ENTREVISTA COM O PADRE ABRAÃO (SERAFIM) - PARTE 1

SERAFIM Abraão, Padre
Hierodiácono do Mosteiro Ortodoxo Sérvio da SS. Trindade em Camaragibe

Bispo Kirilo (Bojovic) ordenando o Padre Abraão (Serafim) diácono em Buenos Aires


1) Acredito que o senhor, como a maioria dos nordestinos, tenha vindo de uma formação católica familiar tradicional. O que lhe levou buscar a conhecer a Ortodoxia e converter-se? Como sua família reagiu à sua conversão?

Sim, como muitos nordestinos, venho de uma formação tradicional católica. Minha família, embora hoje esteja dividida entre católicos e protestantes, sempre teve os valores familiar e a fé como um pilar. Lembro com carinho de minha avó paterna Helena — uma mulher de profunda fé e zelo, que transmitiu esses valores familiares e cristãos às gerações seguintes. Ela foi, sem dúvida, o alicerce espiritual de nossa família, piedosa. Rezava o terço todos os dias. Certa vez, na minha infância, me colocou de castigo na semente de feijão no canto da parede de joelhos por 1 hora, só por falar o nome "demônio" em sua casa. E aí, aí daquele que fosse falar mal da sua fé e da Santíssima Virgem Maria! Ela colocava para correr debaixo de vassouradas (risos). Não sabia eu que ela já estava me educando na fé desde cedo.

O que me levou a buscar a Ortodoxia foi uma sede — sede de Deus. Era 2008, eu estava na adolescência, na época tinha 18 anos, vivendo em meio a brigas familiares e ambiente tenso. Tudo era insuportável para mim. Era como estar numa guerra, mas sem balas ou mísseis — somente palavras duras. Aquele lar que, na infância, era um espaço de ensinamentos cristãos e valores familiares ensinado pela minha avó, havia ficado na minha infância. Tudo isso me fez afastar, dos meus pais, amigos e familiares.

Na época, ainda fiel pertencente da igreja romana, procurei conselhos para as minhas enfermidades — não era uma enfermidade metal, porque eu não estava louco, era uma enfermidade na alma. Mas, não encontrei ali o remédio para minha alma que tanto procurava. Acabei me afastando da igreja por 5 anos. Em 2009 fui fazer um curso em outra cidade para me afastar do convívio familiar porque já não suportava mais o ambiente tenso de brigas. Em 2010 terminei o curso, voltei para minha cidade e comecei a procurar emprego visando me tornar independente e sair de casa. Foi exatamente em setembro de 2012 que uma situação familiar aconteceu e me fez entender tudo com mais profundidade espiritual. Voltei à igreja romana em 2013, mesmo ainda me sentindo distante. Comecei a fazer alguns bicos de trabalho enquanto procurava emprego na minha área de formação. Finalmente, no ano de 2015 consegui um emprego na área de formação, e na primeira semana de trabalho, conheci um amigo que hoje considero meu irmão na fé. Fomos recebidos juntos pelo Sacramento do Santo Crisma na Igreja Ortodoxa do Patriarcado Sérvio.

Após um ano de trabalho em minha área de atuação optei por sair porque a condição de trabalho que eramos submetidos era insalubre para continuar. Naquele tempo, eu ainda não era ortodoxo, mas sabia que algo havia mudado em mim. Comecei a buscar um estilo de vida mais desapegado das coisas materiais e mundanas nas ordens religiosas da igreja romana. Cheguei até a frequentar a Ordem Franciscana dos Frades Menores em 2016, mas não permaneci. Com certeza Deus tinha outros planos para mim. Foi então que esse amigo do trabalho começou a me apresentar a Ortodoxia, emprestando livros e enviando links sobre a História da Igreja e a fé dos Santos Padres que era o havia disponível na internet.

Um livro, em especial, marcou minha jornada para a Ortodoxia: Os Relatos do Peregrino Russo. A experiência de oração do peregrino, sua fé, sua caminhada até Deus, era exatamente o que eu buscava. Decidi dar o primeiro passo. Era um domingo do mês de junho de 2016, já estava em Recife, decidi ir à Divina Liturgia na Paróquia Ortodoxa Sérvia da Dormição da Mãe de Deus, que na época funcionava numa sala comercial na Rua do Sossego, Recife. Antes mesmo de entrar no local, senti que o ar era diferente — sabia que aquele lugar era santo.

Fui recebido com muito carinho e atenção pelos Arciprestes Alexis (Alfaro) e Rafael (Queiroz) e toda a comunidade. Quando a Liturgia começou, fiquei paralisado, contemplando tudo: os hinos, os ícones, o incenso, as leituras e, sobretudo, o momento mais sublime: “os Santos Dons aos santos”, na pronúncia destas palavras que saía da boca do Padre senti que alguém estava me convidando. Não tenho palavras para descrever — só posso dizer que eu estava em Casa.

Passei a frequentar a Divina Liturgia regularmente, tornei-me catecúmeno e, na Páscoa de 2017, fui recebido pelo Sacramento do Santo Crisma com o nome de Serafim em homenagem à São Serafim de Sarov, com meu irmão na fé Macário em homenagem à São Macário do Egito. Desde então, minha caminhada na Ortodoxia tem sido uma resposta àquela sede profunda que me acompanhava desde a juventude.
 
Quanto à reação da minha família, no início houve certa desconfiança e medo para que eu não entrasse em algum tipo de seita, pois sabemos que o Brasil é um país laico e tem de tudo o se possa imaginar. A Ortodoxia ainda é pouco conhecida por muitos, e naturalmente surgiram dúvidas e questionamentos. Mas com o tempo, ao verem minha caminhada, minha paz interior e o zelo com que vivo minha fé, acabaram aceitando. Hoje, mesmo com diferenças religiosas, há respeito mútuo, eles até me visitam ocasionalmente e participam da Divina Liturgia — e isso é uma graça.


2) Conte-nos sobre a vida monástica ortodoxa no Brasil. Existem poucos mosteiros ortodoxos pelo território brasileiro e poucos monges, de onde conseguir reconhecer um chamado tão sério sem ter muitas escolhas?

A vida monástica ortodoxa no Brasil ainda é uma semente que começa a brotar. Diferente de países com tradição ortodoxa milenar, como Grécia, Rússia, Sérvia e outras, aqui os mosteiros são poucos, discretos e muitas vezes desconhecidos até mesmo pelos fiéis ortodoxos. Isso, no entanto, não diminui sua importância — pelo contrário, torna cada vocação ainda mais preciosa.

Reconhecer um chamado monástico num país onde há escassez de mosteiros e monges é como ouvir uma voz suave em meio ao barulho do mundo. Não é fácil. O monaquismo ortodoxo exige renúncia, silêncio, obediência e uma entrega total a Deus. E quando não há referências próximas, essa entrega se torna ainda mais desafiadora.

No meu caso, o chamado não veio como um trovão, mas como uma brisa persistente. Desde que entrei na Igreja Ortodoxa, comecei a sentir uma atração profunda pela vida monástica. Era como se algo dentro de mim dissesse: “É por aqui.” Mas não havia mosteiro por perto, nem monges com quem conversar, pois eu morava numa cidade do interior do estado de Pernambuco . Então, comecei a buscar por conta própria — lendo os escritos dos Santos Padres, assistindo vídeos de mosteiros no exterior, e, sobretudo, mergulhando na oração.

O livro Relatos de um Peregrino Russo voltou a ser meu companheiro. A oração do coração, o silêncio interior, o desapego — tudo isso começou a fazer sentido. E mesmo sem ter um mosteiro físico ao meu alcance, percebi que o chamado não depende da geografia, mas da disposição da alma.

Conheci, depois, o Mosteiro de São Nicolau, na cidade do Conde, Paraíba, ligado à Igreja Ortodoxa Polonesa. Um oásis espiritual no meio do nordeste. Lá, pude ver com os meus próprios olhos o que antes só imaginava: um monge, o Arquimandrita Jerônimo (Alves), Abade do mosteiro, vivendo em simplicidade, oração contínua e trabalho manual. Foi como encontrar um farol em meio à neblina.

Hoje, sei que o chamado monástico é uma vocação que precisa ser discernida com cuidado, paciência e acompanhamento espiritual. Mesmo com poucos mosteiros, há caminhos. Alguns brasileiros vão para mosteiros no exterior, outros ajudam a fundar comunidades locais como o Arquimandrita Jerônimo e o saudoso de memória eterna Arquimandrita Pedro (Siqueira). O importante é, não sufocar o chamado devido às dificuldades — porque onde há vocação, Deus abre portas.

A vida monástica no Brasil ainda é pequena, mas é viva. E talvez, justamente por ser pequena, seja mais luminosa — como uma vela acesa na escuridão. Para quem sente esse chamado, o primeiro passo é abrir o coração. O resto, Deus providencia.


3) Fale-nos sobre o nosso querido Arquimandrita Pedro (Siqueira), de bem-aventurada memória; conte-nos um pouco de sua experiência junto dele.

É difícil falar do Arquimandrita Pedro e as lágrimas não virem aos olhos... Cristo Ressuscitou dos mortos, pela morte Ele venceu a morte aos que estavam no túmulo Cristo deu a vida, é o que diz o Tropário Pascal. E é nessa esperança que vivemos, esperança de um dia todos estarmos unidos em Cristo. Falar do Arquimandrita Pedro, de bem-aventurada memória, é como abrir uma janela para a luz da santidade que ainda brilha entre nós. Ele não foi somente um sacerdote ortodoxo — foi um verdadeiro pai espiritual no significado total da palavra, um confessor, um amigo, um irmão, um monge e um construtor silencioso da fé no Brasil com toda a comunidade ortodoxa, uma alma que irradiava amor, bondade, acolhimento e paz.

Conheci o Arquimandrita Pedro num momento em que minha caminhada na Ortodoxia ainda estava se firmando, era a comemoração dos 30 anos de Ortodoxia no Nordeste, ele estava muito atarefado servindo os fiéis, eu era tímido, meu irmão Macário tomou a palavra e disse a ele: “Ele quer ser monge”. Lembro-me como se fosse hoje, ele me olhou nos olhos e disse: “Venha visitar o mosteiro quando quiser”, aquelas palavras alegraram o meu coração. Eu já havia sido recebido na Igreja, mas ainda buscava compreender mais profundamente o espírito monástico, a tradição dos Santos Padres e o coração da fé ortodoxa. 

Foi então que, por providência divina e a bênção de Sua Eminência o Bispo Kirilo (Bojovich), Bispo da Diocese de Buenos Aires, América do Sul e Central e o encaminhamento do Arcipreste Alexis da Paróquia Ortodoxa Sérvia da Dormição da Mãe de Deus em Recife, fui enviado ao Mosteiro Ortodoxo Sérvio da Santíssima Trindade, Camaragibe, Aldeia, Pernambuco — lugar onde ele viveu seus últimos anos como Abade e onde começou a minha jornada monástica.

A primeira vez que estive com ele, lembro-me como se fosse hoje, não houve discursos longos nem formalidades. Ele me recebeu com um sorriso sereno, um olhar penetrante e uma palavra simples: “Seja bem-vindo.” Mas naquela simplicidade havia uma profundidade que me tocou imediatamente. Era como se ele enxergasse além das aparências, como se ele visse a alma.

No início da minha experiência monástica fazia toda a obediência que me era dada com o objetivo de aprender o que é a verdadeira obediência, era difícil, eu tinha um temperamento muito explosivo, tinha dificuldade de receber ordens, principalmente quando o trabalho já havia iniciado, e, o Arquimandrita Pedro com sua paciência e amor uma vez me disse: “Tudo o que você for fazer, seja pela Igreja ou pelo próximo, faça como se estivesse fazendo para o próprio Cristo, porque quando você atingir o estado da mente de Cristo, você vai entender que não haverá mais irritação, não haverá mais inquietação, não haverá mais angústias, não haverá mais dores, não haverá mais nada, somente você e Cristo.” Estas palavras marcaram a minha vida e me ajudaram a crescer dia a dia não só como monge mas também como pessoa e as levarei para todo o sempre.

O Arquimandrita Pedro era um homem de oração. Sua vida era marcada por uma disciplina espiritual que não se impunha, mas inspirava. Ele acordava cedo, celebrava a Liturgia com devoção, lia os textos dos Santos Padres, se preparava para as homilias com antecedência e dedicava-se à tradução e publicação de obras ortodoxas em português através da Editora São Sava — um trabalho monumental que permitiu que muitos brasileiros tivessem acesso, à riqueza da espiritualidade ortodoxa.

Conversar com ele era como beber de uma fonte limpa. Ele falava sempre nos momentos necessários, mas cada palavra carregava sabedoria. Lembro de uma vez em que eu lhe perguntei sobre o discernimento vocacional. Ele me olhou com ternura e disse: “A vocação não é uma escolha nossa. É uma resposta. E só se responde com silêncio e oração.” Aquilo ficou gravado em mim.

Mesmo com a saúde já fragilizada, ele nunca deixou de servir a Divina Liturgia, a não ser quando realmente não a podia fazer. Sua presença no Mosteiro era como a de um farol — discreta, mas firme. E ao lado dele, o então Noviço Serafim e hoje Hierodiácono Abraão, que tenta com a graça de Deus continuar a sua missão com zelo e fidelidade.

No dia 9 de outubro, conforme o calendário ortodoxo, quando a Igreja celebra a memória do Santo Apóstolo e Evangelista João, o Teólogo, que ele nos ilumine com a Sabedoria que vem do alto, eu na época Noviço Serafim fui tonsurado monge, recebendo o nome de Abraão. A data, marcada pela profundidade teológica e mística do discípulo amado, tornou-se ainda mais significativa com bênção de Sua Eminência, o Bispo Kirilo, Bispo da Diocese de Buenos América do Sul e Central, tive a honra e graça de ser tonsurado monge rasophoros pelas mãos do Arquimandrita Pedro, de eterna memória — um pai espiritual cuja presença e legado continuam a ressoar na vida monástica daqueles que o conheceram.
 
Ser recebido por suas mãos foi, para mim, uma graça incomensurável. Não apenas pela autoridade espiritual que o Arquimandrita Pedro representava, mas pela ternura e firmeza com que transmitia o espírito da tradição ortodoxa. Sua presença naquele momento selou um compromisso que transcende o tempo: o de viver segundo o chamado divino, com humildade, castidade, obediência, renúncia e amor.

A escolha do nome Abraão não foi casual. Assim como o Santo Profeta e Patriarca Abraão, que deixou sua terra, sua parentela e tudo o que lhe era familiar para seguir a voz de Deus, o monge também abandona o mundo — não por desprezo, mas por amor maior a Deus. Compreendo a vida monástica como um êxodo interior, uma peregrinação constante rumo à vontade divina. Para mim, ser monge é viver em escuta, em silêncio e em entrega, permitindo que a graça de Deus transforme o coração em altar.

Após um ano como monge, no dia 8 de novembro de 2023, festa do Santo Grande Mártir, Demétrio, tive a honra e graça de ser ordenado diácono pelas mãos de Sua Eminência Bispo Kirilo, em Buenos Aires. A presença do Arquimandrita Pedro neste dia foi um presente providencial — como se o céu confirmasse, mais uma vez, o caminho trilhado. A ordenação não foi apenas um rito, mas uma consagração ao serviço da Igreja, ao altar, à proclamação da Palavra e ao cuidado com o povo de Deus.

Hoje vejo os ofícios da Igreja como manifestações vivas do Reino de Deus. Cada serviço litúrgico, cada oração, cada gesto no altar é, para mim, uma participação no mistério da salvação. O diaconato, é a extensão da vida monástica: servir com humildade, preparar o caminho para o Senhor, ser ponte entre o céu e a terra.

O falecimento do Arquimandrita Pedro, foi sentido como uma perda profunda, mas também como uma entrega serena. Ele repousou no Senhor como viveu: em paz, em oração, em comunhão com Cristo. E embora tenha partido, sua obra permanece — nos livros que auxiliou a traduziu, nas almas que tocou, e no legado espiritual que deixou.

Para mim, ter convivido com ele estes sete anos, foi um presente dado por Deus. Ele me ensinou que a santidade não faz alarde — ela se revela no cotidiano, no silêncio, na fidelidade e acima de tudo na oração. E é essa memória que guardo com gratidão.

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