Definindo Espiritualidade Ortodoxa
VLACHOS Metropolita
Hierotheos de Nafpaktos
tradução de monja
Rebeca (Pereira)
Faz-se necessário, em
primeiro lugar, definir os termos: “ortodoxo” e “espiritualidade”. Só podemos
falar de “espiritualidade ortodoxa” se soubermos exata e realmente o que isso
significa para nós. Foi o que os Padres da Igreja fizeram. Em sua obra
excepcional “A Fontana do Conhecimento” e mais especificadamente em partes de
“Capítulos Filosóficos”, São João Damasceno analisa o significado destas
palavras: Substância, natureza, hypostasis, pessoas, etc. Como estes termos
podem ser definidos de forma diferentes em outros contextos, ele explica a
razão pela qual o são tão bem definidos aqui.
O adjetivo “ortodoxa”
provêm do substantivo “ortodoxia” e mostra a diferença entre a Igreja Ortodoxa
e qualquer outra denominação cristã. A palavra “Ortodoxia” manifesta o
verdadeiro conhecimento sobre Deus e a criação.
O termo Ortodoxia
consiste em duas palavras: “orthos” (verdadeiro, reto) e “doxa”. “Doxa”
significa por um lado, crença, fé, ensinamento e por outro, louvor ou
doxologia. Estes dois significados estão intimamente conectados. O verdadeiro
ensinamento sobre Deus incorpora o verdadeiro louvor.
Deus. Se Deus fosse
abstrato, logo a oração a este Deus seria também abstrata. Se Deus é pessoal,
logo a oração assume um caráter pessoal. Deus revelou a verdadeira fé, o
verdadeiro ensinamento. Assim, dizemos que o ensinamento sobre Deus em todos os
assuntos associados à salvação pessoal é a Revelação de Deus e não a descoberta
humana.
Deus
revelou esta verdade ao povo que estava preparado para recebê-la. Judas
expressa bem este ponto ao dizer: “exortando-vos a batalhardes diligentemente
pela fé que uma vez por todas foi entregue aos Santos” (Judas, 3). Nesta
cotação, bem como em muitas passagens relacionadas, está claro que Deus Se
revela aos Santos, ou seja, àqueles que atingiram certo nível de crescimento
espiritual para que possam receber tal Revelação. O Santo Apóstolo foi “curado”
primeiro e depois recebeu a Revelação. Eles transmitiram esta Revelação aos
seus filhos espirituais não somente pelo ensinamento, mas também
primordialmente por um efeito místico em seu renascimento espiritual. Para que
esta fé seja preservada, os Santos Padres formularam os dogmas e doutrinas.
Aceitamos os dogmas e doutrinas, em outras palavras, aceitamos esta fé revelada
e permanecemos na Igreja para que sejamos curados. Pois que a fé é, por um
lado, Revelação aos purificados e curados e, por outro, é o reto caminho para
se atingir a theosis (deificação), para aqueles que escolheram seguir o
“caminho”.
A palavra
“espiritualidade” (pnevmaticotis) vem de “espiritual” (pnevmatikos). Assim,
espiritualidade é o estado da pessoa espiritual. O homem espiritual tem certa
maneira de se comportar, certa mentalidade. Ele age diferentemente do
comportamento das pessoas não-espirituais.
A
espiritualidade da Igreja Ortodoxa, todavia, não leva à vida religiosa
abstrata, nem é o fruto da força interior do homem. A espiritualidade não é
uma vida religiosa abstrata porque a Igreja é o Corpo de Cristo. Não é
simplesmente uma religião que acredita num Deus, teoricamente. A Segunda Pessoa
da Trindade Santa – o Logos de Deus – assumiu a natureza humana para nós. Ele a
uniu com Sua hypostasis e tornou-Se a Cabeça da Igreja.
Assim,
a Igreja é o Corpo do Deus-Homem Cristo. Todavia, a
espiritualidade não é uma manifestação de energias do espírito tal como a
razão, ou os sentimentos, etc. É importante frisar isso porque há uma tendência
em identificar uma pessoa espiritual como alguém que cultiva suas habilidades
racionais: um cientista, um artista, um ator, um poeta, etc. e esta
interpretação não é aceita pela Igreja Ortodoxa. Certamente, não somos contra
os cientistas, poetas, etc., mas não podemos considerá-los espirituais no
sentido especificamente ortodoxo da palavra.
No
ensinamento do Apóstolo Paulo, há uma clara distinção entre o homem espiritual
e o homem de alma. Espiritual é o homem que tem a energia do Espírito Santo em
si. Enquanto o homem de alma é alguém que tem corpo e alma, mas não adquiriu o
Espírito Santo, Que dá vida à alma. “Ora, o homem natural não aceita as coisas
do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas
se discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas
ele mesmo não é julgado por ninguém”(I Cor. 2, 14-15).
Na
mesma epístola, o Apóstolo Paulo desenha a distinção entre o homem espiritual e
o homem da carne. O homem da carne é aquele que não tem o Espírito Santo no
interior de seu coração, mas retém todas as outras funções psicossomáticas do
ser humano. Todavia, é evidente que o termo “homem da carne” não faça
referência ao corpo, mas refere-se ao homem da alma que perde o Espírito
Santíssimo e que opera fora de seu chamado ser “psicobiológico”. “Eu, porém,
irmãos, não vos pude falar como a espirituais; e sim, como a carnais, como a
crianças em Cristo. Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque
ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque sois carnais.
Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais e
andais segundo o homem?” (I Cor. 3, 1-3).
Se
combinarmos a passagem acima mencionada com aquelas referentes à adoção cristã
pela graça, verificamos que, de acordo com o Apóstolo Paulo, espiritual é o
homem que se torna filho de Deus pela graça. “Assim, pois, irmãos,
somos devedores, não à carne como se constrangidos a viver segundo a carne.
Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se pelo
Espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis. Pois todos os
que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes
o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o
espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai! O próprio Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rom. 8, 12-16).
Espiritual
é o homem que oferece o testemunho do Espírito Santo em seu coração e está,
portanto, bem consciente da habitação do Deus Uno e Trino. Desta forma,
ele percebe que é o filho de Deus pela graça e no interior de seu coração ele
clama: “Aba, Pai!”. De acordo com o testemunho dos Santos, este clamor do
coração contrito é essencialmente a oração noética ou a oração do coração.
São Basílio, o Grande,
ao examinar o que significa “o homem torna-se o templo do Espírito Santíssimo”,
ensina – inspirado por Deus – que o homem considerado o Templo do Espírito
Santo não está perturbado por tentações e cuidados constantes, ele busca Deus e
tem comunhão com Ele. Claramente, o homem espiritual é aquele que tem o
Espírito Santo no seu interior e isto é confirmado por sua ininterrupta
lembrança de Deus.
De
acordo com São Gregório Palamas, assim como o homem dotado de razão é chamado
de racional, da mesma forma o homem enriquecido com o Espírito Santo é chamado
espiritual. Assim,
espiritual é o "homem novo", regenerado pela graça do Espírito Santo.
Este mesma perspectiva
é compartilhada por todos os Santos Padres. São Simeão, o Novo Teólogo, por
exemplo, diz que o homem que é prudente, tolerante e manso, que ora e contempla
Deus, “anda em espírito”. Ele é preeminentemente um homem espiritual, par excellence.
Mais
uma vez, de acordo com São Simeão, o Novo Teólogo, quando as partes da alma
humana – seu nous e intelecto – não estão “vestidos” na imagem de Cristo, ele é
considerado um homem da carne, por não ter o sentido da glória espiritual. O homem da
carne é como uma pessoa cega que não pode ver a luz dos raios de sol. De fato,
ele é considerado tanto cego como sem vida. Em contrapartida, o homem
espiritual, que toma parte na energia do Espírito Santo, está vivo em Deus.
Como
enfatizamos, previamente, a comunhão com o Espírito Santíssimo transforma o
homem de carne em homem espiritual. Por esta razão, de acordo com o ensinamento
ortodoxo, o homem espiritual é o Santo. Certamente, isto é dito do ponto de
vista de que o Santo é aquele que toma parte, em vários degraus, na graça
incriada de Deus, e especialmente na energia deificante de Deus.
Os
Santos são portadores e manifestações da espiritualidade ortodoxa. Eles vivem
em Deus e consequentemente falam sobre Deus. Neste sentido, a espiritualidade
ortodoxa não é abstrata, mas encorpada nas pessoas dos Santos. Por esta razão,
os Santos não são as pessoas boas, os moralistas, no sentido estrito do termo,
ou simplesmente aqueles de boa índole. Em vez disso, ele é a pessoa que se
submete e age sobre a orientação do Espírito Santo em seu interior.
Estamos
assegurados da existência dos Santos, primeiramente pelo seu ensinamento ortodoxo.
Os
Santos receberam e estão recebendo a Revelação de Deus; eles experimentam-na e
formulam-na. Eles são o critério infalível dos Concílios Ecumênicos. A segunda
certeza é a existência das santas relíquias dos Santos. As santas relíquias são
o símbolo de que através do nous a graça de Deus transfigura o corpo também.
Consequentemente, os corpos participam nas energias do Espírito Santíssimo.
O
trabalho primário da Igreja é conduzir o homem à divinização, à comunhão e
união com Deus. Por isso, em certo sentido, podemos dizer que o trabalho da
Igreja é o de “produzir relíquias”.
Assim,
a espiritualidade ortodoxa é a experiência da vida em Cristo, a atmosfera do
homem novo, regenerado pela graça de Deus. Não é um estado
abstrato, emocional e psicológico do ser. É união do homem com Deus.
Dentro
deste quadro, podemos detectar alguns traços característicos da espiritualidade
ortodoxa. Primeiramente,
que ela está centrada em Cristo, simplesmente pelo fato de ser um – e o único –
“remédio” para as pessoas, virtude da unidade hypostática da natureza divina e
humana em Sua Pessoa. Em segundo lugar, a espiritualidade ortodoxa está
centrada na Trindade Toda-Santa, pelo fato de Cristo estar sempre unido com o
Pai e o Espírito Santo. Todos os sacramentos são realizados em Nome do Deus
Tri-Único. Sendo a Cabeça da Igreja, Cristo não pode ser pensado como se
estivesse fora dela. Consequentemente, a espiritualidade ortodoxa está também
centrada eclesiasticamente pelo fato de em seu interior podemos entrar em comunhão
com Cristo. Finalmente, ela é também mística e ascética.
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