ENTREVISTA COM O SACERDOTE SPIRIDON CHASSE - PARTE 1
Pároco ortodoxo da Missão Ortodoxa dos Santos Cosme e Damião no RJ
1) Conte-nos seu caminho até à Ortodoxia.
Embora eu tenha sido batizado na Igreja Ortodoxa, não posso dizer que nasci em um lar ortodoxo típico. Minha família – no fim das contas – é bem cosmopolita e, ainda que ninguém se dê ao sincretismo, coexistem cristãos ortodoxos, católicos romanos, uma parcela étnico-religiosa indecisa e duas protestantes.
O caminho à Ortodoxia sempre esteve à disposição, mas também não foi fácil. Minha realidade era um mix de culturas e crenças destoantes que, por mais que não brigassem, era cheio de incertezas. Estudei grego, hebraico, aramaico e francês misturados a aspectos culturais e sistemas de crenças que – eventualmente – se tocavam, mas não se encaixavam. E, no meio disso tudo, minha mãe achava que eu deveria frequentar uma Catequese e, como a única disponível onde morávamos era da Igreja Católica [Romana], ela me obrigou a fazer. Talvez [com isso] ela só quisesse sossego, mas ali eu me tornaria um problema para as catequistas. Isso porque eu recebia uma doutrina na paróquia latina e outra (ortodoxa) na casa dos meus avós. Obviamente, chegava no sábado seguinte com questões desconcertantes. Resultado? Três anos fazendo o primeiro ano de catequese mais um no segundo ano para chegar, desnecessariamente, à outra “primeira comunhão”. No fim das contas, estudei o tempo de uma faculdade de teologia católica para sair mais ortodoxo do que entrei.
Mas é verdade que até tive boa vontade em tentar ser católico romano. Depois da segunda primeira comunhão, continuei a frequentar as Missas e até frequentei um grupo chamado “Perseverança”, ao qual eu não fiz jus ao nome porque fui à duas reuniões e larguei. Depois, cheguei a frequentar reuniões do grupo de Crisma, mas sempre com o coração em outro lugar. Não pensava mal dos católicos romanos, apenas não era ali o meu lugar.
Naquela época, por conta da distância, dificuldades de transporte e ausência de missões ortodoxas perto, era raro eu ir à Divina Liturgia, mas, quando isso acontecia, eu passava os próximos meses revivendo a experiência em meu coração.
Ansioso por mais, eu me imaginava na Divina Liturgia. Eu percebia a Divina Liturgia não apenas como o memorial de um evento, mas a vivência real e mística da obra de salvação, na qual o Reino de Deus está ali verdadeiramente, não como uma ideia. O Verbo Se fez carne e habitou entre nós e, na Divina Liturgia, o Reino dos Céus também se faz presente. O invisível adquire cores e formas nos santos ícones, o inodoro tem perfume no incenso e o inaudível se transforma em canto e leituras. Ali a realidade transcendental pode ser vivida com clareza e o tempo criado toca a eternidade.
Aquela experiência era como se apaixonar, mas de uma forma lúcida e cheia de temor de Deus. E não era apenas encantamento, mas comunhão com o próprio Cristo. Era como um amor profundo, sóbrio e reverente, que permanece até hoje, pois a Liturgia não se trata de emoção passageira, mas da realidade da união do Céu e da terra, de Deus com o homem, em cada Eucaristia celebrada.
Quando tive autorização para viajar sozinho, comecei a frequentar a Igreja Ortodoxa Grega de Santo André, em Higienópolis. Ia sempre que dava e não demorou até o que o Reverendo Padre Henrique Cairus me colocou para servir no Hieron (santuário). Nem sei explicar como fui parar lá dentro. Certo domingo apenas me vi ali, ajudando com o incenso e observando de perto o altar e a beleza do Serviço Divino. Recebi meu primeiro komboskini (cordão de oração) ali, das mãos do Padre Dimitrios Nikolaídis (de memória eterna), o qual também me deu instruções de como rezar e, não parei mais.
Na faculdade de Direito, conheci a professora Izabel Leventoglu, que me convidou à Catedral Ortodoxa de São Nicolau. Cheguei à Catedral numa manhã de Natal. Atrasado, a Izabel ainda me colocou no coro para atrapalhar a cantora Nabila (algo que faço até hoje). Elas foram as principais responsáveis pela minha recepção na comunidade. Eu era só um visitante que, contrariando algumas expectativas e medos, fui não só acolhido, mas adotado. Essas pessoas se tornaram o meu povo, minha gente, minha família também.
Percebo que, apesar de tantos caminhos cruzados, o Senhor sempre me conduzia à Sua Igreja, até que nela encontrei não só a fé, mas o lar para minha alma.
2) E o chamado ao sacerdócio? Como soube reconhecer que o Senhor o chamava para este serviço visto que no Brasil carece de seminários e outros sacerdotes como exemplo?
Tenho dúvidas se eu soube reconhecer o chamado ou se Deus apenas me empurrou para dentro do Hieron e me disse: “Vai trabalhar.”. Mas analisando alguns sinais (hoje mais claros), percebo que o chamado de Deus esteve presente desde a infância. Mesmo tendo poucas oportunidades de ir à Divina Liturgia sempre carreguei dentro de mim o desejo de servir à Igreja e de ministrar os Santos Mistérios de Deus a todos os que O buscam. Era como uma voz silenciosa, ainda não compreendida, mas que apontava para algo maior.
Meus pais recordam que, por volta dos seis anos, “batizei” um colega de escola numa poça d’água formada pela chuva, porque ele não era batizado. Claro que isso não tinha qualquer validade canônica; eram apenas gestos de uma criança que, sem saber, ensaiava de forma inocente aquilo que só mais tarde, pela graça de Deus e pela confirmação da Igreja – especialmente discernido com Sayidna Theodore El Ghandour –, viria a ser assumido de verdade no sacerdócio.
Mesmo na infância, eu nunca gostei de jogar bola, soltar pipa ou barulho. Não que eu não fosse uma peste em alguns momentos. Mas sempre fui introspectivo e preferia ficar na cachoeira lendo os Salmos ou rezando a Oração de Jesus cuidando dos animais, mesmo sem um komboskini. Isso me rendeu a fama de alguém alienado e doido, o que é muito útil para quem quer ficar sozinho. Claro que eu brincava com as outras crianças, mas isso logo me enfadava e eu me retirava para o meu canto.
Ainda que a minha natureza fosse introvertida, não posso dizer que a infância tenha sido uma sombra contínua. Havia beleza, havia oração, havia o amor dos meus pais, havia sinais silenciosos da graça. Mas a sensibilidade espiritual que me fazia assim também me expunha às agressões e insultos na escola, na rua e até em casa. Um ramo dos parentes me vilipendiava por ser cristão, enquanto outros debochavam de mim por ser o que eles chamavam [no melhor dia] de “cristão demais”. Não que eu fosse, de fato. Na verdade, sempre estive longe de ser um cristão ideal. Mas – naquela época – isso me levava a olhar o mundo com desconfiança, às vezes com dureza, como se tudo estivesse agonizando e a terra inteira estivesse contaminada pela maldade. E foi justamente nesse contraste — entre o encanto da oração e o peso da rejeição — que Deus, em sua misericórdia, começou a purificar meu coração e a prepará-lo para os Seus mistérios.
Era comum eu passar dias sem dizer uma só palavra. Isso até o dia em que tive uma crise ao notar que todo o mal que eu via nos outros eu também os tinha em mim e até mais. Saí pela casa chorando pedindo o perdão de todos por tudo o que eu já tinha feito e dito a eles, especialmente pelos julgamentos que eu tinha no meu coração sobre cada um deles.
Talvez por conta disso, na adolescência eu tenha querido ser monge até que Deus me conduziu por outro caminho: o casamento. Foi neste período também que o Senhor adicionou mais amigos-irmãos aos três que eu já tinha desde a infância: Allan, Flávio e Elaine. Mais tarde, foi a Elaine quem me apresentou à minha esposa. Hoje somos uma família de dezesseis pessoas, contando com nossas esposas [marido, no caso da Elaine] e filhos. Devo muito do discernimento vocacional ao apoio dessa família. Eles estiveram lá em cada passo – testemunharam a minha melhor versão e suportaram a minha pior. Não foram poucas as vezes em que Deus providenciou que eu encontrasse neles o apoio para manter meus braços erguidos na batalha espiritual.
Também foram estes que me encorajaram a falar com os padres da Catedral sobre o meu desejo de servir à Igreja, no altar. Mesmo quando recebi de um desses padres o conselho de abandonar a Igreja Ortodoxa, sob a acusação de que, no Brasil, ela não teria nada a oferecer, eles me apoiaram quando o respondi que não estava ali para receber nada da Igreja, mas para me dar em servidão a ela. O outro padre nunca me respondeu.
Tempos depois, com a chegada de Dom Theodore El Ghandour ao Rio de Janeiro, essa minha família me encorajou [firmemente] a entregar ao bispo a mesma carta que entreguei aos padres. Eu não falo árabe, o bispo não falava português ainda. A comunicação com ele era difícil com tantas pessoas o demandando por atenção e o idioma não ajudava. Até que o ouvi falar ao celular em um idioma familiar: o grego. Me aproximei dele, falando em grego e o puxei pela mão para fora do grupo de pessoas que o cercavam. Não fui polido, a etiqueta ficou a desejar, quase derrubei o bispo no chão, mas foi eficaz: Eu tinha a atenção dele e falávamos a mesma língua.
Não agi dessa forma por urgência, não por achar que a Igreja precisava especialmente de mim. Claramente, eu não era qualificado. Não sei cantar, trabalhava em um emprego que me consumia até os ossos, tinha uma filha pequena que não me permitia estudar mais porque nem horas vagas eu tinha, não me achava (nunca achei) insubstituível nem imprescindível à sobrevivência da Igreja. Ao contrário, sempre achei que, se não fosse eu, Deus suscitaria outros servos até das pedras. Mas eu estava sendo chamado a servir e eu queria servir ao meu Senhor por amor. E ai de mim se não O servir!
Expliquei a história toda e entreguei a carta (do jeito que estava) me desculpando por estar em português, pois não sabia (até aquele momento) que ele falava grego. Foi a primeira vez que tive contato com o amor e a misericórdia generosa deste Servo de Deus, pois ele não só recebeu a carta daquele jeito, como também a leu depois com calma. Ele poderia ter me repreendido com toda razão, mas agiu com ternura. Confesso que me surpreendeu ele ter me chamado para conversar sobre o discernimento vocacional no mês seguinte, já falando um português bem formado.
Repeti a ele, o que estava na carta: Que vejo almas afastadas de Cristo, presas no engano e no vazio existencial, justamente porque “Nada do que existe neste mundo é suficiente para a alma; só Deus basta.” (São João Crisóstomo) e enquanto este vazio não for preenchido por Deus mesmo, nada saciará a humanidade, que continuará buscando alento em suas próprias paixões e em falsas doutrinas.
Muitos dos sintomas deste mal eu observo também em mim, pobre pecador como os demais, ou até mais. Contudo, sentia Algo dentro de mim me impulsionando e chamando firmemente para, mesmo de natureza igualmente frágil, embora não escravo do pecado, levar o Amor e a Verdade de Cristo (a Ortodoxia) a todos.
Particularmente, não compreendo até hoje como alguém tão miserável como eu pode sentir este impulso. Mas este “Algo” me conduziu a estar a serviço da Igreja para Deus abençoar, consagrar, santificar e salvar as pessoas onde quer que precisem da Igreja.
Isso já acontecia quando eu era criança, mas eu não entendia, e voltava insistente em vários momentos da minha vida. Às vezes em menor intensidade, às vezes em maior intensidade e outras vezes esse sentimento transparecia.
Hoje reconheço que todo esse chamado só faz sentido dentro da dimensão sacramental: não é uma vontade minha apenas, mas um dom que Deus confiou à Sua Igreja e que nela é discernido, confirmado e transmitido pela imposição das mãos e pela graça do Espírito Santo. É no altar, diante da Eucaristia, que compreendo o sacerdócio não como escolha pessoal, mas como participação real no sacerdócio de Cristo, para edificação do Seu Corpo.
Em grande parte, posso dizer que meu desejo é uma resposta às palavras de São Paulo: “Eu te conjuro, diante de Deus e de Cristo Jesus, que há de vir julgar os vivos e os mortos, pela sua Aparição e por seu Reino: proclama a palavra, insiste, no tempo oportuno e no inoportuno, refuta, ameaça, exorta com toda paciência e doutrina. Pois virá tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo os seus próprios desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão os ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas. Tu, porém, sê sóbrio em tudo, suporta o sofrimento, faze o trabalho de evangelista, realiza plenamente teu ministério. – Quanto a mim, já fui oferecido em libação, e chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo Juiz, naquele Dia; e não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor sua Aparição.” (2 Timóteo 4: 1-8).
E ainda:“E Ele é que ‘concedeu’ a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores, para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do corpo de Cristo, até que alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo. Assim, não seremos mais crianças, joguetes das ondas, agitados por todo vento de doutrina, presos pela artimanha dos homens e da astúcia que nos induz ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo em direção àquele que é a Cabeça, Cristo, cujo corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura, com operação harmoniosa de cada uma das suas partes, realiza o seu crescimento para sua própria edificação no amor.” (Efésios 4: 11-16)
Nunca busquei no altar uma profissão, pois ser sacerdote não é isso. Profissão eu já tenho! Nem, tampouco, reconhecimento pois não tenho nenhum mérito do qual poderia me gabar. O que eu quero é abraçar esta missão – para a qual fui chamado – e deixar este Amor que sinto pulsando dentro de mim fluir na forma do ministério sacerdotal e da obediência às Palavras do Santo Evangelho (em especial as contidas em Marcos 16: 15,16) e da Santa Tradição.
Desejo me colocar a serviço da Verdadeira Igreja de Deus para que nela a humanidade veja que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus Vivo; para que conheçam a Verdade, creiam, se arrependam, sejam batizados, vivam os a experiência mística dos Serviços Divinos e dos Santos Mistérios e, por fim, sejam salvos. Resumindo mais ainda: servir a Igreja para que Deus cure os feridos, reúna os desgarrados e resgate os que estão perdidos no erro.
Na época eu me preocupava com a possibilidade de que grande parte da humanidade seja condenada porque o rebanho se dispersou. A Fé e a Tradição da Santa Igreja de Cristo, apresentadas com amor e bons exemplos – jamais com extremismos – podem impedir isso. Como – diante do chamado - eu me explicaria no Tribunal Terrível de Cristo se eu não servisse a Sua Igreja?
Então, recebi a pergunta direta do bispo: por que você quer ser padre?
E minha resposta foi igualmente simples: Porque eu amo! Amo a Deus – o Verdadeiro Deus (Uno e Trino) –, a Sua Igreja e as pessoas, de modo que quero a salvação para elas tanto quanto a quero para mim mesmo.
Percebo que desde cedo Deus me conduzia, mas não com um cabresto, como a um animal. Ele me conduzia misericordiosamente pelo arrependimento, pelo discernimento, pela confirmação da Igreja e finalmente ele me colocou sob o omofório do Dom Theodore, sob o qual a vocação se torno clara, amadureceu e fui posto a servir.
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