O ATO DE VENERAÇÃO

FREEEMAN Stephen Padre
tradução de monja Rebeca (Pereira)


Nenhuma atividade espiritual permeia a Ortodoxia tanto quanto a veneração. Para os não ortodoxos, a veneração é frequentemente confundida com adoração. Nós beijamos ícones; cantamos hinos aos santos; clamamos “Santíssima Theotokos, salva-nos!” E tudo isso escandaliza os não ortodoxos que pensam que caímos em algum remanso do cristianismo paganizado. Não é incomum ouvir ortodoxos que mais ou menos se desculpam por essa atividade e buscam minimizá-la. “Estamos apenas tentando dar honra aos santos, etc.” O que falta, com muita frequência, é uma explicação vigorosa para o ato de veneração e seu lugar central na vida cristã.

O modo normal de “ver” em nosso mundo diário pode ser chamado de “objetivo”. Vemos as coisas como objetos e nada mais. De fato, vemos a maioria das pessoas como objetos, a menos que tenhamos motivos para fazer o contrário. Às vezes vemos as pessoas como objetos para não vê-las de outra forma. Mas essa visão objetiva é uma maneira extremamente limitada e limitante de ver qualquer coisa. A veneração nos leva a uma forma diferente de ver.

É cuidadosamente observado nos relatos da ressurreição de Cristo que Ele não é reconhecido a princípio, e em mais de uma ocasião. Maria Madalena O confunde com o jardineiro. Os discípulos na estrada para Emaús conversam com Ele enquanto caminham, mas não O reconhecem até o momento em que Ele desaparece. Os discípulos que estão pescando não O reconhecem até depois de obterem uma pesca milagrosa.

As explicações mais tolas dessas falhas de reconhecimento são aquelas que tentam atribuí-las à dor. As histórias claramente têm outra coisa em mente. Essa outra coisa é particularmente revelada no encontro de Cristo com Maria Madalena. Ela pensa que Ele é o jardineiro e quer saber para onde o corpo de Jesus foi levado. Mas, de repente, esse “jardineiro” a chama pelo nome, “Maria”. E ela O reconhece.

O que ocorreu foi a mudança de uma visão objetiva para uma visão pessoal. É somente no reino da personalidade que experimentamos a comunhão. Não comungamos com "meros" objetos. A Ressurreição, entre muitas coisas, representa o triunfo do pessoal sobre o objetivo/material. O Cristo Ressuscitado não pode ser visto de maneira objetiva, ou, pelo menos, Ele não pode ser visto por quem Ele é dessa maneira. Seria mais preciso, ou útil, dizer que Ele é discernido, ou percebido, em vez de meramente visto. Tanto "discernido" quanto "percebido" implicam algo mais do observador do que simplesmente ver.

A veneração é muito mais do que os atos de se curvar, beijar, fazer o sinal da cruz, oferecer incenso ou acender velas. Essas coisas se tornam veneração quando são oferecidas à pessoa que se torna presente em um ícone. Um ícone que se torna um objeto deixa de ser um ícone verdadeiro e se torna mera arte, ou pior, o objeto de um fetiche. Os Padres ensinaram que um "ícone torna presente aquilo que representa". A veneração de um ícone é um encontro com uma pessoa.

Vale a pena notar que na escritura canônica de um ícone, as pessoas não são retratadas de perfil (exceto o diabo e Judas). Nós sempre as encontramos cara a cara. O tratamento impessoal e objetivo de outra pessoa é um ato de vergonha e inerentemente esconde nosso próprio rosto delas.

Em algum momento, o uso da iconografia pela Igreja se distorceu e se tornou o uso da arte pela Igreja. A arte é interessante e serve ao propósito da beleza (quando bem feita). Mas esse desenvolvimento na Igreja (principalmente no Ocidente, mas ocasionalmente também no Oriente, pois certos estilos foram copiados) representa um afastamento do ícone como encontro e a objetificação dos seres humanos e da natureza. Está entre os muitos passos sérios que criaram a noção de um mundo secularizado.

Jesus, como um sujeito artístico, é igualmente acessível a todos. Seu uso na arte o torna um objeto. De fato, Jesus é frequentemente usado para "fazer uma declaração". Mas este é o anti-ícone, a traição do pessoal como nos é dado a conhecer na Ressurreição. Cristo Se torna historicizado, apenas um objeto entre muitos a serem dissecados e discutidos.

Claro, os cristãos são livres. Podemos decorar nossas vidas com arte como escolhermos, desde que não confundamos arte com iconografia, nem sentimento religioso com encontro espiritual. Mas nosso envolvimento com a arte pode facilmente ultrapassar nossa experiência com ícones. Nossa cultura sabe como “ver” a arte, mas os ícones permanecem opacos. Somente o verdadeiro ato de veneração revela o que é tornado presente em um ícone.

Lembro-me da minha primeira experiência com um ícone. Comprei uma imagem em papel e fiz uma colagem em madeira. Eu a tinha na minha frente durante meu tempo de oração. Eu olhava e pensava, e olhava mais atentamente. Acho que esperava "ver" algo ou que houvesse uma trilha de pensamentos inspirados pelo meu olhar. Mas era simplesmente vazio. Eu era um jovem anglicano em idade universitária na época e não tinha ideia de como encontrar meu caminho para o mundo de um ícone.

Algumas décadas depois, me tornei ortodoxo, tendo escrito uma tese de mestrado sobre a teologia dos ícones e chegado a entendê-los. No verão seguinte à minha conversão, visitei o Seminário de St. Vladimir pela primeira vez. Fiquei surpreso quando entrei na capela e vi que o ícone da Virgem na iconóstase era o original da pequena impressão com a qual comecei minha jornada. E então pude vê-la. Toda a jornada parecia intensamente pessoal, sem acidente ou capricho. Ela me trouxe para casa!

Isso é algo que a veneração começa a nos revelar. Não pensamos nos santos nem os imaginamos. Em seus ícones e em nossa veneração, passamos a conhecê-los. Nós os vemos face a face e até aprendemos a reconhecê-los, assim como seu trabalho e orações em nossa vida diária. O mundo não é acidente e capricho. Ele é profundamente intencional e pessoal, e conspira para nossa salvação.

Os “objetos” em nossas vidas não são nada disso. É apenas a objetividade sombria e insensível do coração moderno que desencantou tanto a realidade. Imaginamos a nós mesmos como os únicos seres abandonados em um pequeno planeta azul no espaço. Nós nos perguntamos se há “vida” lá fora, como se houvesse qualquer outra coisa em qualquer lugar.

O mundo é ícone e sacramento. Mas não pode ser conhecido até que o vejamos face a face. Lede tais doces palavras de São João Damasceno (século VII):

Eu honro toda a matéria e a venero. Por meio dela, preenchida, por assim dizer, com um poder e graça divinos, minha salvação chegou até mim. A madeira três vezes feliz e abençoada da Cruz não era matéria? A montanha sagrada e santa do Calvário não era matéria? E a rocha vivificante, o Santo Túmulo, a fonte da nossa ressurreição — não era matéria? O livro sagrado dos Evangelhos não é matéria? A mesa abençoada que nos dá o Pão da Vida não é matéria? O ouro e a prata, dos quais cruzes, altares e cálices são feitos, não são matéria? E antes de todas essas coisas, o corpo e o sangue de nosso Senhor não são matéria? Ou pare de venerar todas essas coisas, ou se submeta à tradição da Igreja na veneração de imagens, honrando a Deus e seus amigos, e seguindo nisso a graça do Espírito Santo. Não despreze a matéria, pois ela não é desprezível. Nada que Deus fez é. Só o que não vem de Deus é desprezível — nossa própria invenção, a decisão espontânea de desconsiderar a lei da natureza humana, ou seja, o pecado.


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