A luz no ícone
DROBOT Georges
tradução de Mônica Boitte
Na Igreja Ortodoxa a luz tem uma
grande importância, para não dizer uma importância primordial. A palavra luz está
sempre presente nos textos litúrgicos–tanto no decorrer das celebrações como na
oração pessoal, acendemos velas e lamparinas a óleo. A luz física, aquela dos astros ou das fontes de luz, torna–se o símbolo
da luz eterna do Reino de Deus.
A arte sacra da Igreja Ortodoxa, tanto
os ícones como os mosaicos e os afrescos ornamentando as paredes de uma igreja,
é essencialmente uma arte litúrgica. Ela coloca em imagens a história da
salvação iluminada pelas fontes patrísticas e litúrgicas lidas e cantadas durante
os ofícios. Ora, os ciclos litúrgicos ortodoxos correspondem ao ritmo cósmico de
nossa terra. “Orai sem cessar” (ITs.
5, 17) é o mandamento que rege a vida de oração de todo cristão. Esta oração
incessante, eterna, encarna–se nos ciclos do tempo terrestre regido pelo curso
do sol.
O ciclo litúrgico cotidiano começa à
tarde/noite (ao entardecer/anoitecer), segundo a palavra bíblica: “E foi a tarde e a manhã o dia primeiro”
(Gn.1). À hora do pôr do sol, cantamos no ofício de Vésperas “Ó Luz jubilosa,
da santa gloria do Pai celeste, imortal, santo e bem–aventurado Jesus Cristo.
Chegados ao pôr do sol contemplando a luz vespertina, cantamos o Pai, o Filho e
o Espírito Santo, Deus.” Esta “luz jubilosa” não é uma simples expressão verbal
da luz incriada do Reino de Deus. Ela exprime aqui a visão do reflexo da luz
divina na luz do mundo criado, fazendo jorrar este canto de ação de graças. A pacífica
e jubilosa luz do entardecer desperta a espera da luz que se ergue na manhã da
Ressurreição.
Em seguida vem a manhã que se
inicia pela glorificação de Deus, Criador do gênero humano, ao qual Ele confere
a aptidão de ver a luz física que brilha para nós, sendo percebida pelos nossos
olhos e também aquela que é percebida pela alma: a Luz Incriada do Reino. No final das Matinas, o Celebrante exclama: “Glória a Ti que nos fizeste ver a verdadeira Luz!”, ao que o povo responde: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra
aos homens de boa vontade...”
O louvor de Deus, Criador e Doador
de Luz, um louvor incessante determina ou melhor orienta a vida do homem, em todos
os seus atos, e acaba por transfigurá-lo: tal é o ensinamento da Igreja Ortodoxa. Um ser assim “transfigurado” tudo
transfigura, seu ambiente, os homens ao seu redor, a natureza que o cerca, tal como
conhecemos pelo exemplo de São Serafim de Sarov, que consegue fazer os outros verem
a Luz do Reino, na qual ele próprio havia ingressado. Este santo homem saudava
aqueles que se lhe acorriam dizendo: “Cristo ressuscitоu, minha alegria!”
Logo, nada a nos surpreender diante
dos ofícios litúrgicos de Páscoa, pois que cantam a divina Luz de maneira quase
contínua. Se cada domingo é para o cristão ortodoxo o dia da Ressurreição e de sua
luz, podemos imaginar que a arte sacra ortodoxa tenta fazer presente o que o
texto relata no canto pascal: “Hoje tudo esta repleto de luz, o céu, a terra e o inferno. Que toda a
criação cante a Ressurreição de Cristo, em Quem está a sua força!”
A espiritualidade desta arte
inseparável da vida litúrgica da Igreja expressa–se, em primeiro lugar, na
submissão, na obediência do artista–iconógrafo (pintor de ícones, de iluminuras,
de afrescos ou mosaicos) ao seu objetivo espiritual, o que explica o aspecto
instrumental de sua obra. É difícil, para não dizer impossível, representar a
visão luminosa do mundo espiritual nas formas habituais da arte, pois que ao
falar do concreto, a Encarnação de Deus Verbo, o artista–iconógrafo deve
mostrar a espiritualidade que constitui a trama do ícone. A realidade
“material” da Encarnação exclui todas as formas da arte não – figurativa, ”desencarnada”,
e a noção de luz incriada transfiguradora, reveladora do Reino de Deus, não
admite o naturalismo.
Inseparável da vida da Igreja Ortodoxa,
o ícone é freqüentemente qualificado como “teologia a/em cores”. Como toda
verdadeira teologia, o ícone depende da experiência mística e teológica do seu
autor (pois a Igreja do Oriente jamais separa a mística da teologia que,
segundo ela, são os dois elementos necessariamente complementares em todo
esforço humano para se aproximar de Deus). Por isso, os criadores destas
“imagens teológicas” - que são os ícones - permanecem quase sempre
desconhecidos, devido ao fato de proclamarem uma verdade incomensuravelmente mais
importante que sua própria pessoa. Mostrando a luz divina incriada, cantando a
realidade espiritual, um pintor de ícones considera apenas a Verdade suprema
que o faz esquecer-se de si–mesmo. Mas por isso mesmo, sua personalidade é
transfigurada pela resposta descida do Alto. Assim, apagando–se, ou melhor,
tornando–se cada mais transparente ao mundo espiritual, o iconógrafo nos mostra
este mundo em sua obra.
Para fazer compreender nem que seja
um pouco do valor da palavra “ícone” no mundo ortodoxo, teríamos de escrever esta
palavra com “I” maiúsculo, pois que o ÍCONE é a imagem par excellence da pessoa ou do acontecimento representados. Ele
quer mostrar ao espectador a própria essência, a verdade profunda das pessoas e
das coisas, tais como elas se revelam na luz eterna que as banha e penetra. O Ícone
recusa nos mostrar a aparência de um instante, mas revela, como por
transparência, o significado absoluto do representado. Ele é revelação e ensinamento,
participando e participado na troca que se estabelece, entre ele e através dele,
entre aquele que ora diante dele e o mundo espiritual. De fato, esta deve ser a
função do Ícone, segundo a formulação elaborada no VII Concilio Ecumênico que vema
concluir a controvérsia em torno da legitimidade dos Ícones; o ÍCONE deve
permitir ao homem ultrapassar o que ele próprio propõe ao seu olhar físico e
ajudar seu espírito a se pôr em direçãoao seu Arquétipo.
A luz física nos permite perceber,
ver a criação divina e integrá-la em nossa consciência de uma maneira
totalmente específica e diferente daquelas que nos são oferecidas pelos outros
sentidos. A luz divina nos revela os seres e as coisas na sua verdade e beleza,
com as quais o Criador as revestiu em sua origem, sem que sombra alguma venha lhes
escurecer. Grandes visionários cujos testemunhos a Bíblia nos cita, tentaram
descrever suas próprias visões deste mundo sem trevas, tanto quanto a linguagem
humana os permitia. Eis, por exemplo, a visão de São João: ”E Ele mostrou–me a grande cidade, a santa Jerusalém, que de Deus descia
do céu, e tinha a glória de Deus. A sua luz era semelhante a uma pedra mui
preciosa de jaspe como o cristal resplandecente (...). A cidade de ouro puro, semelhante
a vidro puro (...). A cidade não necessitava de sol nem de lua para que nela
resplandeçam, porque a glória de Deus a tem iluminado (...). Não haverá mais
noite; e não necessitará de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumiará”. (Ap. 21, 10-11; 18,23-22,5).
Nos Ícones (sobre pranchas, nos afrescos
ou mosaicos), não há fonte de luz definida nem sombras demarcadas. Os rostos e
as carnes parecem ser iluminados do interior, pela luz que Deus concede a “todo
ser humano vindo a este mundo”, segundo uma oração litúrgica que continua assim: “Que brilhe sobre nós a Luz da Tua Face”. As siluetas
das personagens e o ambiente destacam-se sobre um fundo claro, na maioria das
vezes dourado. É o símbolo da luz celeste, incriada, mas também o meio
artístico que impede definitivamente toda vontade de dar uma impressão de
profundidade, de criar a ilusão de longas distâncias. O Ícone diz a verdade,
não pretende dar ilusão do que quer
que seja. Antes deseja significar algo, mostrar o caminho. Tal um sinal ou um
símbolo no trânsito (cuja razão de ser se situa num outro plano), jamais procura
efeitos de ilusão de ótica.
Pela mesma razão, ou seja, pelo
desejo de testemunhar de um mundo de luz pura, o Ícone usa cores francas que
podem se sobrepôr, oporem–se uma a outra e se complementarem, mas não misturarem–se,
perdendo o seu brilho. Os visionários da Bíblia procuram expressar suas visões
comparando a luz colorida apercebida com pedras preciosas ou com o ouro: “Olhei e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, euma grande nuvem,
com um fogo a revolver-se, e um resplendor ao redor dela e, no meio uma coisa
como de cor de âmbar, que saia dentre o fogo. (...) E por cima do firmamento
(...) havia uma semelhança de trono como duma safira, e sobre a semelhança do
trono havia como que a semelhança de homem, no alto, sobre ele. E vi como a cor
do âmbar; como pelo aspecto do fogo pelo interior dele. (...) Como o aspecto do
arco que aparece na nuvem no dia da chuva, assim era o aspecto do resplendor em
redor. Este era o aspecto da semelhança da glória do Senhor” (Ez. 1,4; 26-28). Os antigos iconógrafos russos preferiam ver o reflexo
deste esplendor celeste nas modestas flores dos campos, as quais lhes
inspiravam em suas composições coloridas.
O templo, a igreja que é o espaço
litúrgico, o lugar onde as pessoas se reúnem ”em Nome de Jesus Cristo”, segundo
o Seu Mandamento, tal como os querubins em torno do o trono de Deus, como no
hino litúrgico ortodoxo, a celebrar a Eucaristia que é a Ação de graças por excelência.
Este lugar, então, é o próprio símbolo do mundo criado tal como o vê o Criador,
sem limites temporais e espaciais. Um poema sírio do século VI descreve a
igreja de Santa Sofia de Edessa (dedicada, de fato, a Cristo, que é a Sabedoria
ou Sophia de Deus) nos seguintes termos: “Seus vastos e esplendidos arcos representavam as quatro partes do
mundo; a multidão e suas cores levavam a pensar nos gloriosos arcos–íris nas
nuvens. (...) Eis o seu teto estendido como os céus; sem colunas, abobado e
fechado, ornado com mosaico de ouro, tal como as estrelas brilhantes no
firmamento. Sua cúpula elevada é comparável aos céus dos céus”. Enfim, o autor
do poema conclui:
“Elevados são os mistérios deste Templo concernindo o céu e a terra: nele é tipicamente representado (ou seja,
simbolicamente) a sublime Trindade, bem como o Plano da salvação de nosso
Salvador”.
Os mosaicos ou afrescos que ornamentam
uma igreja correspondem então a este programa ideal. São as luzes radiosas dos
fundos de ouro dos mosaicos ou os espaços, freqüentemente azuis, dos fundos dos
afrescos que tentam mostrar a qualidade da luz sem declínio do Reino eterno de
Deus. Tendo presente a importância da imagem, seu rigor tipológico (pois que,
como já o vimos, o Ícone deve dizer a verdade acerca de cada personagem,
respeitando assim suas características), as igrejas ortodoxas não tinham
vitrais coloridos, nascidos certamente da mesma vontade de mostrar um mundo
feito de luz e de transparência. Da mesma forma que o Ícone, pela ausência de
profundidade, obriga o psiquismo humano a voltar a si-mesmo para encontrar o
Arquétipo a partir das profundezas de seu ser espiritual, a Igreja Ortodoxa não
permite ao espírito humano vagabundo de divagar, antes o centra novamente face
à imagem de Cristo, que domina o edifício, fazendo–nos, mais uma vez, reencontrar
no interior de nós–mesmos a divina Imagem, que nos conduzirá ao seu Arquétipo.
Na maior parte do tempo, estamos
longe deste ideal, sobretudo em nossos dias. Por costume, apresentamos a história
da arte, bem como da arte sacra, como uma evolução, um progresso. Ora, evolução
não é sinônimo de aperfeiçoamento - freqüentemente, compreende a destruição da
sabedoria adquirida, de culturas, de formas de arte e até mesmo ... do homem.
A arte é reputada como reflexo de
sua época. E se a época é colocada sob o signo da destruição? Então, como
reflexo de seu tempo, a arte vai se autodestruir. Finalmente, a história da
arte é uma historia de criação e destruição. Esta luta contínua causa perdas
enormes e nos conserva pouca coisa. Sempre é mais fácil destruir que criar...
No decorrer do processo de criação,
o homem cria e destrói, anda para frente, se engana e volta atrás, para
recomeçar a criar. Mas a única atividade válida do homem é a sua atividade
criadora, pois o homem é criado à imagem de seu Criador, e a sua aptidão em
criar é a fagulha divina recebida de Deus. De fato, a criatividade é secundária,
ela apenas adquire o seu valor primordial quando se refere à sua Fonte e reflete
sua luz. Quando o homem esquece esta Fonte de energia criativa, sua atividade
torna-se rapidamente destruidora.
Quando penso em tudo o que foi
destruído no decorrer da evolução da arte e em tudo o que se ainda destrói
deliberadamente, tenho vontade de exclamar como Isaías: “Sentinela (Guarda), que houve de noite?” (Is.
21, 11). É buscando-se a luz que se apercebe que apenas a Luz divina pode nos revelar a própria
essência da luz.
“Na
Tua Luz, veremos a luz!” (Sl. 36, 10).
Que ela continue, então, a se nos revelar
nos santos Ícones!
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