O JULGAMENTO DE DEUS

 Arquimandrita PETER de Essex
tradução de monja Rebeca (Pereira)



Encontramos três leis nesta vida. Assim que aparecemos neste mundo, mesmo que nossa vida seja de apenas um dia, a primeira lei que encontramos é a lei do pecado: "Pois quem ficará limpo da impureza? Nem um sequer, ainda que a sua vida sobre a terra seja de apenas um dia" (Jó 14:4-5). Então, encontramos a lei da morte. Embora muitas pessoas evitem pensar na morte, esta é a verdade mais segura: nossa vida chegará ao fim. Em terceiro lugar, encontramos a lei da graça, que veio à terra por meio de Cristo e pelo dom de Pentecostes. Dependendo de como nos posicionamos em relação a essas leis nesta vida, elas podem determinar nossa eternidade. Deus criou Adão e o dotou com o que os Padres chamam de "poder noético", com o qual ele podia ver a Face de Deus e viver em Sua presença continuamente. Quando Adão aceitou a ordem do inimigo, sua atenção voltou-se para si mesmo, e a consequência disso foi sua queda: Adão foi expulso do lugar da presença de Deus. Em Seu grande amor, Deus uniu a dor e a morte ao prazer como um castigo justo para que o pecado não se tornasse imortal (ver 1 Coríntios 11:32). De fato, a morte é um ato da misericórdia de Deus. Portanto, o prazer injusto de Adão no pecado e sua desobediência a Deus foram seguidos pelo justo castigo da dor e da morte.

Desde então, por medo da morte, o homem buscou no pecado um falso consolo, e quanto mais peca, mais a morte se infiltra em sua vida. Esse círculo vicioso só poderia ser quebrado por uma morte injusta, que vemos na Pessoa de Cristo. O que é realmente surpreendente é que Ele não pecou, mas voluntariamente tomou sobre Si o fruto do pecado, que é a morte. Somente Sua morte injusta poderia condenar nossa morte justa causada pelo pecado. O Senhor teve que condenar a morte "em Sua própria carne" (cf. Ef 2:15) por meio da Cruz, porque em tudo o que Ele faz, Sua justiça precede Sua onipotência. Deus não tem justiça, Ele tem misericórdia. Cristo Se identificou com o homem a tal ponto que tomou sobre Si a morte e o abandono de Deus: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Mt 27:46). Somente após Sua morte injusta Ele revelou Sua onipotência, oferecendo a todos nós um novo nascimento, não precedido pelo pecado. Antes, o sofrimento e a morte eram apenas uma dívida que tínhamos que pagar por nossa queda, mas depois que recebemos esse novo nascimento no batismo, quando carregamos nossa cruz pessoal por causa do mandamento de Cristo, somos iniciados na grande Cruz do nosso Salvador.

São Paulo diz que Cristo condenou o pecado em Sua carne (Rm 8,3), enquanto São Pedro diz: “Visto que Cristo sofreu por nós na carne, armai-vos também vós deste mesmo pensamento; porque aquele que sofreu na carne cessou do pecado” (1 Pe 4,1). Menciono estes termos, morte e pecado, porque este é o padrão que São Máximo usa em sua 61ª epístola a Talásio, onde explica de forma engenhosa que em Adão nossa natureza foi condenada à morte pelo pecado, enquanto em Cristo é o pecado que foi condenado à morte. Deus criou Adão com a capacidade de se deleitar em Sua presença de forma inefável, mas voltou essa capacidade para sensações físicas e objetos sensoriais, e assim ele veio a conhecer um “prazer injusto” que era contrário à sua natureza. “O prazer injusto” é a rendição de Adão à sugestão do inimigo de se tornar deus sem Deus. É por isso que Cristo ofereceu a São Siluan o antídoto para o prazer injusto de Adão – a memória do inferno, como o caminho mais seguro para encontrar Deus.

Prevendo a queda, Deus uniu a dor ao prazer do pecado como um poder castigador, e assim a lei da morte foi sabiamente implantada em nossos corpos a fim de limitar nosso intelecto em sua inclinação para os objetos sensoriais", escreve São Máximo. O prazer injusto foi seguido por um sofrimento justo e, portanto, somos incapazes de experimentar prazer sem dor. Quando Deus disse: "Se comeres, morrerás" (Gn 2,17), foi de fato um ato de amor destinado a limitar essa loucura do intelecto humano. Sabemos que morremos e observamos como a humanidade vive na Terra – a lei do pecado reina sobre o mundo. O homem vive como se nunca tivesse morrido. Imagine se não houvesse punição justa por meio da morte. O homem simplesmente pereceria nessa loucura do pecado. Depois de comer do fruto da árvore, Adão sofreu primeiro uma morte espiritual, e então a morte corporal naturalmente se seguiu. Assim, o prazer injusto foi seguido por uma retribuição justa, que foi sofrimento e morte. Pecamos e a dívida que devemos pagar é a morte, enquanto em Cristo não havia causa de morte que exigisse o pagamento de uma dívida.

Desde a queda de Adão, nosso nascimento neste mundo é precedido por prazeres injustos e, portanto, condenado a uma morte justa. Absolutamente ninguém está, por natureza, livre de um nascimento apaixonado condicionado ao prazer. Somente o nascimento de Cristo, do Espírito Santo e da Virgem Maria, foi isento de pecado. Toda vez que o homem deseja evitar a dor, refugia-se no prazer, e assim o medo da morte o lança ainda mais no pecado; quanto mais se entrega ao prazer, mais a morte se infiltra em sua vida, impedindo-o de escapar desse círculo vicioso de pecado-morte-mais pecado. Cristo nasceu neste mundo sem pecado e viveu uma vida sem pecado. Portanto, Ele não deveria ter morrido. No entanto, Ele voluntariamente tomou sobre Si a consequência do pecado, que é a morte, e assim venceu a morte em Sua própria carne: "a morte pela morte destruiu".

A morte injusta de Cristo condena a nossa morte justa, que trouxemos sobre nós mesmos através do prazer injusto, e nos dá "um prazer justo", uma alegria justa, que é a vida eterna, a restauração da natureza humana e a realização do propósito para o qual Deus criou o homem. Através da Sua morte, Cristo libertou o homem da morte justa do seu pecado. Ele se submeteu à morte, transformando a morte em um potencial de vida e a fraqueza do homem em uma arma para a destruição do pecado e da morte. Após a queda de Adão, a morte foi a arma com a qual o pecado destruiu o homem, mas agora, em Cristo, a morte é a arma com a qual Ele destrói o pecado. Não há outro caminho: viver uma vida cristã significa assumir a morte, a vulnerabilidade de Cristo. Esta é a razão pela qual Cristo ofereceu a morte a São Siluan. "Mantém a tua mente no inferno e não te desesperes", em outras palavras: "Não tenhas medo de descer até o fim, porque é lá que eu estou". O Padre Sofrônio foi confirmado por São Siluan sobre estar à beira do abismo do desespero, e é por isso que ele pôde então praticar esta ciência sem dúvida, estando determinado a fazê-lo até o fim. E sabemos que é assim que a natureza humana é realmente santificada e se torna "outra", não "contrária à natureza", mas verdadeiramente natural, pois Deus criou a natureza humana no princípio.

Por meio de Seu sofrimento, Cristo restaurou nossa natureza e nos deu um novo nascimento, que todos recebemos em nosso batismo e que, por meio da dor, culmina no prazer da vida futura. São Máximo destaca aqui um ponto muito importante: Cristo venceu a morte e deu a vida eterna a toda a natureza humana de maneira geral, mas o mesmo julgamento deve ser repetido de maneira particular em cada um de nós. Em Cristo, recebemos um segundo nascimento espiritual, que não é precedido pelo pecado e nos é dado por meio do Batismo. No entanto, a graça do Batismo permanece inerte se não a ativarmos em nossa vida por meio do arrependimento e da observância dos mandamentos. A maneira mais perfeita de guardar os mandamentos é manter nossa mente no inferno, pois então imitamos esse julgamento de Cristo, vencendo a morte pela morte. Se verdadeiramente renascemos em Cristo, o julgamento de Cristo deve ser repetido em nossa vida, e Seu julgamento foi que Ele tomou sobre Si a morte e o sofrimento injustos. Se, em nosso arrependimento, seguirmos Cristo descendo, nosso sofrimento será assimilado ao Seu sofrimento e Ele fará da nossa cruz a Sua Cruz, rendendo-nos a Sua glória. É por isso que São Pedro diz: "Se sofreis por causa da vossa transgressão, que glória é essa? Mas, se padeceis injustamente, grande é a glória" (1 Pedro 2:20), "recebereis uma coroa de glória imarcescível" (1 Pedro 5:4).

O julgamento do Filho de Deus foi o cumprimento do mandamento que Ele havia recebido de Deus Pai. Da mesma forma, quando suportamos o sofrimento por causa dos mandamentos do Senhor, o julgamento do Filho de Deus também se repete em nós. É por isso que os Padres da Filocalia nos dizem que aquele que recebeu um mandamento e o cumpre, misticamente carrega em si toda a Santíssima Trindade. Então, nossa própria dor e sofrimento também podem se tornar uma condenação à morte. Se compreendermos esse princípio, nunca sofreremos de desespero em nossa vida.

Agora, o mesmo juízo de Deus pode e deve ser repetido na casa de Deus, que somos nós (1 Pedro 4:17). Se estivermos cientes de que temos um Deus que nos conhece e nos compreende melhor do que ninguém, seguiremos o exemplo dos santos: toda a nossa vida será uma conversa constante com Ele. A mente de Cristo estava constantemente no Pai, Sua conversa foi com Ele mesmo no Getsêmani e na Cruz. Sua força "secreta" para suportar Sua Paixão foi o conhecimento que Ele tinha do Pai, como diz São Sofrônio. É o que vemos nos santos: por causa das injustiças dos homens e da maldade do inimigo, alguns deles foram privados de tudo em suas vidas, de sua saúde e até mesmo de bens materiais. No entanto, a única coisa que nunca permitiram que o inimigo os privasse era o conhecimento do Senhor. Muitas vezes, os santos foram autorizados a percorrer o caminho estreito e foram abandonados por Deus, para que pudessem conhecer a plenitude do mistério do amor de Cristo. Se tivermos esse conhecimento e determinação, não seremos abalados em nossa vida e, quer subamos ou desçamos, aprenderemos sempre a conversar com nosso Redentor e nosso Deus.

Em períodos de crise, não devemos buscar falsas consolações, mas recorrer Àquele que Se submeteu a toda criatura. O julgamento de Deus não é outro senão o Seu amor. Padre Sofrônio diz que, no Dia do Juízo Final, nossa vida será revelada diante de Deus como um copo d'água, no qual se pode ver em um instante se há algo sujo. Se tivermos purificado nossa vida, ela será revelada naquele dia. Se, cada vez que sofrermos nesta vida, nos entregarmos ao julgamento de Cristo, isso nos dará um tesouro precioso: o conhecimento de Cristo, que é a única coisa que levamos conosco na outra vida. Nossos Santos Padres foram "possuídos" pela mente de Cristo, pela maneira humilde como Ele escolheu nos salvar, e foi isso que os tornou fortes.

Encontramos tal exemplo no Antigo Testamento na pessoa do Patriarca Jacob. Jacob orou uma noite inteira no deserto enquanto seu irmão Esaú o caçava para matá-lo. Ele chegou a lutar com Deus, dizendo: "Não te deixarei até que me abençoes". Então, Deus veio e feriu Jacob na coxa. Essa ferida é o que São Paulo chamaria mais tarde de "circuncisão do coração". Todo homem que se levanta em oração, derramando seu coração diante de Deus em busca de Sua bênção, receberá essa ferida de Deus, e é essa humilde ferida no coração que informa os corações das pessoas ao nosso redor, até mesmo dos nossos inimigos. Quando Esaú encontrou Jacob, assim que o viu, simplesmente o abraçou, pois foi vencido pela ferida pela qual o próprio Jacob havia sido vencido em sua luta com Deus.

Em seu último livro sobre o monaquismo, Padre Zacarias (Zacharou) escreve: "O conhecimento do amor de Deus está oculto por trás de Seu castigo e esse conhecimento lança fora o medo". O castigo de Deus é a manifestação de Seu amor paternal e se sabemos disso, todo medo é lançado fora.

Por ocasião da pandemia, estávamos privados da comunhão de amor com os outros cristãos que temos na Liturgia, mas se cada vez que formos privados de algo em nossa vida, nos entregarmos à Providência de Deus com plena confiança, isso tornará nosso vínculo com Deus cada vez mais forte. Nosso vínculo eterno com Cristo é marcado por todos esses momentos críticos de nossa vida, quando passamos por privação e abandono. Se entregarmos todo o nosso coração e toda a nossa vida nas mãos de Deus, dizendo: "Seja feito em mim, Senhor, segundo a Tua vontade", tais momentos construirão nosso vínculo eterno com Cristo.

Arquimandrita Zacarias: Esta carta explica tão bem este mistério: através do pecado, a morte se infiltra em nossa vida, e através da luta voluntária contra o pecado, a vida se infiltra em nossa morte, a vida eterna. Nisto reside a beleza da obediência monástica: não cedemos à nossa própria vontade, mas através da obediência fazemos a vontade de Deus, e então a força nos é dada para vencer a morte, mesmo em nós. A morte inocente de Cristo tornou-se uma condenação da nossa morte culpada e cada vez que o homem morre por causa do mandamento, ele certamente será glorificado.

Esta é a importância do ascetismo voluntário na vida monástica e na vida cristã em geral: através do sabor da morte no ascetismo voluntário, recebemos a graça de nos elevarmos acima da morte. É por isso que cantamos na Páscoa: "Ontem eu morria con´Tigo, ó Senhor. Hoje eu ressuscito con´Tigo pela Tua Ressurreição". Esta teoria é tão importante para as pessoas contemporâneas, porque elas não conseguem compreender o significado do sofrimento e muitas culpam Deus por isso.

Pergunta: Vemos que, através do pecado, não apenas o prazer injusto é acompanhado de dor, mas também a alegria espiritual. Na prática, nesta vida, se queremos alegria espiritual, ela deve ser acompanhada de dor. Mas se é um prazer justo, por que é acompanhado de dor?

Arquimandrita Zacarias: A dor erradica o pecado e as paixões. Onde não há paixão, há alegria, há liberdade espiritual, há felicidade. Um jovem perguntou ao grande asceta Pimen: "Abba, é permitido tomar um copo de vinho com a minha comida?" E o santo respondeu: "Se não houver demônio (isto é, sem paixão), sim." Então o jovem perguntou pela segunda vez: "Abba, é permitido tomar dois copos de vinho?" Ele respondeu novamente: "Se não houver demônio, sim, é permitido." O mesmo ocorre em nossas relações com as pessoas: a mesma coisa pode ser um grande pecado e pode ser algo sagrado, dependendo de onde está o coração, se há paixão, um desejo errado. Para aquele que está livre de paixões, tudo é sagrado.

Arquimandrita Peter: Chamamos isso de "prazer justo" porque ocorreu pela primeira vez em Cristo. Ele iniciou o caminho e nos tornamos participantes desse prazer justo porque O seguimos, não porque seja uma recompensa justa ou um mérito que merecemos. Para o prazer injusto, a dor é um poder castigador, como diz São Máximo, enquanto para o prazer espiritual, justo, a dor se torna uma arma.

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