FACE A FACE
FREEMAN Stephen, Sacerdote 
Nada no corpo humano é tão íntimo quanto a face. Geralmente pensamos em outros aspectos do nosso corpo quando dizemos "íntimo", mas é a nossa face que mais revela sobre nós. É a face  que procuramos observar para ver o que os outros estão pensando, ou mesmo quem eles são. A importância da face é enfatizada repetidamente nas Escrituras. No Antigo Testamento, é a expressão comum para como, com razão, nos encontramos uns com os outros – e raramente – com o próprio Deus – "face a face".
No Novo Testamento, São Paulo usa a linguagem da face para descrever nossa transformação à imagem de Cristo.
Os ícones sagrados são, sem dúvida, a expressão mais abundante da "teologia da face" e talvez uma das contribuições mais profundas da Ortodoxia ao mundo e à proclamação do que realmente significa ser humano. Cada santo, do menor ao maior, compartilha o mesmo atributo de Cristo em seus ícones. Vemos todos eles, face a face. Nos ícones, nenhuma pessoa é retratada de perfil – com duas exceções – Judas Iscariotes e os demônios. Pois é na visão do rosto/ da face que encontramos alguém como pessoa. É o nosso pecado que nos afasta da face do outro – nosso esforço para nos tornarmos de alguma forma diferentes ou menos pessoais. É uma manifestação do nosso afastamento de Deus.
No comportamento humano, a emoção mais associada a esconder a face é a vergonha. O sentimento de vergonha traz um instinto imediato e profundo de esconder ou cobrir o rosto. Até mesmo crianças, confrontadas com constrangimento ou vergonha leve, cobrem o rosto com as mãos ou rapidamente o escondem no peito de quem os segura. Faz parte da qualidade insuportável da vergonha.
Esconderem-se são a resposta instintiva de Adão e Eva. "Estávamos nus e nos escondemos..." eis sua explicação. Os leitores sempre presumiram que era a nudez de suas partes íntimas que levava o primeiro casal a se esconder. Acho mais provável que fossem seus rostos que eles mais queriam cobrir.
Em um uso mais amplo da história do encontro de Moisés com Deus, após o qual ele cobriu a face com um véu, São Paulo apresenta o evangelho de Cristo como um relacionamento transformador, face a face com Cristo.
Portanto, visto que temos tal esperança, usamos de muita ousadia no falar, ao contrário de Moisés, que pôs um véu sobre a face para que os filhos de Israel não pudessem olhar fixamente para o fim daquilo que estava se desvanecendo. Mas os seus entendimentos estavam cegos. Pois até hoje o mesmo véu permanece sem ser levantado na leitura do Antigo Testamento, porque em Cristo o véu é removido. Mas até hoje, quando Moisés é lido, um véu está posto sobre o coração deles. Contudo, quando alguém se converte ao Senhor, o véu é removido. Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós, com o rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, estamos sendo transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor. Portanto, visto que temos este ministério, segundo a misericórdia que recebemos, não desanimamos. Mas rejeitamos as coisas ocultas, que são vergonhosas, não andando com astúcia, nem falsificando a palavra de Deus; mas, pela manifestação da verdade, nos recomendamos à consciência de todo homem, na presença de Deus. Mas, se o nosso evangelho está encoberto, para os que perecem está encoberto, nos quais o deus desta era cegou o entendimento, para os que não creem, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus. Pois não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor, e a nós mesmos como vossos servos por amor de Jesus. Pois Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo. (2Co 3:12-6)
O véu de Moisés é uma imagem da cegueira do coração e da escravidão espiritual. Voltar-se para Cristo remove essa cegueira e dureza de coração. Com o rosto descoberto, contemplamos o conhecimento da glória de Deus revelada na face de Jesus Cristo e somos transformados na mesma imagem que é Cristo.
Em russo, a palavra lik (лик) pode significar rosto, face e pessoa. Sérgio Bulgakov brinca com várias formas da palavra em seu livro Ícones e o Nome de Deus. Trata-se de uma visão ortodoxa essencial. A palavra grega para pessoa (πρόσωπον) também carrega esse duplo significado. O rosto revelado ou desvelado é um rosto sem vergonha – ou um rosto que não se esconde mais de sua vergonha. Este é talvez o aspecto mais fundamental da nossa transformação em Cristo. O eu em quem a vergonha foi curada é o eu que é capaz de viver como pessoa.
Somos restaurados à nossa humanidade essencial e autêntica – à nossa personalidade. Contemplamos Cristo face a face, como uma pessoa que se olha num espelho. E, como diz São João: “Seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é” (1Jo 3:2).
O sacramento da penitência caminha corajosamente diretamente para o mundo da vergonha. O Arquimandrita Zacarias diz:
... se soubermos a quem nos apresentamos, teremos a coragem de assumir um pouco de vergonha. Lembro-me de que, quando me tornei padre espiritual no mosteiro, o Padre Sofrônio me disse: "Encoraje os jovens que vêm a você a confessarem apenas as coisas das quais se envergonham, porque essa vergonha será convertida em energia espiritual que pode superar as paixões e o pecado". Na confissão, a energia da vergonha se torna energia contra as paixões. Quanto à definição de vergonha, eu diria que é a falta de coragem de nos vermos como Deus nos vê. (de "O Alargamento do Coração").
Isto não é um convite à vergonha tóxica – nem um convite para assumir ainda mais vergonha – é uma descrição da cura da vergonha que é dada em Cristo. Essa cura é “a coragem de nos vermos como Deus nos vê”. É a coragem de responder como o profeta Samuel: “Eis-me aqui!” quando Deus chama. Deus chamou Adão, que falou de seu esconderijo vergonhoso e sem rosto.
Alguns dos sermões místicos dos Padres falam de Cristo buscando Adão pela segunda vez – mas desta vez, no Hades, quando Cristo desceu aos mortos. Lá, Adão, não mais escondido, voltou-se para o Senhor ressuscitado. E assim, o ícone tradicional da ressurreição mostra Cristo tirando Adão e Eva dos portões destruídos do Hades.
Os portões do Hades estão escritos em nossos rostos – assim como os portões do paraíso. É o mistério do nosso verdadeiro eu – aquele que está sendo recriado à imagem de Cristo – precisamente quando O contemplamos face a face e descobrimos que nenhuma vergonha precisa permanecer. Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Doce liberdade!

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