EUROPA MULTIRRELIGIOSA E ORTODOXIA - PARTE 3

YANNOULATOS Anastasios, Arcebispo de Tirana
tradução de monja Rebeca (Pereira)



3. O problema das relações entre cristãos e pessoas de outras religiões é muito mais complexo. Em geral, apresenta duas facetas. A primeira é prática: a necessidade de coexistir com pessoas de outras convicções religiosas. Neste caso, temos um "diálogo da vida" em que a única atitude apropriada é a de coexistência pacífica, o respeito pela liberdade religiosa e, em termos gerais, pelos direitos humanos dos outros. Mas também pode haver cooperação em questões de harmonia e progresso social.

A segunda é teórica: compreender outras religiões de um ponto de vista teológico. Assim como a vida de Cristo, o novo Adão, tem consequências mundiais, a vida de Seu Corpo místico, a Igreja, tem alcance e energia universais. Suas orações e interesses abrangem toda a humanidade. A Igreja oferece sua Divina Eucaristia e Doxologia em nome de todos os povos. Ela age em nome do mundo inteiro. Ela irradia a glória do Senhor vivo para toda a criação[14].

Uma atitude perante a vida que respeite os princípios e as visões religiosas dos outros não implica sincretismo e distanciamento da consciência de ser cristão. Pelo contrário, exige o conhecimento da nossa fé e uma experiência contínua dela em arrependimento, humildade e amor genuíno. A mensagem dos Primazes das Igrejas Ortodoxas na concelebração festiva em Belém, aos 07 de janeiro de 2000, enfatizou: “Olhamos para as outras religiões, especialmente as monoteístas do judaísmo e do islamismo, dispostos a construir ainda mais as condições necessárias para o diálogo com elas, com o propósito da coexistência pacífica de todos os povos... A Igreja Ortodoxa rejeita o fanatismo e condena o fanatismo religioso, qualquer que seja a origem desses fenômenos”[15]. Em geral, ela apoia a coexistência harmoniosa de comunidades religiosas e minorias, bem como a liberdade de consciência para cada pessoa e povo.

Especialmente no que diz respeito às relações entre cristãos e islamismo, temos uma experiência secular, substancialmente maior do que a do Ocidente. Por um lado, estas têm sido traumáticas devido à pressão envolvida, mas, por outro, existem exemplos de coexistência pacífica. Hoje, um problema sério que pode ser enfrentado em comum com pessoas de outras religiões é a proteção do meio ambiente natural. As questões ecológicas, que agora estão no centro do interesse mundial, constituem um amplo campo para o diálogo e a cooperação inter-religiosos criativos.

De modo mais geral, acredito que a atitude ortodoxa adequada na sociedade multirreligiosa de hoje é a perspectiva do testemunho e da missão. "E sereis Minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra" (Atos 1, 8). "Fins" em todos os sentidos. Testemunhamos a nossa fé onde quer que Deus abra uma porta: em ambientes não cristãos, indiferentes ou ateus – na Europa, na África, em organizações internacionais ou globais. Sem qualquer exigência de que nossas posições sejam aceitas, sem espírito de proselitismo, sem arrogância, sem ansiedade ou fobias. Com respeito à liberdade pessoal do outro. Deus cuidará do resto. Essa disposição interna nos dá a chance de nos comunicarmos com facilidade, oferecendo a experiência ortodoxa em todas as direções, inclusive para aqueles que têm diferentes visões religiosas ou de mundo. Independentemente do que acreditem ou não, eles ainda têm valor como pessoas humanas, feitas à imagem de Deus.

4. Há um grande interesse entre os cidadãos europeus hoje em criar uma sociedade de justiça e apoio mútuo. Na esfera social, nós, ortodoxos, somos chamados, juntamente com os demais cristãos da Europa, a contribuir para o apoio e o fortalecimento dos valores cristãos fundamentais que desempenharam um papel positivo na formação da cultura européia. Mencionarei apenas alguns: 

a) ênfase no valor da pessoa humana, como fundamento dos direitos humanos; 
b) respeito pela liberdade de cada pessoa, independentemente de origem, raça, educação ou convicção religiosa; 
c) a importância do matrimônio e da família; 
d) a responsabilidade de cada cidadão pelo progresso do todo.

Apesar do progresso e dos muitos desenvolvimentos da cultura ocidental, certas características humanas permaneceram as mesmas ao longo dos séculos: ganância, violência, vaidade, hipocrisia, a sensação de solidão e de vazio. Quem trará o pulsar da vida? Isso requer fé e entusiasmo pelo curso da Europa, fé nas pessoas e em seu futuro. A fonte cristalina desse tipo de fé é a verdade do Evangelho.

Mas a grande contribuição da fé cristã foi – e assim permanecerá perpetuamente – o princípio do amor, com a amplitude, a profundidade e a altura que foram dadas ao seu significado. Nele reside a importância especial atribuída ao perdão. A possibilidade do perdão neutraliza conflitos e hostilidades em suas diversas formas e conduz à reconciliação real entre indivíduos e povos. A inspiração oferecida pela fé cristã a milhões de pessoas para experimentarem a clemência e o amor é historicamente inquestionável. Sem amor, a civilização europeia perde seu fôlego, sua força e sua beleza. E a Ortodoxia deve ser uma fonte inesgotável de amor. 

5. Particularmente nas pesquisas teológicas contemporâneas, as riquezas teológicas da tradição patrística da Ortodoxia são muito importantes. Em uma virada crucial na vida da Igreja, quando ela enfrentava perigos tanto de um confronto direto com a filosofia grega antiga quanto de uma adesão estática a uma piedade externa e formalidade de culto, os grandes Padres da Igreja Oriental lutaram contra ambos esses extremos com sabedoria perspicaz e com coragem no Espírito Santo. Eles conseguiram progredir além dos dilemas intelectuais para novas áreas e fazer declarações que utilizaram o melhor que o pensamento grego antigo havia contribuído para o curso da humanidade, em um encontro com as notícias positivas do Evangelho, que abriu novos horizontes para as mentes, corações e existências das pessoas. Em todas as épocas, a combinação da força interna da mensagem cristã e das reflexões eternas sobre a busca da humanidade enriquece novamente o pensamento criativo que Deus concedeu aos homens.

A teologia patrística continua sendo uma fonte fecunda para a teologia atual e futura, que, como disse o teólogo romeno Pe. Dumitru Stăniloae: “deve estar aberta a toda a realidade histórica e cósmica, mas, ao mesmo tempo, deve ser espiritual. Deve ajudar todos os cristãos a alcançar uma nova espiritualidade proporcional tanto às dimensões cósmicas da ciência e da tecnologia quanto à comunidade humana universal”[16].

Especialmente no que diz respeito à delicada questão da relação entre a fé cristã e as ciências, a Igreja Ortodoxa evitou tentar ser guardiã da evolução dos esforços científicos, apressando-se a tomar posição sobre cada questão científica emergente, como certas Igrejas no Ocidente têm sido propensas a fazer. Para a consciência ortodoxa, a liberdade de pesquisa é um dom de Deus à humanidade. Felizmente, a tradição oriental tentou, tanto quanto possível, evitar qualquer conflito entre ciência e teologia, por causa da dupla metodologia dos Padres Ortodoxos, que se baseia em uma distinção ontológica entre criado e incriado.

Ao mesmo tempo que essa postura positiva, porém, o pensamento cristão observa: primeiro, os perigos que espreitam por trás de certas conquistas científicas; segundo, os limites do conhecimento humano; e terceiro, a existência de outra forma de "conhecimento". Esta última não está sujeita ao campo científico, mas se mostrou necessária de muitas maneiras para a demarcação adequada da liberdade e o uso dos frutos da ciência – restringindo o egocentrismo e enfatizando a unidade última da verdade, da beleza e do amor.

Finalmente, a intensidade e a amplitude da experiência litúrgica da Ortodoxia, e o ethos ascético frequentemente associado a ela, são comumente reconhecidos como de especial importância para as discussões religiosas europeias modernas. A isso podemos acrescentar a persistente referência festiva à Ressurreição. Unidos organicamente a Cristo, que assumiu e redimiu toda a natureza humana por meio de Sua Cruz e Ressurreição, os fiéis são chamados a abraçar a todos e a tudo com esperança e sem medo. Com o amor perfeito, que "lança fora o medo" (João I, 4, 18). Na visão ortodoxa das coisas, a Igreja não é uma comunidade fechada de salvos que desfrutam exclusivamente dos dons de Deus e reivindicam confortos, privilégios e autoridade secular. É a comunidade eucarística dos fiéis que vivem e celebram a experiência da Ressurreição, da vitória sobre a morte. E com esta verdade ela acende e transforma a vida do mundo inteiro, em liberdade e amor.

Amados,
No início do século passado, Oswald Spengler[17] afirmava que havia uma evolução natural das grandes civilizações: nascimento, desenvolvimento, florescimento, maturação, envelhecimento e, finalmente, morte. Sua visão era de que a civilização ocidental havia alcançado esse último estágio. Muitas vozes se levantaram contra essa visão, entre as quais se destaca a posição de Arnold Toynbee[18]. Ele apontou a diferença entre progresso material e tecnológico, por um lado, e progresso real, por outro, que ele chama de “espiritualização”. Ele vê as raízes da crise no mundo ocidental em seu afastamento da experiência religiosa e na adoção do culto à tecnologia, à nação e ao establishment militar. E equipara a crise à secularização. Como tratamento, recomenda o reforço do elemento religioso. Ao conceito de declínio biológico, ele opõe a posição volitiva, baseada na robustez e vitalidade de minorias criativas e personalidades excepcionais.

Somos chamados a ser exatamente essa minoria criativa. Mas, para estar à altura de seu papel histórico e contribuir para o caminho espiritual da Europa, a Igreja Ortodoxa deve, antes de tudo, ser coerente com sua natureza sacramental e salvífica. Ela deve permanecer o que é em essência: a arca da verdade que o Deus Trino revelou; a manifestação da dispensação de Deus em Cristo por meio do Espírito Santo; o lugar onde a transfiguração da pessoa se realiza; a transcendência de sua angústia existencial; e sua união com o Deus de amor.

É esta Ortodoxia que devemos representar na Europa e em todo o mundo. Não nos preocupemos por não pertencermos à maioria. O que é necessário é que nos tornemos um núcleo criativo que permita à Europa revelar e desenvolver os melhores elementos de sua herança e avançar para um novo período de vigor espiritual.

Discurso por ocasião da outorga do título de Doutor Honoris Causa no Departamento de História da Universidade Jônica ao Arcebispo Anastácio de Tirana, Dürres e Toda a Albânia, Professor Emérito da Universidade de Atenas e Membro Honorário da Academia de Atenas (Corfu, 20/03/2007)
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[14] Tomo nota das palavras de um destacado teólogo da Igreja Ortodoxa, Professor e Académico, num dos seus últimos discursos na Academia de Atenas (“A Universalidade da Salvação em Cristo”): “Não só os cristãos, mas também os não cristãos, os infiéis e os gentios podem tornar-se ‘co-herdeiros, membros do mesmo corpo e participantes da promessa em Cristo Jesus’ (Ef. 3, 6) através da Igreja à qual os gentios e os heterodoxos podem pertencer invisivelmente com base na força da sua própria fé e na graça salvadora que lhes foi concedida por Deus”. I. N. Karmiris, «Η παγκοσμιότης της εν Χριστώ σωτηρίας», Actas da Academia de Atenas, ano 1980, vol. 55, Atenas 1981, pp. Idem, «Η σωτηρία των εκτός τής Εκκλησίας ανθρώπων του Θεού», Proceedings of the Academy of Athens, ano 1981, vol. 56, Atenas 1982, pp.

15] Citado como «Μήνυμα αγάπης χωρίς διακρίσεις στέλνουν οι προκαθήμενοι των Ορθοδόξων Εκκλησιών από τα Ιεροσόλυμα», nos jornais Kathimerini e Eleftherotypia de 8.1.2000.

[16] D. Staniloae, Teologia e a Igreja, Seminário de São Vladimir, Crestwood, Nova Iorque, 1980, p. 226.

[17] Der Untergang des Abendlandes, 2 vols. 1ª ed. Munique, 1918-22.

[18] A Study of History, ed. resumida, Oxford, 1987.

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