SOBRE A IDENTIDADE E A MISSÃO DA IGREJA ORTODOXA


THEODOROPOULOS Dr. Helen Creticos 
 tradução de monja Rebeca (Pereira)



A Igreja compreende-se ela própria e, continuamente, vive na realidade de ser o Corpo Vivo do Cristo Ressuscitado. Ela não é uma instituição ou estrutura, antes a Nova Criação, a restauração da criação, a Nova Vida em Cristo, nascida do alto. A Igreja não é uma instituição com mistérios (sacramentos), mas um Mistério com instituições, e antes de tudo, Vida – uma nova senda de Vida (restaurada, redentora, santa, divina). Como nota o teólogo ortodoxo Ioannis Zizioulas, “[A Igreja] é um modo de existência, um jeito/modo de ser.” O que é este jeito de ser, precisamente? Somos a Igreja precisamente porque estamos incorporados no próprio ser e na vida de Deus, no Corpo de Cristo, através da graça do Espírito Santo. Assumimos um novo modo de existência, chamado de vida divina, através da incorporação no Corpo Ressuscitado de Cristo. Estamos sendo constantemente transfigurados, enquanto pessoas em comunhão com Deus e umas com as outras, no Corpo de Cristo. Assim, podemos dizer com isso, a partir da realidade experimental da Igreja, que a própria Igreja é transfiguração, tornando-se o Corpo do Ressuscitado; quer dizer, tornando-se e sendo divina pela graça, tornando-se e sendo comunhão, encontro com e transformação pela e em Deus pela/através de Sua graça.

Tal experiência da viva realidade da Igreja enquanto Corpo de Cristo é conhecida em seu mais explícito modo na celebração da Eucaristia, quando as pessoas se dirigem para receber, pelo poder do Espírito Santo, o próprio Corpo de Cristo e, ao partilhar de Seu Corpo, concretamente tornam-se este mesmo Corpo. É por isso que para o ortodoxo a celebração da Eucaristia não é simplesmente uma memória ou um ritual que decreta, mas um processo de contínua autorrenovação, instituída pelo Próprio Cristo e revestida de poder pela graça e a ação do Espírito Santo. Isto é um processo contínuo e orgânico, pois que a Igreja está se tornando, assim como já é e como foi, o Corpo de Cristo. A Igreja é a presença do divino aqui na terra, e assim como foi conformada à imagem de Deus, aponta para o fim dos tempos, o escathon, quando sua vida for a vida divina, e quando Deus for tudo em todos.

Quais são as implicações para se viver no interior desta realidade experimental de Corpo do Cristo Ressuscitado? Para entender ela própria, vivê-la enquanto a própria presença de Cristo aqui na terra, e ter a experiência da contínua transformação pela e na vida divina é antes de tudo e acima de tudo necessário experimentar a existência no interior da vida Trinitária. A compreensão ortodoxa da Igreja deve enxergar a Trindade enquanto fonte de sua vida. Comunhão e vida divina significam Trindade. Ninguém pode experimentar da vida divina enquanto indivíduo, quer dizer, enquanto uma unidade separada e isolada. Vida divina é, da mesma forma que seu próprio coração, comum; tanto vida eclesial como ser eclesial quer dizer vida comum e ser comunitário. Parafraseando o teólogo ortodoxo Khomiakov (cf. Stamoulis, p. 105), apesar de pecarmos e cairmos sozinhos, não somos salvos sozinhos mas na Igreja, unidos uns aos outros. Na Igreja nos tornamos pessoas, não indivíduos; quer dizer, vivemos e temos nosso ser em relação, amizade, comunidade. Isso é estar à imagem do Deus Trinitário.

Acima de tudo, tal vida de companheirismo é caracterizada por amor, a essência da vida divina. Para verdadeiramente ser uma pessoa, para verdadeiramente ser a Igreja, devemos viver na comunhão de amor. E neste amor que acima de tudo é a base para a missão. Vida Divina = amor = missão. Como sabemos isso? “Porque Deus...” (Jo 3:16-17). O Deus Trinitário é Aquele que ama a humanidade – philantropos, Deus Pai, enviando Seu Filho Divino ao mundo para a salvação do mundo, realizando tudo através do poder do Espírito Santo (de) Deus. Como pode a Igreja, que é a imagem de Deus, o Corpo vivo do Cristo Ressuscitado, não ser a Igreja de missão? Como pode não ser philantropos, quando a própria vida divina é isso? Aquele que permanece em Cristo e em quem Cristo permanece vive como Cristo, laborando, sacrificando para conduzir tudo à salvação, na presença de Deus. Logo, a missão, o trabalho de conduzir/levar toda humanidade à experiência do Senhor Ressuscitado, pertence ao próprio ser da vida da Igreja. Anastasios Yannoulatos, um teólogo e missionário ortodoxo-chave, diz que o interesse da Igreja na missão não é simplesmente um problema de dever, mas antes de necessidade, jorrando da condição interna, existencial da Igreja. Ele diz que “a realização de que a Igreja é o Corpo de Cristo, a plenitude n’Aquele que tudo preenche em todos” (Ef 1:23) e de que o plano de Deus é o de “reunir todas as coisas n’Ele, tanto nos céus como na terra” (Ef 1:10) (anakephalaiosasthai = recapitular, reunir-se), compele o fiel (aquele que crê) a libertar-se ele próprio do provincialismo e da mente fechada a fim de que viva na prece e oração para a reunião/recapitulação de todas as coisas em Cristo, uma profunda prece que não deve permanecer simplesmente na superfície, como sentimentalismo e antecipação, mas é expressa como uma ativa participação no vivo chamamento ao contínuo crescimento do “corpo místico de Cristo” em suas dimensões finais.” (p. 140)

Para adquirirmos um entendimento completo da natureza da Igreja Ortodoxa devemos examinar as quatro marcas centrais da Igreja como compreendidas desde o princípio. Estas marcas estão explícitas no Credo (conhecido no Ocidente como o Credo Niceno-Constantinopolitano) recitado na Igreja Ortodoxa a cada Divina Liturgia. A Igreja entende-se e proclama-se como a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. A Igreja Ortodoxa entende sua unidade em parte através de sua incorrupta e inquebrantável continuidade de ter sido fundada por Cristo, através do Espírito Santo, guardada e guiada através da Sucessão Apostólica.

É claro que esta Igreja, que é o próprio Corpo do Cristo Ressuscitado, só pode ser Una e Santa. Vemos que, em partes, a ênfase do Ser – em unidade – aponta à profunda inter-relação e intercomunhão de todos no interior do corpo da Igreja desde o princípio através do tempo e em cada lugar. A Igreja é Una, tanto na Grécia como na Tanzânia, tanto no segundo como no vigésimo segundo século, tanto do ponto de vista de uma paróquia local como as maiores estruturas institucionais. A Igreja é Santa pelo fato de ser o Corpo através do qual e no qual são santificados, pelo poder e a piedade do Espírito Santo. Ao examinarmos mais tarde a relação de adoração/veneração e piedade à missão expandiremos na importância desta marca de santidade na medida em que se relaciona à missão.

Mas é especialmente considerando as marcas de catolicidade e apostolicidade da Igreja que vemos que a missão pertence/cabe à própria identidade da Igreja. Dizer que a Igreja é católica, katholikos, é afirmar duas coisas: primeiro, que é universal e, segundo, que isso compreende plenitude. Dizer que a Igreja é universal é afirmar que todo o cosmos está sendo penetrado e transfigurado pela Igreja. É dizer que todo o mundo é a arena de sua redenção e ação salvífica, e que toda “criação aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam revelados” (Rm 8:19). Toda nação, todo povo e, em verdade, todo o universo, estão à espera de serem incorporados na comunhão amorosa da Igreja, a amorosa presença de Deus. Além do mais, katholikos se refere à plenitude, significando que em cada lugar onde a Igreja está presente, ela está em sua plenitude. A paróquia local, tal como se reúne para celebrar a Eucaristia, é a Igreja em sua plenitude e deve possuir a plenitude da verdade ou então não participa de alguma forma no Corpo de Cristo. Por esta razão, faz-se essencial que cada local em que a Assembleia congregue esteja em plena comunhão com toda a Igreja. Isso também quer dizer que onde quer que a Igreja vá, na menor aldeia possível do mais remoto canto do mundo, lá está o Corpo de Cristo por completo, toda plenitude da verdade, a plenitude do Reino.

A Apostolicidade da Igreja significa que esta vida da Igreja hoje é a mesma vivida e expressada pelos Apóstolos. Em verdade, significa que os próprios Apóstolos, juntamente a todos os Santos, estão unidos com todas as pessoas numa comunidade viva que permanece imutável e unificada em sua essência, mesmo apesar de numerosas mudanças em sua expressão externa e histórica. Isso significa que a doutrina e a verdade desta vida foram entregues doravante até agora sem corrupção, e que a incumbência e o zelo da Igreja são os mesmos experimentados pela Igreja dos Apóstolos. As implicações para missão são autoevidentes: da mesma maneira como Cristo delegou os Apóstolos a irem anunciar e fazer discípulos em todas as nações (Mt 28:19), assim a Igreja tem como parte de sua própria identidade o dever, ou melhor, a necessidade de ir e batizar as nações.

Tal discussão reconhecidamente muito breve sobre o autoentendimento da Igreja forneceu um vislumbre da definição interna e experiencial da Igreja Ortodoxa. No entanto, a Igreja existe neste mundo numa dimensão histórica, e isso com tal intuito me dedico então a clarificar como a Igreja Ortodoxa compreende sua existência no quadro da história.

Nos dias atuais temos:
·         Igrejas Autocéfalas: os quatro antigos patriarcados. Patriarcado de Constantinopla (incluindo Turquia, Ilhas Dodecanenses, a Diáspora grega); Patriarcado de Alexandria (incluindo Egito e África); Patriarcado de Antioquia (Síria, Líbano, Pérsia, Iraque); e o Patriarcado de Jerusalém (Israel e Jordão). Também, as Igrejas da Rússia, Chipre, Grécia, Sérvia, Albânia, Romênia, Bulgária, Polônia, República Tcheca, Geórgia, Sinai e a Igreja Ortodoxa na América.
·         Igrejas missionárias e imigrantes: China; Coreia; Uganda, Quênia e Tanzânia (e ainda Moçambique); Filipinas; México; América do Norte (várias jurisdições); Europa Ocidental (França, Itália, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Suíça, Espanha, Portugal – várias jurisdições).
·         Igrejas Autônomas: Finlândia, Japão.

A Igreja Ortodoxa é uma família de Igrejas autogovernantes (autocéfalas) cuja unidade é assegurada pela fé comum (quer dizer, unidade em doutrina, especialmente em aderência aos Sete Concílios Ecumênicos) e comunhão em congregação e sacramentos. Tudo é governado de acordo com a estrutura hierárquica baseada nos padrões apostólicos, que garantem a pureza da fé e verdade incorrupta. Todos os Bispos são considerados iguais e cada um é considerado como autoridade reconhecida de sua diocese para vigiar a vida sacramental e educacional da Igreja. Por uma questão de ordem existe um ranking de Bispos no interior de cada Igreja autogovernante. Aos Quatro (originalmente Cinco – sendo o quinto Roma) Antigos Patriarcados foi outorgado primazia de honra no interior da família de Igrejas, com a posição de honra especial (mas não poder ou autoridade jurisdicional) dado ao Patriarca de Constantinopla (que também é chamado de Patriarca Ecumênico). Decisões relacionadas ao pleroma da Igreja são tomadas pelo Sínodo ou Concílio. Idealmente, tais decisões ocorrem através de um Concílio geral (Ecumênico), mas por condições históricas, algumas decisões universais ocorrem através de processos de ratificação em cada Igreja Autocéfala de uma declaração concordada. Todavia, é importante compreender que tais Igrejas autogovernantes podem se diferenciar em administração local, disciplina e expressão. Quer dizer, existe uma liberdade e diversidade em como a Igreja universal torna-se “encarnada” em cada região ou nação, e dentre cada “ethos” ou “povo, permitindo diversidade em língua, música, cultura e outras várias tradições. Esse sistema de Igrejas locais independentes, descentralizadas e ainda unidas permite flexibilidade e força. Sendo também importante na missão, pois permite o crescimento das Igrejas nativas.

É importante notar que para o ortodoxo, o nome “ortodoxo” originalmente significa simplesmente “fé correta (reta, ereta)” e também “adoração (glória) correta”. Simplesmente utilizado para significar a verdadeira Igreja. Hoje em dia utilizado como um título denominacional, mas não compreendido pelo ortodoxo desta forma, que simplesmente descreve a si mesmo como Igreja. Em linguagem moderna, Igreja Ortodoxa = Igreja Ortodoxa Oriental = Santa Igreja Ortodoxa = Grego-Católico = Católico-Ortodoxo, e por aí vai…

Essa discussão da forma histórica e institucional da Igreja (admitida como um meio estrangeiro de falar sobre a Igreja Ortodoxa) nos leva a considerar agora a terceira questão de foco nesta classe: como a estrutura da Igreja reflete, ajuda e dificulta a missão da igreja? Mesmo apesar de a Igreja ser hierárquica, como já vimos, é também descentralizada na medida em que a plenitude da Igreja reside em cada paróquia local e no fato de cada igreja autocéfala ou autônoma ter autoridade jurisdicional. Esta natureza dúbia da estrutura da Igreja é benéfica em dois importantes meios no que concerne à área de missões. Primeiramente, a estrutura hierárquica da Igreja é essencial em salvaguardar a pureza da transmissão da fé. É inaceitável tanto para um sacerdote como para um leigo ingressar no campo da missão de modo independente, organizar e desenvolver uma igreja sem conexão com a Igreja maior. Missionários são responsáveis pela hierarquia. Isso garante que todo o ensinamento apostólico incorrupto esteja sendo transmitido. Além disso, uma vez que a verdade é essencial à unidade, ela garante que todos os que estão unidos em sacramentalidade estejam unidos antes de tudo em fé e verdade.

No entanto, (e este é o segundo fator-chave da estrutura no que concerne à missão), a estrutura da Igreja é suficientemente descentralizada para permitir que a fé crie raízes em nova terra com uma nova expressão, desenvolvendo-se gradualmente numa política independente. Isto torna possível que um clero nativo seja ordenado. Uma vez que três Bispos sejam ordenados no interior de um novo campo, um sínodo pode ser formado e a missão começa a amadurecer enquanto Igreja autônoma e consequentemente autocéfala. Isso é importante em missão porque desengaja a missão de objetivos políticos e coloniais. Quer dizer, se a Igreja missão pode ser encorajada a olhar seu desenvolvimento numa política independente, ela liberta-o da desconfiança de que o objetivo da missão é obter a área de dominação política e cultural. Nesta era em especial, tal crescimento rumo à independência jurisdicional é vista como extremamente importante. Além do mais, e isso é fundamental, a estrutura da Igreja enquanto uma família de Igrejas autogovernantes reflete a posição-chave do ortodoxo em sua compreensão de missão. Isso reflete a crença de que, no Pentecostes, a miraculosa habilidade dos Apóstolos em falar em várias línguas de nações do mundo significa a bênção de Deus de várias nações do mundo. Cada nação ou povo (ethnos) é chamada à comunhão da Igreja, e a língua de cada povo é abençoada a fim de que possa transmitir as boas-novas do Evangelho e que possa venerar corretamente ao Senhor. No interior da estrutura da Igreja, os vários hierarcas são todos iguais; no interior da vida da Igreja, cada Igreja local é a plenitude de toda Igreja como ela glorifica Deus e testemunha a vida divina. Da mesma forma, a Igreja Ortodoxa sempre acreditou que cada nação tem direito à sua própria expressão desta vida divina; e assim, tanto a tradução das Sagradas Escrituras como dos Serviços Litúrgicos da Igreja para a língua vernacular tem sido uma característica marcante da missão ortodoxa.

Ao refletir sobre como o Serviço Litúrgico (em assembleia/congregação) e a piedade da Igreja se relacionam com sua missão, deveríamos ser capazes de ver, antes de tudo, o que representa o Serviço Litúrgico central, especialmente a Eucaristia, para a Igreja Ortodoxa. Talvez seja uma coincidência de língua, mas em verdade fortuito, que ortho doxa signifique tanto “reta doutrina” como “reto louvor” e ambas as denominações estão profundamente conectadas em Ortodoxia. É na e pela Eucaristia que, como dissemos precedentemente, a Igreja experimenta a vida divina e tanto constitui como renova-se a si mesma como o Corpo do Cristo Ressuscitado. Em seu culto (os Serviços Litúrgicos), a Igreja necessariamente estende a mão ao mundo em testemunho e missão: lá onde a Igreja estende seu culto necessariamente estende a própria presença de Cristo e inaugura a vinda de Seu Reino. Numa passagem importante Aleksandar Schmemann, um dos mais proeminentes teólogos ortodoxos do século XX, conecta Eucaristia, eclesiologia e missão de forma importante. Ele diz: “Na Eucaristia a Igreja torna-se o que realmente é, se plenifica enquanto Corpo de Cristo, tal como a divina parousia – a presença e a comunicação de Cristo e Seu Reino. Eclesiologia ortodoxa é em verdade eclesiologia eucarística. Pois que na Eucaristia a Igreja cumpre/realiza a passagem deste mundo ao mundo que há-de-vir, no escathon; participa na ascensão do Senhor e em Seu banquete messiânico, prova da alegria e a paz do Reino… Assim, toda vida da Igreja está enraizada na Eucaristia, na frutificação desta plenitude eucarística no tempo deste mundo… Esta é, em verdade, a missão da Igreja.” (p. 212). Ele acrescenta ainda, “A Eucaristia é sempre o Fim, o sacramento da parousia, e ao mesmo tempo é sempre o começo, o ponto de partida: agora começa a missão.” “Nós vimos a verdadeira luz, nós gozamos da vida eterna”, mas esta vida, esta luz, são dadas a nós a fim de nos transformarmos em testemunhas de Cristo neste mundo… A Eucaristia, transformando a Igreja naquilo que ela é, transforma-a em missão”. (p. 215)

De que forma concreta o culto da Igreja assiste à missão? Primeiramente, o culto da Igreja Ortodoxa constantemente proclama o Evangelho através do discurso direto ou referência da Escritura. Da mesma forma, o sermão foi por séculos, e está tornando-se novamente, um aspecto crucial no ensinamento e edificação daqueles que o ouvem. Em terceiro lugar – e alguns acreditam ser a maneira mais importante através da qual o culto da Igreja possa testemunhar ao mundo uma realidade diferente daquela de um mundo ordinário – o testemunho da beleza do Reino de Deus, experimentado aqui e agora no seio da Liturgia. Stamoulis destaca, “A Ortodoxia testemunha a realidade espiritual que o mundo sem Cristo não conhece”. (p. 99) Neste contexto, é impossível não contar a história de como a Rússia se converte à Ortodoxia. A história remonta a 988, altura em que Vladimir, Príncipe de Kiev, ainda pagão, desejava conhecer qual era a verdadeira religião. Ele envia seus súditos a visitar distintos países e observar suas formas de culto. Viajam por muitos lugares, do Leste ao Oeste, chegando finalmente à Sagrada Liturgia na Grande Igreja de Aghia Sophia em Constantinopla. A mensagem que retorna a Vladimir é a seguinte: “Não sabíamos se estávamos no céu ou na terra, pois certamente não há tal esplendor nem beleza em nenhum outro lugar da Terra. Nós não podemos descrevê-lo: só sabemos, que Deus habita entre os homens, e que o Seu serviço supera a adoração de todos os outros lugares. Pois não podemos esquecer essa beleza”.

Assim, o Serviço Ortodoxo incorpora a plenitude da vida em seu ciclo litúrgico. A terra, a água, as estações, a vida animal, o meio ambiente, as várias passagens da vida estão todas concentradas de várias maneiras. Através de seu culto, a Igreja busca transfigurar todo cosmos e não somente o gênero humano; ergue a plenitude da vida na vida transformada da Nova Criação, o Reino de Deus. Eis porque o culto é tão incarnacional: o doce odor de incenso, a música do canto, a glória da iconografia. De muitas maneiras, o culto ortodoxo se vê especialmente sintonizado com a vida em países do terceiro mundo, ainda abertos a ver e experimentar o sagrado na vida cotidiana. A visão ortodoxa do mundo está mais próxima, em alguns aspectos, da visão dos países menos desenvolvidos do que da visão do mundo moderno secularizado, e por isso é rapidamente adotada lá. Mas essa é também sua atração por aqueles modernos que acham a visão de mundo secular despida de espiritualidade e beleza interior e desejam encontrar a vida mais uma vez permeada pelo sagrado. Segundo Yannoulatos, “A mística atmosfera de nosso culto chama de forma muito profunda o homem por inteiro, cada homem.” (p. 145). No entanto, a Igreja deve guardar-se contra a tendência de apresentar a adoração de uma maneira que confunde mística com mistificadora – isto é, confusa, alienante e incompreensível. Ao protegermos a divina incompreensibilidade, devemos estar certos de que o culto é também a experiência de comunhão e acesso a Deus. Na Igreja, estamos para encontrar Deus e não para sermos excluídos de Sua presença e vida. Se o culto não é significante para aqueles que dele participam, então vamos passar a trancar Deus na Igreja (com o intuito de “protegê-Lo” lá) deixando Seus filhos do lado de fora.

Como relacionarmos a piedade da Igreja à missão? Eis onde olhamos mais uma vez para a marca da Igreja enquanto Santa. É através de Sua santidade que a Igreja testemunha a beleza, a bondade e a gentileza adorável da vida divina. Simplesmente a presença de santidade é uma das maiores e mais poderosas testemunhas. São Serafim de Sarov, um santo e amado monge da Igreja Russa, aconselhou certa vez, “adquira a paz interior e milhares em torno de ti encontrarão sua salvação.” Tornando-se santo – verdadeira imagem de Cristo – o cristão vive não mais para si mesmo, antes para Deus e para seus próximos. Ser transformado em Cristo significa tornar-se aquele que vive e morre pela salvação dos outros. Tais pessoas tornam-se pilares de divindade; em suas vidas a imagem de Cristo torna-se visível e porta o testemunho à verdade de suas palavras. Por meio de exemplos de pobreza, humildade, gentileza e amor encarnam a mensagem do Evangelho.

Por fim, algumas notas sobre o desafio de ser um missionário da Igreja no século XXI. As necessidades da humanidade não mudaram: pecado, morte espiritual, medo, desespero. A resposta continua: o amor de Deus, em Cristo, através do Espírito Santo. Fazer tal resposta viável, devemos torná-la encarnada, em vidas de santidade, em verdadeiro culto, em reta doutrina. O desafio é, e sempre foi, estar no mundo decaído mas não ser do mundo decaído. Temos sérios problemas a enfrentar. Nossa realidade histórica é formada pelo seguinte:
o cristão ortodoxo vem de áreas de opressão onde a missão não foi permitida e, consequentemente, uma mentalidade de sobrevivência desenvolvida;
fomos estrangeiros em novas terras tentando, por um lado, distinguir a partir do “velho mundo” e da religião, mas também identificando com o “velho mundo”, e tal identificação impede a fé de se adaptar à língua e à vida da nova terra;
uma visão missionária vem faltando porque a vida espiritual vem se deteriorando e políticas infiltram na vida da igreja, desacreditando a ambos;
os cristãos ortodoxos não são devidamente educados para tal, o que torna a missão interna necessária.

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