OS POBRES EM ESPÍRITO

SANTA MARIA DE PARIS
traduzido pelo sacerdote Tito (Kehl)



Para muitas pessoas, eventualmente a promessa da Beatitude dos “pobres em espírito” pode parecer incompreensível. E o que parece incompreensível, é aquilo que deve ser entendido pela expressão “pobreza em espírito”. Alguns fanáticos veem isso, como consistindo num empobrecimento do espírito, numa libertação de todo tipo de pensamento, para que não se afirme a pecaminosidade de qualquer pensamento, de qualquer vida intelectual. Outros, que discordam dessa explicação, veem na palavra “espírito” uma interpolação tardia que não teria existido no texto original do Evangelho.

 Podemos perceber como é necessário entender essa expressão.

 No momento da tonsura monástica, a pessoa tonsurada faz, dentre outros votos, o de nada adquirir para si, vale dizer, o voto de pobreza, que pode ser entendido no sentido material, ou seja, na renúncia a toda e qualquer acumulação de riqueza em bens materiais. O cumprimento estrito desse voto deve levar à bênção da pobreza, mas esse sentido materialista e estrito ainda não é capaz de revelar a totalidade do conceito: “abençoados são os pobres em espírito”.

O voto de nada adquirir para si pode e deve ser ampliado ainda para a esfera espiritual, e a pessoa que o abraça, renunciando assim à aquisição espiritual, receberia a pobreza espiritual e suas correspondentes bênçãos. Mas no que consiste essa não-aquisição espiritual?

Em oposição à não-aquisição existem, em geral, dois vícios, que na vida monástica cotidiana pouco se diferenciam: os vícios da mesquinharia e da ganância. Ao analisá-los, podemos ver que a pessoa mesquinha pode não ser gananciosa, e que o ganancioso pode mesmo ser pródigo. Podemos apresentar esses dois vícios segundo a seguinte fórmula. O mesquinho diz: “o que é meu, é meu”, mas em geral ele não completa com: “o que é seu, é meu também”. Por sua vez, o ganancioso diz: “o que é seu, é meu”, mas nem sempre fala: “o que é meu, é também meu”. Em especial, ele pode querer tomar de um estranho, ao mesmo tempo em que não se preocupa em guardar o que é seu, nesse mesmo caso. Isso pode acontecer, certamente, num estágio de ganância que se combina com a mesquinhez, e vice-versa. É quando se fala: “o que é meu, é meu, e o que é seu, é meu também”.

A pessoa que busca a não-aquisitividade, deve ser livre, tanto da mesquinhez, como da ganância, e deve dizer: “o que é meu, é seu, e o que é seu, é seu também”. Mas seria simplista pensar que isso se relaciona apenas aos bens materiais. A não-aquisição, a ausência de mesquinhez e ganância devem estar relacionadas com todo o mundo interior da pessoa. Sabemos que Cristo nos disse para entregarmos nossa vida, nossa alma, pelos outros – e aqui, essa entrega da alma, essa renúncia, essa capitulação, é também aquilo que torna a pessoa pobre em espírito. Porém, na vida monástica de cada dia, ao contrário, mesmo havendo uma atitude negativa em relação às aquisições materiais, estamos acostumadas a considerar a guarda espiritual pessoal como algo positivo. Isso é terrível, porque se trata, não de um pecado material, mas de um pecado espiritual. Sendo assim, uma virtude de não-aquisitividade, entendida espiritualmente, deve tornar a pessoa aberta para o mundo e para os demais. A vida fora da Igreja, e também com frequência um entendimento distorcido do Cristianismo, nos habituou a uma acumulação de riquezas interiores, e a um amor exterior à curiosidade bisbilhoteira – isso é, uma ganância em relação ao mundo espiritual daqueles próximos a nós. Muitas vezes ouvimos que a pessoa, em seu amor, deve conhecer uma medida, limitar a si mesma – e isso significa vigiar-se, para seu próprio benefício espiritual, para seu próprio caminho de salvação.

Mas Cristo não tinha limites em Seu amor pelas pessoas – e, em Seu amor, Ele rebaixou a Si próprio em Sua Divindade, a ponto de se encarnar como Homem e tomar sobre Si os sofrimentos de todos. Nesse sentido, Ele nos ensinou por Seu exemplo a amar, não com medidas e limites, mas de uma forma absoluta e com uma incomensurável renúncia a nós mesmos, a ponto de entregarmos nossa alma pelos demais.

Sem um esforço no sentido dessa renúncia de si, não existe Cristianismo, não existe seguimento ao caminho de Cristo.

E não foi Cristo, mas sim um ideal externo ao Cristianismo, que nos disse para cumularmos riquezas internas e externas. Sabemos ao que conduz esse ideal, conhecemos o egoísmo e o egocentrismo que reina no mundo, sabemos o quão concentrados somos sobre nós mesmos, sobre nossa paz de alma, sobre nossos múltiplos interesses. Sabemos muito bem disso. A guarda de nosso próprio mundo espiritual, o fecharmos os olhos, nos conduzem a isso: nós como que nos envenenamos, começamos a apodrecer, perdemos a alegria, tornamo-nos intolerantes, caímos na indiferença. Paradoxalmente, empobrecemo-nos quando fugimos do processo de nos vigiarmos, porque degeneramos num eterno amor próprio e egocentrismo. Os mendigos, os pobres, cuidam dos seus farrapos e não sabem que o único sentido disso consiste em não guardá-los, mas em transformar esse trapos em riquezas, o que significa, dá-los com alegria e amor, para qualquer um que necessite.

E por que?

Esses farrapos são as riquezas corruptíveis do reino desse mundo. Dá-los, dar-se inteiramente, entregar sua alma, isso faz com que a pessoa se torne pobre em espírito, abençoada, porque dela é o Reino dos Céus, conforme a promessa do Salvador, porque a partir daí ela se torna possuidora de uma riqueza incorruptível e eterna desse Reino – e isso começa já nessa terra, ao encontrar uma alegria desmedida, a entrega de si num amor sacrificial, com o alívio e a liberdade da não-aquisitividade.

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