POR QUE OS ORTODOXOS HONRAM MARIA?

FREEEMAN Stephen, Padre
tradução de monja Rebeca (Pereira)



A parte mais difícil da minha experiência ortodoxa para discutir com os não ortodoxos é o lugar e o papel da Mãe de Deus na Igreja e na minha vida. É, por um lado, profundamente teológico e até essencial para uma compreensão correta da fé ortodoxa, enquanto, por outro, é intensamente pessoal, indo além dos limites da conversa. Estou convencido, também, de que a abordagem ortodoxa a Maria faz parte do depósito apostólico, e não um acréscimo posterior.

Quando eu estava fazendo pós-graduação, algumas décadas atrás, decidi concentrar minha pesquisa histórica no "culto a Maria" (a veneração a Maria) na Igreja histórica. Com essa decisão, veio um semestre de pesquisa intensiva, vasculhando materiais de todos os tipos. E ao longo de toda essa pesquisa, a pergunta: "Quando isso começou?" esteve sempre presente em minha mente. Cheguei a uma conclusão surpreendente. Tudo começou logo no princípio.

A evidência histórica da veneração de Maria é tão óbvia que é simplesmente ignorada: Seu lugar nos relatos evangélicos. Considero que muitas das evidências "históricas" sobre Cristo têm uma característica semelhante. É divertido, e irritante, ler críticos históricos modernos do Novo Testamento que, a partir desses documentos, argumentam que a noção da divindade de Cristo foi um desenvolvimento posterior. De alguma forma, eles conseguem ler o Novo Testamento e não percebem o mais óbvio: todos os escritores acreditam que Jesus é divino. Eles não percebem que a própria existência do "material sobre Jesus" do Novo Testamento existe unicamente porque seus escritores acreditavam que Ele era Deus. Cada linha flui dessa crença.

De maneira semelhante, o lugar de Maria nos evangelhos carrega uma mensagem de veneração. Aqueles que não veem essa característica óbvia do Novo Testamento geralmente se perdem nos detalhes, interpretando demais ditos como "Mulher, o que tenho Eu a ver con´Tigo?" de Jesus e similares.

Em primeiro lugar, as histórias de Maria ocupam um lugar importante na narrativa evangélica. São Marcos é o que menos A menciona, sem nenhuma narrativa de nascimento. São Lucas tem o maior material, e São João talvez o mais importante. Os críticos bíblicos adotam uma abordagem de "o mínimo é o melhor" e dizem coisas como: "São Marcos não sabe nada sobre narrativas de nascimento", uma afirmação claramente exagerada.

Para mim, é o material aparentemente "gratuito" que aponta para a veneração a Maria. O relato de São Lucas contém o hino do Magnificat, no qual Maria declara: "Todas as gerações Me chamarão bem-aventurada". É uma frase que só pode ser comparada à promessa de Deus a Abraão:

Eu farei de ti uma grande nação; abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn 12:2-3)

No encontro de Maria com Sua parenta Isabel (e com o menino em seu ventre, João), o foco está na própria Maria e não na criança em seu ventre.

Mas por que me é dado isto, que a mãe do meu Senhor venha visitar-me? Pois, assim que a voz da Tua saudação soou aos meus ouvidos, a criança saltou de alegria no meu ventre. (Lc 1:43-44)

Mais tarde, em Lucas, quando o menino Jesus é apresentado no Templo, o ancião Simeão profetiza:

Eis que este Menino está destinado para queda e so-erguimento de muitos em Israel, e para sinal de contradição (sim, uma espada traspassará também a Tua alma), para que sejam revelados os pensamentos de muitos corações. (Lc 2,34-35)
Aqui, Maria é ligada à Cruz de Cristo na trespassar de Sua alma.

Descrevo essas histórias como "gratuitas", pois vão muito além do simples ponto do Nascimento Virginal. Marcos e João não mencionam a concepção ou o nascimento de Cristo (embora ambos incluam Maria em sua narrativa). A abundância de material mariano em Lucas só pode apontar para a sua veneração na Igreja primitiva. Ela não é apenas a Virgem que dá à luz a Cristo – Ela também é abençoada por todos; Ela é a causa de alegria para o profeta João, mesmo no ventre de sua mãe; Ela é uma participante única nos sofrimentos de Cristo, destinada a uma espada mística que Lhe traspassará a alma.

Esta é uma informação que aponta para o lugar singular de Maria na comunidade cristã do primeiro século. Como pode a Igreja não venerar Aquele a quem João Batista saudou com um salto de alegria quando ainda estava no ventre materno? Como pode a comunidade cristã estar corretamente centrada em Cristo Crucificado e ignorar a Mãe com a alma trespassada? O material em Lucas é evidência prima facie da veneração primitiva à Mãe de Deus. Essa veneração nunca cessa na Igreja, mas amadurece com o tempo, à medida que a Igreja considera o significado e a profundidade da Encarnação, Crucificação e Ressurreição de Cristo.

É óbvio que muitos cristãos prefeririam ler apenas o Evangelho de Marcos e ignorar as implicações óbvias em Lucas e João.

O Evangelho de João parece-me marcado por uma profunda compreensão do mistério de Maria. De particular destaque é a primeira menção que faz d´Ela. Nós A encontramos nas Bodas de Caná. João não faz nenhuma introdução à Sua personagem – ele presume um conhecimento prévio por parte de seus leitores. Nas Bodas, o vinho acaba. E sem nenhuma explicação prática, João simplesmente relata que Maria diz a Jesus: "Eles não têm vinho".

É profundo. Seus discípulos ainda não viram nada. Nenhum milagre foi realizado (estas Bodas serão o cenário do primeiro milagre). E, no entanto, Maria sabe quem Ele é e o que Ele significa. Ela já está plenamente iniciada na verdade de Sua vida e ministério.

Muitos protestantes deram grande importância à resposta de Cristo a Ela: "O que há entre Mim e Ti?". Eles interpretaram a declaração como se significasse: "O que é que Te importa?". Na verdade, a pergunta é simplesmente: "O que há entre Mim e Ti?". Mas São João contextualiza a declaração: "Pois a Minha hora ainda não chegou". Cristo diz à Sua mãe: "Ainda não é chegada a hora. Isso ainda não precisa começar".

Eles compartilham o vínculo da Cruz que se aproxima. Sua vida será oferecida, uma espada transpassará Sua alma. E uma vez que Ele comece, nada poderá impedir o movimento em direção ao Gólgota. A resposta d´Ela é simples: "Fazei tudo o que Ele vos disser". É uma repetição da anterior: "Seja feito em Mim segundo a Tua palavra". Sua completa humildade e abnegação diante de Deus são um reflexo humano da abnegação de Cristo na Cruz. Com este novo "fiat", a inexorável jornada para a Cruz começa.

O mistério de sua participação em Cristo não se esgota nos momentos históricos – pois a partilha desses momentos nos evangelhos não se refere, de forma alguma, apenas ao registro histórico. São momentos primordialmente teológicos. Ela ocupa não apenas um lugar na história da salvação, mas também em sua compreensão teológica e participação existencial. Os evangelhos são escritos para a nossa salvação, e não como mera informação.

E é essa realidade teológica e existencial que falta em muitos relatos contemporâneos da fé cristã. Frequentemente se pergunta: "Por que preciso venerar Maria?"

Primeiro, os ortodoxos não diriam: "Você precisa venerar Maria". Em vez disso, dizemos: "Você precisa venerar Maria como a Theotokos" (a que deu à luz Deus). Este é o título teológico dogmaticamente atribuído a ela pelo Terceiro Concílio Ecumênico. Ela é venerada porque é Theotokos. Venerar a Theotokos é parte inerente da crença correta na Encarnação do Deus-Homem. Ignorá-la como Theotokos é ter uma compreensão diminuída e inadequada da Encarnação.

Mas isso é falar em termos de meras ideias. A Encarnação não é uma ideia – é uma realidade – tanto histórica quanto agora eterna. A Encarnação é o Deus/Homem Jesus Cristo. E, mais plenamente, a Encarnação é o Deus/Homem Jesus Cristo pelo Espírito Santo,  da Theotokos. Isso é o que afirma o Credo Niceno-Constantinopolitano.

A realidade desta afirmação não é uma ideia, mas uma Pessoa, tanto no caso do Deus/Homem quanto no caso da Theotokos. O ato de crer na Encarnação de Cristo se manifesta na adoração que é devidamente dirigida a Ele e na veneração que é devidamente dirigida à Theotokos.

E é isso que é tão difícil de explicar aos não ortodoxos. Pois doutrinas são facilmente percebidas por eles como ideias, até mesmo factoides. Na Ortodoxia, essas doutrinas são realidades vivas. É de pouca importância reconhecer que alguém é, de fato, minha mãe. É da maior importância que eu honre minha mãe (por ordem Divina) e a ame. Não pensamos doutrina. Doutrina é uma descrição das realidades pelas quais vivemos. Veneramos a Theotokos porque, sabendo o que sabemos, não podemos agir de outra forma.


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