SOBRE O ESPÍRITO SANTO - PARTE 2

 MESHCHERINOV Pyotr, Igumeno 
tradução de monja Rebeca (Pereira)



Vamos resumir. O Espírito Santo é recebido pelo homem, pela fé e pelo arrependimento, na Igreja – em seus Sacramentos, antes de tudo; na oração, no estudo da Palavra de Deus e na observância dos mandamentos de Deus – todos os mandamentos, não apenas os escolhidos. E esse Espírito é preservado pela purificação do coração das paixões, isto é, por meio do trabalho moral, todo-poderoso; esse trabalho é a proeza mais real. O homem "arranca" de si aquilo pelo qual seu coração é apaixonado, pela pureza, pela  liberdade, por Cristo – e se obriga a "corresponder" ao Espírito Santo. Tal é o ensinamento do Evangelho. Tal é também a experiência da Igreja – sua Santa Tradição. Não é algo rebuscado e abstrato. Por 2000 anos, pessoas – nem piores nem mais estúpidas do que meus contemporâneos – receberam o Espírito Santo, o Reino de Deus, a salvação, a comunhão com Cristo precisamente desta maneira e não de nenhuma outra. E a minha experiência coincidiu completamente com a experiência da Igreja (embora não coincidisse em todos os aspectos com a realidade da Igreja – repito, é necessário distinguir entre essas coisas). Acima, falei sobre o meu conhecimento do Espírito Santo. Assim, as minhas paixões interferem nesse conhecimento. Ele deixa a minha alma com arrependimento por elas, elas não Lhe agradam, são estranhas a Ele. E fui forçado durante muitos anos a lutar contra aqueles hábitos pecaminosos que adquiri antes do batismo. E não há fim à vista para esta batalha. Se você enfraquecer um pouco a sua atenção intensa – as paixões recuperam a força. E vejo que o Espírito Santo não as remove de mim imediatamente. Ele me ajuda a combatê-las – isso é óbvio para mim; mas Ele não as remove. Por quê? Ele sabe mais; olhando para a experiência da Igreja, vejo que esta é a Sua tática também com outras pessoas: as paixões diminuem muito gradualmente, com dificuldade, com a invocação constante da ajuda de Deus. E este é o caminho evangélico da cocriação de Deus e do homem; o caminho de uma vida cristã real, estreita, apertada, “cotidiana” – mas também livre, consciente e responsável.

Mas então um novo evangelho me chegou. Acontece que em vão tenho lutado contra paixões por anos, libertando-me dolorosamente de vários "obstáculos", rompendo com o verdadeiro significado da Igreja; em vão busco a Deus, orando a Ele para que venha diariamente e, finalmente, me purifique para que meus algozes – as paixões e aqueles que estão por trás delas – "me deixem em paz". Tudo isso, ao que parece, é invenção humana. Nada disso é necessário. Seja feliz. Não se preocupe. Não há necessidade de todas essas cruzes e tristezas. Isso tudo é doença mental. – Existe outro caminho. Você só precisa crer e pedir a Deus – Ele disse: o Pai Celestial dará o Espírito Santo àqueles que Lhe pedirem (Lucas 11:13), – e o Espírito virá imediatamente – pela fé. Sim, virá para que imediatamente se encha de todos os dons mencionados no livro de Atos dos Apóstolos – falar em línguas, curar, profetizar, etc. A pessoa será preenchida de alegria e energia, transformada... e assim por diante, e tudo isso – instantaneamente, de forma simples e irrepreensível (Tiago 1:5). Isso se chama "batismo no Espírito Santo".

Pare. Precisamos entender isso. Eu tenho mandamentos do Novo Testamento: cuidado com o modo como andais (Ef 5:15). O Apóstolo me adverte a não ser indulgente com outro evangelho (2 Co 11:4), e ordena: permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas (2 Ts 2:15). Minha tradição – a tradição da Igreja – diz: Confesso um só batismo (isto é, um só) para a remissão dos pecados (Símbolo da Fé); sei que a fé é a coisa mais importante, mas não a única, na organização da vida cristã: a fé é o seu princípio, e com ela devem vir as obras da fé (Tg 2:26). Mas aqui – outro batismo, e nada além da fé é especialmente necessário… algo mais. Então, precisamos entender isso.

Primeiro. "Creia – e pronto." Aqui, diante dos meus olhos, a ilusão mais feia está se fortalecendo e ganhando força na minha Igreja – o falso guruísmo místico. Ela sempre teve raízes na Igreja (Mt 23,2-12; 1Co 1,11-13), e é precisamente isso que desfigura a Ortodoxia e merece as críticas mais severas; em nossa época, essa visão, de alguma forma, "emergiu" de maneira especial. Ela se resume ao fato de que as pessoas não querem liberdade, têm medo da responsabilidade por sua vida cristã – e a empurram para os pais espirituais ("anciãos"), na esperança de que estes, independentemente dos esforços morais tanto das próprias pessoas quanto dos pastores, em virtude da fé e da obediência, recebam a orientação do Espírito. Mas no Evangelho não lemos assim: se o primeiro cego guia o segundo cego, mas o segundo acredita que o primeiro não é cego, e em virtude dessa fé entregou a si mesmo e toda a sua vida em suas mãos, então o primeiro cairá em um buraco, mas o segundo não, por causa de sua fé. Não. O Senhor disse: ambos cairão num só buraco (Mateus 15,14).

A fé, como um simples ato interno da alma, não é suficiente. Primeiro, pode-se facilmente acreditar em uma mentira, e tal fé será destrutiva, não salvadora – não é a fé em si que salva, mas o Salvador Cristo, em Quem e em Quem cremos; e, segundo, como já disse, a fé requer obras (Tiago 2:26), e as obras da fé são os mandamentos de Deus, que incluem aqueles que indicam a participação obrigatória nos Sacramentos.

Além disso. Sim, a palavra de Deus é imutável: Deus verdadeiramente dará o Espírito Santo àqueles que Lhe pedirem (Lucas 11:13). Mas: 1) o Senhor não disse que o daria imediatamente, aqui mesmo, neste exato segundo; mas falou sobre as condições em que o daria: guardai os Meus mandamentos, e Eu rogarei (!) ao Pai, e Ele vos dará... o Consolador (João 14:5-16; veja também Lucas 18:1-7); mas Ele não disse nada específico sobre o tempo, mas sempre enfatizou que este não é um ato único, mas um processo (Marcos 4:26-29). 2) Deus disse que daria o Espírito; mas Ele não disse que daria estes ou aqueles dons especiais do Espírito. E ele realmente dá o Espírito; Ele vive no homem, o ajuda a se purificar, preparando o coração humano como uma morada para Si mesmo; mas isso, repito, é um processo: o homem trabalha com todas as suas forças sobre si mesmo, e o Espírito Santo – aqui está Ele: intercedendo secretamente (Romanos 8:26), fortalecendo-se através dos Sacramentos da Penitência e da Comunhão, cada vez mais é dado ao homem se seu coração se torna mais puro pela observância dos mandamentos. – É necessário distinguir entre os dons do Espírito e os frutos do Espírito. Os dons estão nas mãos de Deus: Ele os dá se quiser, ou não os dá se quiser, devido a condições muito diferentes, incluindo as históricas. E Deus não espera de nós dons, mas os frutos do Espírito (Gl 5:22-23); e os dons são Seus: se Ele vê os frutos, Ele dá os dons.

Em segundo lugar. Aqui li no jornal "Fé Viva" nº 7 de 2003: "...foi realizado um culto de oração, no qual cerca de 50 pessoas receberam o batismo do Espírito Santo." – O que aconteceu com essas cinquenta pessoas? Sua natureza decaída foi curada? As paixões desapareceram? Elas adquiriram, digamos, a "sutileza" da perfeição? – Minha experiência e minha Igreja me dizem que isso é impossível instantaneamente – falamos sobre isso acima. E a vida mostra: a partir de agora, a partir do dia deste batismo, os corações dessas pessoas não sentem hostilidade? luxúria? engano? ciúme? ganância? estupidez? teimosia? – Bem, pelo menos hostilidade à Ortodoxia (com completa ignorância dela, aliás): isso não é uma paixão? Não é indigno de uma pessoa portadora do Espírito? – Mas tanto a doença quanto a morte não nos abandonam.

Mas dirão: este batismo do Espírito é acompanhado de sinais e prodígios, e também da mais forte confiança subjetiva de que — aqui está Ele, o Espírito. Mas qualquer fé forte, em qualquer coisa, em qualquer ilusão, distingue-se pela confiança subjetiva; e quanto aos milagres, o oráculo de Delfos profetizou, e a estátua de Apolo chorou e voou pelo ar, e os ídolos hindus exalam leite, e os médiuns curam, e os xamãs mudam o clima, e em geral — falsos Cristos e falsos profetas surgirão, e farão grandes (!) sinais e prodígios para enganar, se possível, até os eleitos (Mt 24:24). A Igreja diz que o Espírito, sim, pode testificar por milagres, mas esta é a décima coisa, e a principal é uma mudança interna de coração, além disso, testada pela vida, trabalho e experiência (habilidade — Hb 5:14).

Em terceiro lugar. É um axioma que o Espírito é recebido na Igreja – é, de fato, por isso que ela existe. A Igreja, entre outras coisas, é integridade, completude e perfeição. Em particular, a Igreja percebe a Sagrada Escritura como um todo. Ela está atenta a cada letra, a cada significado dela. Para formar uma ideia de um assunto específico, a Igreja não se contenta com apenas um texto, mas reúne e leva em conta tudo o que é dito sobre esse assunto em toda a extensão da Escritura. Sim, há evidências na Escritura de alegria, liberdade, perdão, recebimento do Espírito Santo, Seus dons. Mas isso é apenas metade da batalha; a Escritura fala com não menos clareza sobre o trabalho por tudo isso, sobre a participação nos sofrimentos de Cristo (1 Pedro 4:13) – sobre o qual muito foi dito acima. Os fanáticos carismáticos do "batismo no Espírito Santo" não se contentam com apenas metade, apenas parte da Escritura? Mas ao fazer isso eles se encontram fora da Igreja, pois, como já disse, a Igreja é integridade e perfeição.

Além disso. Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem com Ele (Lucas 20:38). E a Igreja é a Igreja dos vivos; Jesus nos deu na Igreja a comunhão de todos no Espírito Santo. Essa comunhão é absolutamente real, vital – não apenas com os cristãos que vivem hoje, mas também com aqueles que partiram, que foram libertos (Filipenses 1:23) da vida terrena. Essa comunhão se realiza na oração. A oração não é apenas uma manifestação de sentimentos ou emoções; antes de tudo, é a permanência do coração no Espírito Santo, a “conexão” da alma com o Espírito Santo. E o Espírito Santo é o grande Unificador, o Espírito da perfeição e da integridade. Ele me une em comunhão com todos os cristãos – independentemente de viverem na Terra ou já além dela. Essa unificação é uma propriedade integral da Igreja, nela essa comunhão – repito, absolutamente real – se realiza. A Igreja, abrangendo todos os aspectos da vida, sem excluir o formal, conferiu a esta comunhão um rito litúrgico específico. Não é sem razão que se pode criticar a formalização deste rito na realidade histórica e atual da Igreja, a distorção da hierarquia cristã de valores, quando esta comunhão é mal compreendida e obscurece Aquele em Quem ela só é possível – Deus; mas estamos falando da essência da questão, e não da distorção do significado, ainda que esta última seja bastante difundida.

Assim, em nosso conhecimento do Espírito Santo, surgiu outra característica essencial – Ele une todos, vivos e falecidos, em Cristo. – Mas será esta uma propriedade do espírito que os carismáticos recebem em seu “segundo batismo”? De modo algum: seu espírito é privado dessa qualidade, que faz da Igreja, juntamente com os Sacramentos, a Igreja. O Espírito Santo não pode deixar de “conectar” uma pessoa a toda a Sua propriedade, isto é, à Igreja Celestial e à comunhão com todos os seus membros. Se isso não acontece, a Igreja perde sua plenitude e se torna simplesmente uma comunhão de pessoas que vivem apenas na Terra. Portanto, é legítimo duvidar que seja o Espírito Santo quem atua no batismo carismático, visto que a oração – isto é, a ação do Espírito – aos santos e pelos falecidos é rejeitada.

Contudo. A Igreja é a unidade da vida terrena e celestial; portanto, outra propriedade do Espírito Santo é que Ele conduz o homem ao pensamento da vida eterna e, como consequência, a uma preparação digna para ela. Não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a vindoura (Hb 13,14); somos estrangeiros e peregrinos na terra (Hb 11,13). Se a nossa esperança em Cristo se limita a esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens (1 Co 15,19). E aqui, na realidade da Igreja, há um preconceito que afasta as pessoas da Igreja — a percepção da eternidade como castigo e da vida terrena como uma tentativa de evitá-la; assim, a compreensão cristã da salvação é distorcida e o significado da vida terrena é diminuído e degradado. Mas isso é precisamente um preconceito, não é o ensinamento da Igreja. Mas os carismáticos não caem no outro extremo — dar-lhes o Espírito com todos os Seus dons aqui e agora? A alegria, a energia e a saúde que os carismáticos recebem no batismo do Espírito não podem ser consideradas a plenitude da existência. A Sagrada Escritura ensina o contrário. Agora somos filhos de Deus, mas ainda não foi revelado o que acontecerá (1 João 3:2). Agora vemos como por espelho, obscuramente, como em enigma (1 Coríntios 13:12); além disso, estando neste tabernáculo (isto é, na terra), gememos sob o nosso fardo (2 Coríntios 5:4), desejando ser revestidos da nossa morada celestial (2 Coríntios 5:2). Fora da perspectiva da eternidade, toda a nossa alegria e saúde na terra não têm sentido. Gostemos ou não, a ideia principal do Evangelho é que a nossa vida terrena é uma preparação para a eternidade (2 Coríntios 5:1), e que devemos adquiri-la através de muitas dores (Atos 14:22) e labor (Mateus 11:12) – e não através de alegria exaltada (Lucas 6:25).

A propósito, quanto à energia recebida pelos carismáticos no batismo do espírito, a energia do Espírito Santo é moral, não física ou emocional. Esta última depende da estrutura da pessoa e de muitas razões. O Espírito Santo pode "impulsionar" uma pessoa fisicamente, para Seus propósitos, mas não pode ser identificado com a energia material.

Em quarto lugar. Uma diferença significativa na experiência já se tornou aparente, e eu coloco a questão: bem, existe um Espírito na minha Igreja? – Sim – mesmo que apenas porque Ele me alcançou, veio e entrou em mim. Não estou me referindo à multidão de mártires do século XX: o mesmo Espírito não os fortaleceu como os antigos mártires? A Igreja Ortodoxa é a sucessora direta e legítima da Igreja Antiga. É claro que a Ortodoxia não é idêntica à antiguidade – na forma, externamente; mas é idêntica em seus fundamentos, em sua estrutura espiritual.

Comentários