CATEQUESES DO METROPOLITA HILARION (ALFEYEV) - PARTE V

ALFEYEV, Metropolita Hilarion 
tradução de monja Rebeca (Pereira)

Os anjos
“No princípio Deus criou o céu e a terra”(Gn. 1, 1). Este versículo nos indica que a criação de Deus se divide em mundo invisível, espiritual, inteligível e num mundo visível, material. Vemos que na linguagem bíblica não existem conceitos abstratos e que a realidade espiritual é geralmente expressa pela palavra “céu”: "Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome. Venha o Teu Reino. Seja feita a Tua vontade, tanto na terra como no céu" (Mt. 6, 9-10). Aqui não se faz alusão ao céu material, visível. O Reino de Deus é o Reino espiritual e não material, e Deus sendo da natureza do Espírito, nele habita. Ao dizer "Ele cria o céu”, faz-se necessário compreender o mundo espiritual, com todos aqueles que nele habitam, quer dizer os anjos.

Deus cria o mundo angélico antes do universo visível. Os anjos são espíritos auxiliaries, incorporais, dotados de inteligência e de vontade livre. João Damasceno evoca “o leve, o ardente, o penetrante, o agudo” que descrevem bem o elan a Deus e o divino ofício, sua mobilidade, sua tensão constante ao alto e que lhe faz afastar todo pensamento material. Ele chama de igual modo os anjos de “luzes secundárias que recebem sua iluminação da luz primária e sem princípio”. Vivendo à proximidade imediata de Deus, alimentam-se de Sua luz e no-la transmitem.

A atividade principal dos anjos é a de elevar um louvor perpétuo a Deus. O profeta Isaías descreve a visao do Senhor em torno do qual se poem os Serafins, clamando: “Santo, Santo, Santo, o Senhor Sabaoth! O céu e a terra estão cheios da Sua glória!”(Is. 6, 1-3). Os anjos são também os mensageiros de Deus junto dos homens (em grego aggelos significa “mensageiro”): ele ocupam uma parte viva e ativa na vida dos homens. Assim, por exemplo, o arcanjo anuncia a Maria que Ela irá conceber Jesus: "pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor" (Lc. 2, 11), os anjos servem Jesus no deserto: "Então, o diabo o deixou; e, eis que chegaram os anjos e o serviram" (Mt. 4, 11), um anjo fortalece Jesus no Jardim do Gethsemani: "E apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava" (Lc. 22, 43), um anjo anuncia as mulheres miróforas a ressurreição de Jesus: "E eis que houvera um grande terremoto, porque um anjo do Senhor, descendo do céu, chegou, removendo a pedra, e sentou-se sobre ela. E o seu aspecto era como um relâmpago, e a sua veste branca como a neve" (Mt. 28, 2-7). Cada ser humano tem seu anjo guardião que o acompanha, lhe socorre e protege.

Todos os anjos não são iguais por aquilo que lhes cabe sua dignidade ou sua proximidade a Deus; existed entre eles diversas hierarquias que estão submissas umas às outras. No tratado “Sobre a HIerarquia Celeste”, atribuido a São Dionísio o Areopagita, o autor demonida três hierarquias angelicas, divididas cada uma em três ordens. A primeira hierarquia, a mais alta, correspondem os Serafins, os Querubins e os Tronos, à segunda as Senhorias, os Poderes e as Potestades, a Terceira os Principados, os Arcanjos e Anjos.

Na hierarquia celeste, as ordens superiors recebem sua iluminação da luz Divina e sua capacidade de comungar aos mistérios Divinos diretamente do Próprio Criador, as inferiors as recebem por intermediário das superiors. A hierarquia angélica segundo Dionísio, passa na hierarquia da Igreja terrestre (bispos, sacerdotes, diáconos), que comungam ao mistério divino por intermediário da hierarquia celeste. Em relação ao número de anjos, evocamos em termos gerais: “mil milhares”e “dez mil milhões”(Dan. 7, 1). Como for, eles são mais numerosos que os homens. São Gregório de Nissa vê na ovelha perdida toda humanidade, e nas 99 que se não perdem, o mundo angélico.

A origem do mal
Na aurora da vida do ser criado, antes mesmo da criação por Deus do mundo visível, mas após a criação dos anjos na esfera espiritual, se produz uma catástrofe de dimensão cósmica, que conhecemos somente suas consequências. Uma parte dos anjos revoltados contra Deus se desprendem d’Ele e tornam-se hostis a tudo que é bom e santo. No commando da milícia decaída existia Lucifer, cujo nome (palavra por palavra: portador de luz) mostra que ele era bom originalmente, mas em seguida, seguindo sua própria vontade, “se desvia, em sua liberdade e sua decisão própria, da lei para ir contra a lei e se retira d’Aquele que o havia criado, Deus, desejando resisti-Lo, ele é o primeiro que rejeita o bem e escolhe o mal”. Lucifer, o qual chamamos também de diabo ou Satã pertencia a uma das ordens superiors da hieraquia angélica. Ele leva outros anjos em sua queda, o que testemunha figurativamente o Apocalipse: “E, havendo aberto o sétimo selo, fez-se silêncio no céu quase por meia hora. E vi os sete anjos que estavam diante de Deus, e foram-lhes dadas sete trombetas. E veio outro anjo e pôs-se junto ao altar, tendo um incensário de ouro; e foi-lhe dado muito incenso, para o pôr com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro que está diante do trono. E a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos desde a mão do anjo até diante de Deus. E o anjo tomou o incensário, e o encheu do fogo do altar, e o lançou sobre a terra; e houve depois vozes, e trovões, e relâmpagos, e terremotos. E os sete anjos, que tinham as sete trombetas, prepararam-se para tocá-las. E o primeiro anjo tocou a trombeta, e houve saraiva e fogo misturado com sangue, e foram lançados na terra, que foi queimada na sua terça parte; queimou-se a terça parte das árvores, e toda a erva verde foi queimada. E o segundo anjo tocou a trombeta; e foi lançada no mar uma coisa como um grande monte ardendo em fogo, e tornou-se em sangue a terça parte do mar. E morreu a terça parte das criaturas que tinham vida no mar; e perdeu-se a terça parte das naus. E o terceiro anjo tocou a trombeta, e caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha, e caiu sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes das águas. E o nome da estrela era Absinto, e a terça parte das águas tornou-se em absinto, e muitos homens morreram das águas, porque se tornaram amargas. E o quarto anjo tocou a trombeta, e foi ferida a terça parte do sol, e a terça parte da lua, e a terça parte das estrelas, para que a terça parte deles se escurecesse, e a terça parte do dia não brilhasse, e semelhantemente a noite”(Apo. 8, 1-12). Alguns comentaristas veem nestas palavras a indicação de que a estrela da manhã leva em sua queda o terço dos anjos.

O diabo e os demônios foram imersos nas trevas em função suas livres e próprias vontades. Toda criatura viva e racional, anjo ou homem, recebeu de Deus uma vontade livre, quer dizer o direito de escolher entre o bem e o mal. A vontade livre foi dada ao ser vivo para que, aprendendo o bem, ele possa comungar ontologicamente a este bem, para que o bem, em outros termos, não permaneça um dom concedido do exterior, mas torne-se seu próprio apanágio. Se o bem tivesse sido imposto por Deus como uma necessidade ou uma fatalidade, ser vivo algum teria podia tornar-se uma pessoa livre inteiramente. “Ninguém se tornou bom por coação”, diz São Simeão o Novo Teólogo. Crescendo continuamente no bem, os anjos deveriam alcançar a plenitude da perfeição, até se assimilarem inteiramente ao Deus hiperbom. No entanto, uma parte dentre eles não optou em favor de Deus, predeterminando assim seu próprio destino, ainda que o destino do universe que, a partir deste momento, se transforma numa arena ou se afrontam dois princípios opostos (ainda que desiguais entre eles): aquele do bem, Divino, e aquele do mal, demoníaco.

Acerca do afastamento de Deus deliberadamente provocado pelo diabo constitui uma resposta a eterna questão de toda filosofia concernindo a origem do mal. O problema da origem do mal se colocava com uma extrema acuidade ao pensamento teológico cristão, do fato de que ela não se chocava constantemente a teorias doutrinais filosóficas segundo as quais dois princípios de força igual – um bom, o outro mal – agiam no mundo desde as origens, reinam sobre ele e o despedaçam em fragmentos.
O pensamento cristão não se exprime nestes termos sobre a natureza e a origem do mal. O mal não é uma realidade original, co-eterna e igual a Deus, ele é um afastamento do bem, uma oposição a este. Neste sentido não é possível falar dele em termos de “ser”, pois ele não existe por si só. Assim como a obscuridade ou a sombra não são realidades independents, mas não passam da ausência de luz, da mesma forma o mal não passa da ausência do bem.

Deus não criou nada de mal: anjos, homens e mundo material, tudo isto é bom e belo por natureza. No entanto, os seres dotados de razão (homens e anjos) receberam como algo de próprio uma vontade livre, e têm a possibilidade de dirigir tal liberdade contra Deus e por lá mesmo engendrar o mal. É o que se produz. A estrela da manhã portadora de luz, criada boa em sua origem, faz mal uso de sua liberdade, desfigura sua própria boa natureza e se desvia da fonte do bem.

O Autor do mal
Em comparação com o ser Divino, a atividade do mal é ilusória e imaginária: o diabo é totalmente impotente lá onde Deus não autoriza suas intervenções ou, em outros termos, ele conduz suas intrigas somente no interior das fronteiras permitidas por Deus. No entanto, sendo caluniador e mentiroso, o diabo faz uso da mentira como de uma arma principal; ele engana sua vítima fazendo-lhe crer que ela detém uma força e uma autoridade ponderosas, enquanto na realidade esta força lhe falta. Seguindo o pensamento de Louis Bouyer, Vladimir Lossky remarca que no “Pai Nosso”, nós não pedimos para nos “livrar do mal”, quer dizer de não importa qual mal em geral, mas de “nos livrar do maligno”, de uma individualidade concreta que encarna o mal em si. Este “maligno”, que não era mal por natureza originalmente, é portador de este não-ser, desta in-existência que conduz à morte tanto ele próprio como aquele que ele faz vítima.

Deus não tem absolutamente contato algum com o mal, mas o mal se encontra sob Seu controle, na medida precisamente em que Deus delimita o campo onde o mal pode exercer sua atividade. Em outras palavras, seguindo as vias insondáveis de Sua Providência, Deus pode fazer uso do mal como de uma arma, no objetivo pedagógico ou ainda outro. Vemos nas passagens da Bíblia nas quais Deus envia o mal sobre os homens: por exemplo, Deus endurece o coração do Faraó (Ex. 4, 21; 7,3; 14, 4); Ele envia um espírito mal sobre Saul (I Sam. 16,14; 19,9); Ele dá ao povo “preceitos que não são bons”(Ez. 2, 25 segundo o texto hebreu e a versão dos LXX); Deus entregou os homens à “impureza”, “paixões infâmes”, a “seus sentidos reprovados”(Rom. 1, 24-28). Em todos estes exemplos não é questão de ver em Deus a fonte do mal, mas de dizer que tendo uma autoridade tanto sobre o bem como sobre o mal, Ele pode tirar partido do mal para obter um bem ou para livras os homens de um mal ainda maior.

Resta a incontornável questão: por que Deus tolera a existência do mal e do diabo? Por que Ele permite o mal? Santo Agostinho confessava que era incapaz de responder a tal questão: “Sou impotente a penetrar nas profundezas deste afazer divino, reconheço que isto ultrapassa minhas forças”, escreve ele. São Gregório de Nissa trazia uma resposta mais otimista: Deus permite ao diabo de agir durante somente certo tempo, mas virá no momento em que o mal “sera definitivamente apagado depois de longos ciclos de tempo”e onde “não permanecerá nada além do bem, e a senhoria de Cristo sera unanimemente confessado mesmo pelos demônios”. A crença na restauração final dos demônios e do diabo em seu estado inicial foi sustentada igualmente por Santo Isaac o Sírio, bem como por outros escritores da Igreja primitiva. No entanto, tal opinião jamais foi admitida no ensinamento da Igreja.

A Igreja sabe que o mal não é nem co-eterno com Deus nem igual a Ele. Que pelo fato do diabo ter se revoltado contra Deus e tornado ele próprio o rei e mestre do inferno não significa que seu reino dure para sempre. Mas ao contrário, como o veremos mais tarde, a escatologia crista é profundamente otimista e proclama com força sua fé na vitória final do bem sobre o mal, de Deus sobre o diabo, de Cristo sobre o Anti-Cristo. Mas quais serão as consequências desta vitória e qual será a final da existência do mal, isto está fora de nosso alcance de saber. Quando sonha a tal questão, o espírito humano uma vez mais faz silêncio face ao mistério, e permanence impotente, mergulhada nas profundezas dos destinos divinos. Assim como diz Deus no livro de Isaías: “Meus pensamentos não são vossos pensamentos, e vossas vias não são Minhas vias”(Is. 55, 8-9).

Comentários