em relação às Escrituras foi expressa em termos diferentes, mas igualmente válidos. Esta declaração conjunta, assinada pelos delegados de ambas as tradições, constitui um excelente resumo da visão ortodoxa: “As Escrituras constituem um todo coerente. São ao mesmo tempo divinamente inspiradas e humanamente expressas. Elas dão testemunho autoritário da revelação de Deus na criação, na Encarnação do Verbo e em toda a história da salvação e, como tal, expressam a palavra de Deus em linguagem humana. Conhecemos, recebemos e interpretamos as Escrituras por meio da Igreja e na Igreja. Nossa abordagem à Bíblia é de obediência.”
Combinando as palavras de São Tikhon e a declaração de Moscou, podemos distinguir as quatro características principais que marcam a "mente escritural" ortodoxa. Primeiro, nossa leitura das Escrituras é obediente. Segundo, é eclesial, em união com a Igreja. Terceiro, é centrada em Cristo. Quarto, é pessoal.
Lendo a Bíblia com Obediência
Primeiramente, vemos as Escrituras como inspiradas por Deus e nos aproximamos delas em espírito de obediência. A inspiração divina da Bíblia é enfatizada igualmente por São Tikhon e pela Conferência de Moscou de 1976: a Escritura é "uma carta" do "Rei do Céu", escreve São Tikhon; "O próprio Cristo está falando contigo". A Bíblia, afirma a Conferência, é a "testemunha autorizada" de Deus sobre Si mesmo, expressando "a palavra de Deus em linguagem humana". Nossa resposta a essa palavra divina é, com razão, de receptividade obediente. Ao lermos, esperamos no Espírito.Por ser divinamente inspirada, a Bíblia possui uma unidade fundamental, uma coerência total, porque o mesmo Espírito fala em cada página. Não nos referimos a ela como “os livros” no plural, ta biblia. Chamamos-lhe “a Bíblia”, “o Livro”, no singular. É um livro, uma Escritura Sagrada, com a mesma mensagem em toda a sua extensão, e ainda assim uma única história, de Gênesis a Apocalipse.
Ao mesmo tempo, porém, a Bíblia também é expressa humanamente. É uma biblioteca completa de escritos distintos, compostos em épocas variadas, por pessoas diferentes em situações amplamente diversas. Encontramos Deus falando aqui “em várias ocasiões e de várias maneiras” (Hb 1:1). Cada obra na Bíblia reflete a perspectiva da época em que foi escrita e o ponto de vista particular do autor. Pois Deus não anula a nossa personalidade criada, mas a aprimora. A graça divina coopera com a liberdade humana: somos “cooperadores”, cooperadores de Deus (1 Co 3:9). Nas palavras da Carta a Diogneto, do século II, "Deus persuade, não obriga; pois a violência é estranha à natureza divina". Assim é precisamente na escrita das Escrituras inspiradas. O autor de cada livro não foi apenas um instrumento passivo, uma flauta tocada pelo Espírito, um ditador registrando uma mensagem. Cada escritor das Escrituras contribui com seus dons humanos particulares. Ao lado do aspecto divino, há também um elemento humano nas Escrituras, e devemos valorizar ambos.
Cada um dos quatro evangelistas, por exemplo, tem seu próprio ponto de vista particular. Mateus é o mais "eclesiástico" e o mais judeu dos quatro, com seu interesse especial na relação do Evangelho com a Lei Judaica e sua compreensão do Cristianismo como a "Nova Lei". Marcos escreve em grego menos refinado, mais próximo da linguagem da vida cotidiana, e inclui detalhes narrativos vívidos não encontrados nos outros Evangelhos. Lucas enfatiza a universalidade do amor de Cristo e Sua compaixão abrangente, que se estende igualmente a judeus e gentios. O Quarto Evangelho expressa uma abordagem mais interior e mística, e foi apropriadamente denominado por São Clemente de Alexandria como "um Evangelho espiritual". Exploremos e desfrutemos ao máximo essa variedade vivificante dentro da Bíblia.
Como a Escritura é, dessa forma, a palavra de Deus expressa em linguagem humana, há espaço para uma investigação crítica honesta e rigorosa ao estudar a Bíblia. Nosso cérebro racional é um dom de Deus, e não precisamos ter medo de usá-lo ao máximo ao ler as Escrituras. Os cristãos ortodoxos negligenciam, por sua conta e risco, os resultados de pesquisas acadêmicas independentes sobre a origem, datas e autoria dos livros da Bíblia, embora sempre queiramos testar esses resultados à luz da Sagrada Tradição.
Ao lado desse elemento humano, porém, devemos sempre ver o aspecto divino. Esses textos não são simplesmente a obra de seus autores individuais. O que ouvimos nas Escrituras não são apenas palavras humanas, marcadas por maior ou menor habilidade e perspicácia, mas a Palavra incriada do próprio Deus — a Palavra do Pai "saindo do silêncio", para usar a frase de Santo Inácio de Antioquia — a Palavra eterna da salvação; ao nos aproximarmos da Bíblia, portanto, não nos aproximamos apenas por curiosidade ou para obter informações históricas; chegamos com uma pergunta específica: "Como posso ser salvo?"
A receptividade obediente à Palavra de Deus significa, acima de tudo, duas coisas: um senso de admiração e uma atitude de escuta. A admiração se extingue facilmente. Não sentimos, com muita frequência, ao lermos a Bíblia, que ela se tornou excessivamente familiar, até mesmo entediante? Não perdemos nossa atenção, nosso senso de expectativa? Até que ponto somos transformados pelo que lemos? Precisamos continuamente limpar as portas da nossa percepção e olhar com novos olhos, com admiração e espanto, para o milagre que se apresenta diante de nós — o milagre sempre presente da palavra divina de salvação, expressa em linguagem humana. Como Platão observou: "O princípio da verdade é maravilhar-se com as coisas".
Há alguns anos, tive um sonho do qual ainda me lembro vividamente. Eu estava de volta à casa onde, durante três anos de infância, morei num internato. Um amigo me levou primeiro pelos cômodos que eu já conhecia da minha infância desperta. Então, no meu sonho, entramos em outros cômodos que eu nunca tinha visto antes — espaçosos, elegantes, cheios de luz. Finalmente, chegamos a uma pequena capela escura, com mosaicos dourados brilhando à luz de velas. "Que estranho", disse ao meu companheiro, "viver aqui há tanto tempo e, no entanto, nunca ter sabido da existência de todos esses cômodos". E ele respondeu: "Mas é sempre assim". Acordei e, vejam só, era um sonho.
Não deveríamos reagir diante da Bíblia exatamente com a mesma surpresa, o mesmo sentimento de alegria e descoberta que experimentei no meu sonho? Há tantos cômodos nas Escrituras em que ainda não entramos. Há tanto para explorarmos.
Se obediência significa admiração, também significa ouvir. Esse é, de fato, o significado literal da palavra “obedecer” tanto em grego quanto em latim — ouvir. O problema é que a maioria de nós é melhor falando do que ouvindo. Um incidente no Goon Show, que eu costumava acompanhar avidamente pelo rádio nos meus tempos de estudante, resume muito bem nossa situação. O telefone toca e um dos personagens atende. "Alô", ele exclama, "alô, alô". Seu volume aumenta. "Quem está falando? Não consigo ouvir. Alô, quem está falando?" Uma voz do outro lado da linha diz: "Você está falando". "Ah", ele responde, "pensei que a voz soasse familiar". E ele desliga.
Um dos principais requisitos, se quisermos adquirir uma "mente bíblica", é parar de falar e começar a ouvir. Quando entramos em uma igreja ortodoxa decorada à moda tradicional e olhamos para o santuário, vemos ali, na abside, a imagem da Mãe de Deus com as mãos erguidas para o céu — o antigo modo de rezar das Escrituras que muitos ainda usam hoje. Essa também deve ser nossa atitude em relação às Escrituras — uma atitude de abertura e receptividade atenta, com as mãos invisivelmente estendidas para o céu.
Ao lermos a Bíblia, portanto, devemos nos espelhar na Santíssima Virgem Maria, pois ela é supremamente Aquela que escuta. Na Anunciação, ouvindo o anjo, Ela responde obedientemente: “Faça-se em Mim segundo a Tua palavra” (Lucas 1:38). Se Ela não tivesse primeiro escutado a palavra de Deus e a recebido espiritualmente em Seu coração, jamais teria gerado corporalmente a Palavra de Deus em Seu ventre. A escuta receptiva continua sendo Sua atitude ao longo da narrativa do Evangelho. No nascimento de Cristo, após a adoração dos pastores, “Maria guardava todas estas coisas, meditando-as em Seu coração” (Lucas 2:19). Após a visita a Jerusalém, quando Jesus tinha doze anos, “Sua mãe guardava todas estas coisas em Seu coração” (Lucas 2:51). A importância vital da escuta também é indicada nas últimas palavras atribuídas à Theotokos na Sagrada Escritura, nas bodas de Caná da Galileia. “Fazei tudo o que Ele vos disser” (João 2:5), diz Ela aos servos — e a cada um de nós.
Em tudo isso, a Virgem serve como espelho e ícone vivo do cristão bíblico. Ouvindo a palavra de Deus, devemos ser como Ela: ponderando, guardando todas essas coisas em nossos corações, fazendo tudo o que Ele nos disser. Devemos ouvir em obediência enquanto Deus fala.
Compreendendo a Bíblia por meio da Igreja
Como afirma a Conferência de Moscou: “Conhecemos, recebemos e interpretamos as Escrituras por meio da Igreja e na Igreja”. Nossa abordagem à Bíblia não é apenas obediente, mas também eclesial. As palavras das Escrituras, embora dirigidas a nós pessoalmente, são ao mesmo tempo dirigidas a nós como membros de uma comunidade. Livro e Igreja não devem ser separados.A interdependência entre Igreja e Bíblia é evidente de pelo menos duas maneiras. Primeiro, recebemos as Escrituras por meio e na Igreja. A Igreja nos diz o que é Escritura. Nos três primeiros séculos da história cristã, um longo processo de triagem e teste foi necessário para distinguir entre o que é Escritura autenticamente “canônica”, dando testemunho autoritário da pessoa e mensagem de Cristo, e o que é “apócrifo”, útil talvez para o ensino, mas não uma fonte normativa de doutrina. Assim, a Igreja decidiu quais livros formam o Cânone do Novo Testamento. Um livro não faz parte da Sagrada Escritura por causa de qualquer teoria específica sobre sua data e autoria, mas porque a Igreja o trata como canônico. Suponhamos, por exemplo, que se pudesse provar que o Quarto Evangelho não foi de fato escrito por São João, o discípulo amado de Cristo — na minha opinião, existem, de fato, fortes razões para continuar a aceitar a autoria de João —, mas, mesmo assim, isso não alteraria o fato de que consideramos o Quarto Evangelho como Escritura. Por quê? Porque o Quarto Evangelho, seja qual for o autor, é aceito pela Igreja e na Igreja.
Em segundo lugar, interpretamos as Escrituras por meio e na Igreja. Se é a Igreja que nos diz o que é a Escritura, é igualmente a Igreja que nos diz como a Escritura deve ser entendida. Ao se deparar com o etíope enquanto ele lia o Antigo Testamento em sua carruagem, Filipe, o diácono, perguntou-lhe: "Você entende o que está lendo?"
"Como posso", respondeu o etíope, "se alguém não me ensinar?" (Atos 8:30, 31).
A dificuldade dele também é a nossa. As palavras das Escrituras nem sempre são autoexplicativas. A Bíblia tem uma maravilhosa simplicidade subjacente, mas quando estudada em detalhes, pode se revelar um livro difícil. Deus, de fato, fala diretamente ao coração de cada um de nós durante a leitura das Escrituras — como diz São Tikhon, nossa leitura é um diálogo pessoal entre cada um e o próprio Cristo —, mas também precisamos de orientação. E nosso guia é a Igreja. Fazemos pleno uso de nosso entendimento particular; iluminados pelo Espírito. Fazemos pleno uso de comentários bíblicos e das descobertas da pesquisa moderna. Mas submetemos opiniões individuais, sejam as nossas ou as dos estudiosos, ao julgamento da Igreja.
Lemos a Bíblia pessoalmente, mas não como indivíduos isolados. Não dizemos "eu", mas "nós". Lemos como membros de uma família, a família da Igreja Católica Ortodoxa. Lemos em comunhão com todos os outros membros do Corpo de Cristo em todas as partes do mundo e em todas as gerações. Essa abordagem comunitária ou católica da Bíblia é sublinhada em uma das perguntas feitas a um convertido no serviço de recepção usado na Igreja Russa: "Você reconhece que a Sagrada Escritura deve ser aceita e interpretada de acordo com a crença que foi transmitida pelos Santos Padres e que a Santa Igreja Ortodoxa, nossa Mãe, sempre sustentou e ainda sustenta?" O critério decisivo para nossa compreensão do significado das Escrituras é a mentalidade da Igreja.
Para descobrir essa "mente da Igreja", por onde começamos? Um primeiro passo é ver como as Escrituras são usadas no Serviço Divino. Como, em particular, as lições bíblicas são escolhidas para leitura nas diferentes festas? Um segundo passo é consultar os escritos dos Padres da Igreja, especialmente São João Crisóstomo. Como eles analisam e aplicam o texto das Escrituras? Uma maneira eclesial de ler a Bíblia é, dessa forma, tanto litúrgica quanto patrística.
Para ilustrar o que significa interpretar as Escrituras de maneira litúrgica, considere as lições do Antigo Testamento nas Vésperas da Festa da Anunciação (25 de março) e nas Vésperas do Sábado Santo, a primeira parte da antiga Vigília Pascal. Na Anunciação, há cinco leituras:
(1) Gênesis 28:10-17: O sonho de Jacob de uma escada erguida da terra ao céu.
(2) Ezequiel 43:27-44: A visão do profeta do templo de Jerusalém, com o portão fechado pelo qual ninguém, exceto o Príncipe, pode passar.
(3) Provérbios 9:1-11: Uma das grandes passagens sofiânicas do Antigo Testamento, começando com "A Sabedoria edificou a sua casa".
(4) Êxodo 3:1-8: Moisés na Sarça Ardente.
(5) Provérbios 8:22-30: Outro texto sofiânico, descrevendo o lugar da Sabedoria na providência eterna de Deus: "Fui estabelecida desde a eternidade, desde o princípio, antes que houvesse terra".
Nessas passagens do Antigo Testamento, temos uma série de imagens poderosas que indicam o papel da Theotokos no plano de salvação de Deus em desenvolvimento. Ela é a escada de Jacob, pois por meio dela, Deus desce e entra em nosso mundo, assumindo a carne que ela fornece. Ela é Mãe e Sempre Virgem; Cristo nasce d´Ela, mas Ela permanece inviolável, com a porta de Sua virgindade selada. Ela provê a humanidade ou casa que Cristo, a Sabedoria de Deus (1 Coríntios 1:24), toma como Sua morada; alternativamente, Ela mesma deve ser considerada a Sabedoria de Deus. Ela é a Sarça Ardente, que contém em Seu ventre o fogo incriado da Divindade e, no entanto, não é consumida. Desde toda a eternidade, "antes que houvesse terra", Ela foi preescolhida por Deus para ser Sua Mãe.
Lendo essas passagens em seu contexto original dentro do Antigo Testamento, podemos não perceber imediatamente que elas prenunciam a Encarnação do Salvador da Virgem. Mas, ao explorar o uso feito do Antigo Testamento no lecionário da Igreja, podemos descobrir camadas e mais camadas de significados que estão longe de ser óbvios à primeira vista.
O mesmo acontece quando consideramos como as Escrituras são usadas no Sábado Santo. Aqui, há nada menos que quinze lições do Antigo Testamento. Lamentavelmente, em muitas de nossas paróquias, a maioria delas é omitida, de modo que o povo de Deus fica privado de seu devido alimento bíblico. Esta longa sequência de leituras nos apresenta o significado mais profundo da "passagem" de Cristo, da morte para a ressurreição. A primeira lição é o relato da criação (Gn 1,1-13): a Ressurreição de Cristo é uma nova criação (2Co 5,17; Ap 21,5), a inauguração de uma nova era, a era vindoura. A terceira lição descreve o ritual judaico da ceia da Páscoa: Cristo crucificado e ressuscitado é a nova Páscoa, o Cordeiro Pascal, o único que pode tirar o pecado do mundo (1Co 5,7; Jo 1,29). A quarta lição é o livro de Jonas em sua totalidade: os três dias do profeta no ventre do peixe prenunciam a ressurreição de Cristo após três dias no túmulo (Mt 12:40). A sexta lição narra a travessia do Mar Vermelho pelos israelitas (Êx 13:20-15:19): Cristo nos conduz da escravidão do Egito (pecado), através do Mar Vermelho (batismo), para a terra prometida (a Igreja). A lição final é a história dos três Santos Jovens na fornalha ardente (Dn 3), mais uma vez um "tipo" ou prenúncio da ressurreição de Cristo do túmulo.
Como podemos desenvolver essa maneira eclesial e litúrgica de ler as Escrituras nos círculos de estudo bíblico em nossas paróquias? Uma pessoa pode receber a tarefa de anotar sempre que uma passagem específica for usada para uma festa ou dia santo, e o grupo pode então discutir em conjunto as razões pelas quais ela foi escolhida. Outros membros do grupo podem ser designados para fazer a lição de casa entre os Padres, baseando-se sobretudo nas homilias bíblicas de São João Crisóstomo. Inicialmente, podemos ficar decepcionados: o modo de pensar e falar dos Padres é muitas vezes notavelmente diferente do nosso hoje. Mas há ouro nos textos patrísticos, se apenas tivermos a persistência e a imaginação para descobri-lo.
Cristo, o Coração da Bíblia
O terceiro requisito em nossa leitura das Escrituras é que ela seja centrada em Cristo. Se concordamos com a Conferência de Moscou de 1976 de que as "Escrituras constituem um todo coerente", onde devemos localizar sua totalidade e coerência? Na pessoa de Cristo. Ele é o fio condutor que percorre toda a Bíblia, da primeira à última frase. Jesus nos encontra em cada página. Tudo se conecta por causa dEle. "Nele todas as coisas subsistem" (Cl 1:17 NVI).Grande parte do estudo das Escrituras por estudiosos ocidentais modernos adotou uma abordagem analítica, decompondo cada livro no que é visto como suas fontes originais. Os elos de conexão são desvendados e a Bíblia é reduzida a uma série de unidades isoladas. Recentemente, houve uma reação contra isso, com críticos bíblicos no Ocidente dedicando muito mais atenção à maneira como essas unidades primárias passaram a ser unidas. Isso é algo que nós, ortodoxos, certamente podemos acolher. Devemos enxergar a unidade das Escrituras, bem como a diversidade, o fim abrangente, bem como os começos dispersos. A Ortodoxia prefere, em grande parte, um estilo de hermenêutica "sintético" em vez de analítico, vendo a Bíblia como um todo integrado, com Cristo em todos os lugares como o elo de união.
Tal, como acabamos de ver, é precisamente o efeito de ler as Escrituras dentro do contexto do culto da Igreja. Como as lições para a Anunciação e o Sábado Santo deixam claro, em todo o Antigo Testamento encontramos placas e marcos que apontam para o mistério de Cristo e Sua Mãe, Maria. Interpretando o Antigo Testamento à luz do Novo, e o Novo à luz do Antigo — como o lecionário da Igreja nos incentiva a fazer — descobrimos como toda a Escritura encontra seu ponto de convergência no Salvador.
A Ortodoxia faz uso extensivo desse método "tipológico" de interpretação, pelo qual "tipos" de Cristo, sinais e símbolos de Sua obra, podem ser detectados em todo o Antigo Testamento. Melquisedec, por exemplo, o rei-sacerdote de Salém, que ofereceu pão e vinho a Abraão (Gn 14:18), é considerado um "tipo" de Cristo não apenas pelos Padres, mas também no próprio Novo Testamento (Hb 5:6; 7:1-19). A rocha da qual jorravam águas no deserto do Sinai (Êx 17:6; Nm 30:7-11) é igualmente um símbolo de Cristo (1 Co 10:4). A tipologia explica a escolha das lições, não apenas no Sábado Santo, mas ao longo da "segunda metade da Quaresma". Por que as leituras de Gênesis, na sexta semana, são dominadas pela figura de José? Por que ler o Livro de Job na Semana Santa? Porque José e Job, que sofreram inocentemente, prenunciam o sofrimento redentor de Cristo na cruz.
Podemos descobrir muitas outras correspondências entre o Antigo e o Novo Testamento usando uma concordância bíblica. Muitas vezes, o melhor comentário de todos é simplesmente uma concordância, ou uma edição da Bíblia com referências cruzadas marginais bem escolhidas. Basta conectar. Tudo se encaixa. Nas palavras do Padre Alexander Schmemann: "Um cristão é aquele que, para onde quer que olhe, encontra Cristo em todos os lugares e n´Ele se alegra". Isso é verdade em particular para o cristão bíblico. Para onde quer que olhe, em cada página, ele encontra Cristo em todos os lugares.
A Bíblia como Pessoal
Segundo São Marcos, o Monge (“Marcos, o Asceta”, século V/VI), “Aquele que é humilde em seus pensamentos e engajado em trabalho espiritual, quando lê as Sagradas Escrituras, aplicará tudo a si mesmo e não ao seu próximo”. Devemos buscar em toda a Escritura uma aplicação pessoal. Nossa pergunta não é simplesmente “O que isso significa?”, mas “O que isso significa para mim?”. Como insiste São Tikhon, “o próprio Cristo está falando com você”. A Escritura é um diálogo direto e íntimo entre o Salvador e eu — Cristo Se dirigindo a mim e meu coração respondendo. Esse é o quarto critério em nossa leitura da Bíblia.Devo ver todas as narrativas nas Escrituras como parte da minha própria história pessoal. A descrição da queda de Adão é igualmente um relato de algo em minha própria experiência. Quem é Adão? Seu nome significa simplesmente “homem”, “humano”: sou eu quem sou Adão. É a mim que Deus diz: “Onde você está?” (Gn 3:9). Frequentemente perguntamos: “Onde está Deus?” Mas a verdadeira questão é aquela que Deus coloca ao Adão em cada um de nós: “Onde você está?”
Quem é Caim, o assassino de seu irmão? Sou eu. O desafio de Deus: "Onde está Abel, teu irmão?" (Gn 4:9), é dirigido ao Caim que existe em cada um de nós. O caminho para Deus reside no amor ao próximo, e não há outro caminho. Renegando minha irmã ou meu irmão, substituo a imagem de Deus pela marca de Caim e nego minha humanidade essencial.
A mesma aplicação pessoal é evidente nos serviços da Quaresma e, sobretudo, no Grande Cânone de Santo André de Creta. "Eu sou o homem que caiu nas mãos de ladrões", dizemos (ver Lc 10:30); "Eu era o teu filho mais novo e desperdicei os bens que me deste... e agora estou faminto e faminto" (ver Lc 15:11-14). "Quem são as ovelhas e quem são os bodes?", perguntavam os Padres do Deserto do Egito (ver Mt 25:31-46). "As ovelhas são conhecidas de Deus", respondiam eles. “Quanto às cabras, estou falando de mim.”
Há três passos a serem dados ao ler as Escrituras. Primeiro, refletimos que o que temos nas Escrituras é história sagrada: a história do mundo desde a Criação, a história do povo escolhido de Deus, a história do próprio Deus encarnado na Palestina, a história das “obras maravilhosas” (Atos 2:11) após o Pentecostes. Nunca devemos esquecer que o que encontramos na Bíblia não é uma ideologia, nem uma teoria filosófica, mas uma fé histórica.
Em seguida, observamos a particularidade, a especificidade, dessa história sagrada. Na Bíblia, encontramos Deus intervindo em momentos e lugares específicos, dialogando com seres humanos individuais. Vemos diante de nós os chamados distintos emitidos por Deus a cada pessoa diferente, a Abraão, Moisés e David, a Rebeca e Ruth, a Isaías e aos profetas. Vemos Deus encarnando-Se uma única vez, em um canto específico da Terra, em um momento específico e de uma Mãe específica. Devemos considerar essa particularidade não como um escândalo, mas como uma bênção. O amor divino é universal em seu escopo, mas sempre pessoal em sua expressão.
Esse senso da especificidade da Bíblia é um elemento vital na "mente escritural" ortodoxa. Se realmente amamos a Bíblia, amaremos genealogias e detalhes de datação e geografia. Uma das melhores maneiras de animar o estudo das Escrituras é fazer uma peregrinação à Terra Santa. Caminhe por onde Cristo caminhou. Desça até perto do Mar Morto, suba o Monte da Tentação, observe a desolação, sinta como Cristo deve ter Se sentido durante Seus quarenta dias sozinho no deserto. Beba do poço onde Jesus falou com a samaritana. Pegue um barco no Mar da Galileia, peça aos marinheiros que desliguem o motor e olhem em silêncio para a água. Vá à noite ao Jardim do Getsêmani, sente-se no escuro sob as oliveiras centenárias e observe as luzes da cidade através do vale. Saboreie ao máximo a característica "existência" do cenário histórico e leve essa experiência de volta à leitura diária das Escrituras.
Então, daremos um terceiro passo. Depois de reviver a história bíblica em toda a sua particularidade, devemos aplicá-la diretamente a nós mesmos. Devemos dizer a nós mesmos: “Estes não são apenas lugares distantes, eventos do passado remoto. Eles pertencem ao meu próprio encontro com o Senhor. As histórias me incluem.”
A traição, por exemplo, faz parte da história pessoal de cada um. Não traímos todos os outros em algum momento da vida e não sabemos o que é ser traído? E a lembrança desses momentos não deixa cicatrizes profundas e duradouras em nossa psique? Lendo, então, o relato da traição de São Pedro a Jesus e de sua restauração após a ressurreição, podemos nos ver como atores da história. Imaginando o que Pedro e Cristo vivenciaram no momento imediatamente posterior à traição, tornamos os sentimentos deles nossos. Eu sou Pedro; na situação de traição, posso também ser Cristo? Refletindo igualmente sobre o momento da reconciliação — vendo como o Salvador ressuscitado, com um amor totalmente desprovido de sentimentalismo, restaurou a comunhão de Pedro caído, vendo como Pedro, por sua vez, teve a humildade e a coragem de aceitar essa restauração —, nos perguntamos: quão semelhante a Cristo sou para com aqueles que me traíram? E — depois dos meus próprios atos de traição, sou capaz de aceitar o perdão dos outros — sou capaz de me perdoar?
Tomemos, como outro exemplo, a "mulher pecadora", que derramou o frasco de unguento sobre os pés de Cristo (Lucas 7:36-50), e que alguns identificam com Santa Maria Madalena, embora essa não seja a interpretação ortodoxa usual. Posso vê-la refletida em mim mesmo? Compartilho de sua generosidade, espontaneidade e impulsividade amorosa? "Seus muitos pecados estão perdoados, porque ela amou muito." Ou estou sendo calculista; mesquinho, tímido, me retendo, nunca disposto a me comprometer totalmente com nada, seja bom ou ruim? Como dizem os Padres do Deserto: "Melhor alguém que pecou, se sabe que pecou e se arrepende, do que alguém que não pecou e se considera justo."
Uma abordagem pessoal desse tipo significa que, ao ler a Bíblia, não somos simplesmente observadores imparciais e objetivos, absorvendo informações, anotando fatos. A Bíblia não é meramente uma obra literária ou uma coleção de documentos históricos, embora certamente possa ser abordada nesse nível. É, muito mais fundamentalmente, um livro sagrado, dirigido aos fiéis, para ser lido com fé e amor. Não tiraremos proveito pleno da leitura dos Evangelhos a menos que estejamos apaixonados por Cristo. "O coração fala ao coração". Só entro na verdade viva das Escrituras quando meu coração responde com amor ao coração de Deus.
Lendo as Escrituras dessa maneira — em obediência, como membro da Igreja, encontrando Cristo em todos os lugares e vendo tudo como parte da minha própria história pessoal — sentiremos algo do poder e da cura encontrados na Bíblia. No entanto, em nossa viagem bíblica de exploração, estamos sempre apenas no começo. Somos como alguém que se lança em um pequeno barco através de um oceano sem limites. Mas, por maior que seja a jornada, podemos embarcá-la hoje, nesta mesma hora, neste exato momento.
No auge de sua crise espiritual, lutando consigo mesmo sozinho no jardim, Santo Agostinho ouviu a voz de uma criança clamando: "Pega e lê, pega e lê". Ele pegou sua Bíblia e leu, e o que leu mudou toda a sua vida. Façamos o mesmo: pegue e leia.
"Lâmpada para os meus pés é a Tua palavra e luz para o meu caminho"
(Salmo 119:105).
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