O GÊNESIS DA IMAGEM CRISTÃ


 OUSPENSKY Leonid
tradução de monja Rebeca (Pereira)


A palavra “ícone” é de origem grega: eikon significa “imagem”, “retrato”. Quando a imagem cristã estava em formação em Bizâncio, designava-se por esta palavra toda representação do Cristo, da Virgem, de um Santo, de um Anjo ou de um acontecimento na história sagrada – fosse esta imagem pintada ou esculpida 1, móvel ou monumental, qualquer que fosse a técnica utilizada. Nos dias de hoje, aplicamos de preferência este termo para as obras de cavalete pintadas, mosaicos ou outros. Este é o sentido que damos ao ícone na arqueologia e na história da arte. Na Igreja fazemos uma certa distinção entre a pintura mural e o ícone: uma pintura mural, afresco ou mosaico não é um objeto, mas faz corpo com a arquitetura, enquanto um ícone pintado sobre uma prancha é um objeto. Todavia, a princípio, tanto o sentido como a significação são os mesmos. Nós os distinguimos não segundo seu sentido mas seu uso e sua destinação. Assim, quando falamos de ícone, temos em vista imagens sagradas em geral, sejam pinturas em pranchas, afrescos, mosaicos ou esculturas. Aliás a palavra francesa “image”, tanto como o vocábulo em russo obraz, exprimem bem esta acepção global.

Paramos, primeira e brevemente sobre as divergências que existem a propósito da origem da arte cristã e a atitude para com a arte da Igreja dos primeiros séculos. Elas deram, em efeito, lugar a apreciações muito diversas. Existe, de uma parte, os pontos de vista da ciência, múltiplos, variados e geralmente contraditórios, que por vezes se aproximam da atitude da Igreja e por vezes se opõem, e existem também, por outro lado, o ponto de vista da Igreja que lhe é único e nunca sofreu mudança alguma, desde o início até nossos dias. A Igreja Ortodoxa afirma e ensina que a imagem sagrada existia desde o início do Cristianismo. Longe de contradizê-lo, ela é, muito pelo contrário, seu atributo indispensável. A Igreja afirma que o ícone é uma conseqüência da Encarnação divina; que ele está fundamentado sobre esta Encarnação e por conseqüência, próprio à essência do Cristianismo, sendo-lhe inseparável.

Pontos de vista contradizendo esta afirmação da Igreja se propagaram sobretudo a partir do XVIII século. Um sábio inglês Gibbon (1737-1791), autor do livro História da decadência e da queda do Império Romano, sustenta que os primeiros cristãos tinham uma aversão insuperável pelo uso das imagens. Segundo ele, esta aversão era devida a sua origem judia. Gibbon pensava que os primeiros ícones só tinham aparecido no final do IV século. Esta opinião fez escola e as idéias de Gibbon se mantiveram, sob uma forma ou de outra, até nossos dias.

Certos cristãos, sobretudo aqueles que vinham do Judaísmo, apoiando-se sobre a interdição do Antigo Testamento, negavam a possibilidade da imagem no Cristianismo, e mais do que as comunidades cristãs rodeadas de todas as partes por um paganismo cuja influência se fazia ainda sentir. Estes cristãos, levando em conta toda a experiência nefasta do paganismo, se esforçavam em preservar sua religião contra o contágio da idolatria que poderia ai penetrar por meio da criação artística. O iconoclasmo deveria ser tão antigo como o culto das imagens. Tudo isto se compreende muito bem, mas não poderia ter um papel decisivo na Igreja, como o veremos a seguir.

A aversão dos primeiros cristãos pelas imagens está fundada, na ciência moderna, sobre os escritos de certos autores antigos 2 que teriam se dirigido contra a arte, estes autores eram qualificados como “Padres da Igreja”. Aqui, uma precisão se impõe: por empregarmos um termo eclesiástico (“Padres da Igreja”), importa não nos afastarmos de nosso sentido. Ora, apesar do respeito que a Igreja traz a alguns destes autores antigos que ocupam o lugar mais importante na argumentação dos sábios (Tertuliano, Orígenes e Eusébio), ela não os considera como ortodoxos 3. Atribuímos assim à Igreja uma atitude que ela não reconhece como sua. Além do mais, podemos reconhecer os escritos destes autores como exprimindo suas convicções pessoais e refletindo certas correntes hostis às imagens no seio da Igreja. Mas eles não podem ser considerados como Padres da Igreja e não é lá uma querela de palavras; ao qualificar estes escritores de “Padres da Igreja”, identificamos sua atitude àquela da Igreja, dos quais eles seriam porta-vozes, e concluímos assim que a própria Igreja se opunha às imagens por medo de idolatria.

“A arte cristã nasceu fora da Igreja, como podemos ler, e, em sua origem pelo menos, se desenvolveu quase que contra seu gosto. O Cristianismo, resultado do Judaísmo, era naturalmente, como a religião de onde saía, hostil à idolatria.” Conclusão: “Logo, não foi a Igreja que criou a arte cristã. Ao que tudo indica, ela não deve guardar por muito tempo em seu lugar uma atitude indiferente e desinteressada; aceitando, regulamentou-a sem dúvida, de uma certa maneira, mas é à iniciativa dos fiéis que seu nascimento é devido 4”. A preparação das imagens no culto é considerada como um fenômeno escapando ao controle da Igreja e, no melhor dos casos, devido a uma indecisão, a hesitações da hierarquia diante do fato desta “paganização” do Cristianismo. Se a arte apareceu na Igreja é apesar desta ai. “Não nos enganaremos datando entre 350 e 400 o reviramento geral da atitude da Igreja na questão das imagens”, escreve Th. Klauser 5. Assim, segundo os sábios modernos, existe de uma parte a Igreja assimilada à hierarquia e ao clero, e de outra parte aos fiéis; e são justamente os fiéis que teriam imposto a imagem à hierarquia. Identificando assim a Igreja à única hierarquia, contradizemos a noção da Igreja tal como ela era nos primeiros séculos cristãos e tal como ela é sempre na Igreja Ortodoxa. É o clero e os fiéis JUNTOS que formam o corpo da Igreja.

Esta teoria está igualmente em contradição com os dados materiais que dispomos. Em efeito, conhecemos bem a existência de afrescos nas catacumbas desde os primeiros séculos, notoriamente nos lugares de assembléia e de culto e nos locais (como por exemplo a catacumba de Calixto) onde o clero era enterrado. Estas imagens eram então conhecidas não só pelos fiéis, mas também pela hierarquia. É difícil de supor que o clero não as via e que, se o Cristianismo era incompatível com a arte, que ele não tomava medida alguma para dar um fim a este erro 6.

A atitude iconoclasta de alguns autores antigos e o prejulgamento contra as imagens de certas correntes dentre os cristãos de nosso tempo (Protestantismo, mais particularmente) levaram a uma identificação da imagem cristã com o ídolo. Esta confusão foi, com grande leveza, atribuída à Igreja antiga para qual, sempre segundo estes autores modernos, a interdição do Antigo Testamento permanecia válida. Mas nenhum crente ortodoxo saberia aceitar uma confusão entre o ícone e ídolo. Sabemos, em efeito, que ao curso da história a Igreja traçou invariavelmente um limite muito nítido entre os dois. As provas não faltam nas obras antigas, nem nas vidas dos Santos dos primeiros séculos, nem mesmo mais tarde.

No que concerne os autores antigos, admitindo até que sua oposição às imagens tenha sido real (como era o caso para Eusébio), esta oposição só provou a existência e o papel da imagem, pois que não lutamos com o quê não existe ou não tem importância alguma. Todavia, a maioria dentre eles, protestando contra as imagens, visam nitidamente só as imagens pagãs. Assim, dentre os que consideramos como os adversários mais obstinados das imagens cristãs, Clemente de Alexandria escreve: “A arte vos turva e vos fascina (...) conduzindo-vos senão ao amor, ou pelo menos ao respeito, à veneração das estátuas e das pinturas. A pintura é semelhante? Que louvemos a arte, mas que o homem não se perturbe, tendo-a por verdade 7.” Clemente fala então só das imagens que fascinam e confundem, dando se por verdade, e se opõe à arte falsa e enganadora. Noutra parte, ele diz: “E se temos um selo, que seja uma pomba ou um peixe, ou um navio que corre sob o vento, ou uma lira, este instrumento de música do qual se serve Policresto, ou ainda uma âncora de barco, como aquela que Seleuco tinha feito gravar em seu anel e, trata-se de um pecador, ele se lembrará do apóstolo e das pequenas crianças salvas das águas 8”. As imagens enumeradas são símbolos cristãos. É então claro que trata-se para Clemente de duas sortes de imagens bem diferentes: umas úteis aos cristãos, as outras falsas e inadmissíveis. Aliás, o próprio Clemente precisa censurando os cristãos que fazem gravar sobre seus selos “figuras de ídolos”, de gládios e flechas da deusa da guerra, cálices de Baco, etc., todas representações compatíveis com o Cristianismo. Tudo isto testemunha da parte de Clemente uma atitude sábia e vigilante para com a imagem. Ele não fala, é verdade que de seu uso profano, não diz nada do uso litúrgico das imagens e não conhece seu pensamento a este sujeito.

Mas a ciência nunca teve perante a arte cristã uma atitude constante: ao lado das opiniões das quais falamos, existe um outro ponto de vista. Assim, um historiador de arte, apoiando-se sobre os mesmos autores antigos bem como sobre São Justino e Santo Atenágoras, conclui: “Os apologistas nada dizem sobre uma oposição de princípio dos cristãos contra as imagens, mas testemunham somente que eram pouco numerosas em sua época 9.” Em efeito, se os cristãos não tivessem admitido as representações, não teríamos encontrado monumentos de arte cristã dos primeiros séculos precisamente nos locais onde os cristãos se reuniam. De outra parte, a vasta difusão das imagens no dealbar dos séculos que seguiram seria incompreensível e inexplicável se não tivéssemos existido antes.

Existe, todavia, um texto invariavelmente citado para provar a oposição da Igreja às imagens, e que é o mais sério argumento. É o cânone 36 do Concílio local reunido em Elvira (Espanha), por volta do ano 306: “Conveio de decidirmos que as pinturas não devem estar na Igreja e o quê é venerado e adorado não deve ser pintado sobre as paredes” (placuit picturas in ecclesia esse non debere, nequod venratur et adoratur in parietibu depingaur). No entanto, não é tão discutido como se pretende por vezes. Em efeito, só se trata de pinturas murais que fazem o corpo com o edifício da igreja, enquanto os outros tipos de imagens passaram em silêncio. Sabemos que nesta época existia na Espanha numerosas imagens sobre vasos sagrados, sarcófagos, etc. Se o concílio não os menciona, quer dizer que sua decisão pode ser ditada por razões de ordem prática e não por uma negação de princípio da imagem sagrada. Não esqueçamos que o Concílio de Elvira (o qual não conhecemos a data exata) se situa no tempo das perseguições de Diocleciano. Não seria necessário ver neste cânone 36 antes uma tentativa de preservar “o quê é venerado e adorado” da profanação? De outra parte, o Concílio de Elvira, em seu conjunto, teve por objeto endireitar abusos em muitos domínios. Não poderia ter também na veneração das imagens?

O quê é decisivo para a Igreja, não é a antiguidade de tal ou tal testemunho à favor ou contra o ícone (o fator cronológico), é o acordo ou o desacordo deste testemunho com a revelação cristã.

A recusa das imagens, em certas correntes, nos primeiros séculos cristãos se explica sobretudo por uma certa confusão devida sem dúvidas à ausência de uma linguagem adequada tanto pictural como verbal. Para responder a todas estes equívocos e a esta diversidade de atitudes para com a arte, seria necessário encontrar formas de arte e expressões verbais que não permitissem mais nenhum desentendimento. De fato, a situação no domínio da arte era a mesma na teologia ou na Liturgia. Esta falta de clareza e de unidade era devido à dificuldade para a criatura de aceitar, de assimilar e de exprimir o que lhe ultrapassava. Em outra, é necessário levar em conta o fato de que Cristo escolheu para Sua Encarnação o mundo judeo-greco-romano. Neste mundo, a realidade da Encarnação de Deus e o mistério da Cruz eram para eles um escândalo, para os outros a loucura. Escândalo e loucura eram então também a imagem que os refletia, o ícone. Mas, é precisamente a este mundo que se dirige a predicação cristã. Para habituar, pouco a pouco, os homens à realidade inconcebível da Encarnação, a Igreja lhes fala primeiramente uma linguagem que estava mais ao seu alcance do que uma imagem direta. E isto nos parece, uma das principais causas da abundância dos símbolos nos primeiros séculos do Cristianismo. Era, tal como nos diz São Paulo, alimento líquido, próprio à infância. A qualidade do ícone da imagem só penetraria muito lentamente e dificilmente na consciência dos homens e em sua arte. Somente o tempo e as necessidades de diversas épocas históricas tornaram, pouco a pouco, evidente o caráter sagrado da imagem, conduziram o desaparecimento dos símbolos primitivos e purificaram a arte cristã de todas as sortes de elementos estrangeiros os quais tapavam o conteúdo.

Desta forma, apesar da existência no seio da Igreja de certas correntes hostis as imagens, havia igualmente e sobretudo uma corrente essencial afirmando as imagens – esta que sem ser formulada exteriormente, dominava cada vez mais. É esta corrente que é expressa pela Tradição da Igreja e que fala da existência do ícone do Senhor, quando vivia sobre a Terra, bem como ícones da Virgem feitos logo após - mais exatamente depois do Pentecostes. Esta tradição testemunha que na Igreja havia, desde o início uma compreensão muito nítida em relação ao sentido e ao alcance da imagem, que a atitude da Igreja para com a imagem é invariavelmente a mesma, pois que esta atitude decorre de seu ensinamento acerca da Encarnação de Deus. A imagem é, então, própria à natureza do Cristianismo, pois que este é a revelação não somente do Verbo de Deus, como também da Imagem de Deus manifestada pelo Deus-Homem. A Igreja ensina que a imagem se fundamenta sobre a Encarnação da segunda Pessoa da Trindade. Não é lá uma ruptura nem, em maior razão, uma contradição com o Antigo Testamento, tal como compreendem os protestantes, mas, ao contrário, sua realização direta. Pois a existência da imagem no Novo Testamento é implicada por sua interdição no Antigo. Ainda que isto possa parecer estranho, para a Igreja a imagem sagrada decorre precisamente da ausência de imagem direta no Antigo Testamento; é a sua conseqüência e o seu resultado. O antepassado da imagem cristã não é o ídolo pagão, como pensamos por vezes, mas antes a ausência de imagem corneta e direta antes da Encarnação e assim o símbolo veterotestamentário, tal como o antepassado da Igreja não é o mundo pagão, mas o antigo Israel, o povo eleito por Deus para acolher a revelação. Para a Igreja, é absolutamente evidente que a interdição da imagem formulada no Êxodo (20, 4) e no Deuteronômio (5, 8-9) é uma medida provisória, pedagógica, concernindo unicamente o Antigo Testamento e não uma interdição de princípio. “Pelo que também lhes dei estatutos que não eram bons” (Ez. 20, 25) em virtude da dureza de seus corações, diz São João Damasceno para explicar esta interdição 10. Eis que paralelamente à interdição da imagem direta e concreta, existia a ordem divina formal de estabelecer estas imagens simbólicas, estas prefigurações que eram o tabernáculo e tudo o que ele continha, prefigurações cujos menores detalhes foram, para assim dizer, ditados por Deus.

A doutrina da Igreja a este sujeito é expressa com muita clareza por São João Damasceno em seus três Tratados pela defesa dos santos ícones, escritos em resposta aos iconoclastas que se firmavam à interdição bíblica e confundiam a imagem cristã com o ídolo. Confrontando textos veterotestamentários e evangélicos, ele mostra que a imagem cristã é, como havemos dito, um resultado do Antigo Testamento e seu cumprimento, pois que decorre da própria essência do Cristianismo.

Seu raciocínio se resume assim: no Antigo Testamento a manifestação direta de Deus ao Seu povo é unicamente no som, na palavra. Ele não Se mostra, permanece invisível e sublinha que ao escutando a Sua voz, Israel não veria imagem alguma. No Deuteronômio (4, 12) lemos: “Então o Senhor vos falou do meio do fogo: a voz das palavras ouvistes; porém, além da voz, não vistes semelhança nenhuma” e um pouco mais longe: “Guardai pois com diligência as vossas almas, pois semelhança (imagem) nenhuma vistes no dia em que o Senhor vosso Deus em Horebe falou convosco.” Imediatamente depois vem a interdição: “ Para que não vos corrompais, e vos façais alguma escultura, semelhança de imagem, figura de macho ou de fêmea. Figura dalgum animal que haja na terra: figura dalguma ave alígera que voa pelos céus; figura dalgum animal que anda de rastos sobre a terra; figura dalgum peixe que esteja nas águas debaixo da terra. E não levantes os teus olhos aos céus e vejas o sol, e a lua, e as estrelas, todo o exército dos céus, e sejas impelido a que te inclines perante eles, e sirvas...” Assim, quando Deus fala da criatura, Ele proíbe de representá-la. Mas quando fala d´Ele Próprio, proíbe igualmente de fazer Sua imagem, insistindo sobre o fato de que Ele é invisível: nem o povo, nem o próprio Moisés viram imagem alguma d´Ele; eles apenas ouviram Sua palavras. Por não terem visto Deus, não podiam representá-Lo; podiam somente fixar a palavra divina por escrito, o que fez Moisés. E como poderiam ter representado o que é imaterial e indescritível, o que não tem forma, nem medida? Todavia na própria instância dos textos bíblicos sublinhando que Israel ouve a palavra, mas não vê imagem, São João Damasceno descobre uma indicação misteriosa da possibilidade futura de ver e de representar Deus vindo na carne. “O que está misteriosamente indicado nos locais da Escritura? Pergunta ele. É claro que é a interdição de representar o Deus invisível; mas quando veres Aquele que não tem corpo tornar-Se Homem por causa de ti, então farás representações de Seu aspecto humano. Quando o Invisível, tendo Se revestido de carne, tornar-Se visível, então representa a semelhança d´Aquele que Se manifestou (...). Quando Aquele que, sendo a Imagem consubstancial do Pai, despojou-Se assumindo a imagem de escravo (Fp. 2, 6-7), tornando-Se assim limitado na quantidade e na qualidade, tendo revestido a imagem carnal. Então pinta (...) e expõe à vista de todos Aquele que quis aparecer (manifestar-Se). Pinta o Seu Nascimento da Virgem, Seu Batismo no Jordão, Sua Transfiguração sobre o Monte Tabor (...), pinta tudo pela palavra e pelas cores, nos livros e sobre as pranchas 11”. Assim, a interdição de representar o Deus invisível contém nela implicitamente a necessidade de representar Deus, uma vez as profecias realizadas. As palavras do Senhor: “Vós não vistes imagem; não fazei-a”, querem dizer: “Não façais imagem de Deus por não O teres visto.” A imagem do Deus invisível é impossível “pois como representar o que é inacessível à vista 12”? Se tal imagem fosse feita assim mesmo, seria fundada sobre a imaginação, logo uma invenção, uma mentira.

Conseqüentemente, podemos dizer que a interdição escriturária de representar Deus está ligada à destinação geral do povo de Israel. A razão de ser do povo eleito era servir o verdadeiro Deus. Este ministério consistia em seu messianismo, na preparação e na prefiguração do que deveria ser revelado no Novo Testamento; eis porque no Antigo Testamento só poderiam ter prefigurações simbólicas, revelações do porvir, posto “que a lei não era uma imagem, diz São João Damasceno, mas era como um muro que ocultava a imagem. Eis que o Apóstolo Paulo diz: “porque tendo a lei a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas” (Hb. 10, 1) 13”. Dizendo de outra forma, precisamente o Novo Testamento é a própria imagem das realidades.

Quanto à interdição das imagens das criaturas formuladas por Deus a Moisés, ela só tem um objetivo: impedir o povo eleito de adorar a criatura e de lhe render um culto no lugar do Criador. “Tu não te encurvarás ante elas e não lhes renderás culto algum” (cf. Ex. 20, 5 e Dt. 5, 9). Em efeito, visto a tendência do povo à idolatria, a criatura e toda imagem da criatura riscariam de ser divinizadas e adoradas. Depois da queda de Adão, o gênero humano foi sujeito à corrupção e, com ele, todo o mundo terrestre. Eis porque a imagem do homem corrompido pelo pecado, ou de todo ser terrestre, não podia aproximar o homem do verdadeiro Deus e não podia levá-lo no sentido contrário, quer dizer à idolatria; ela era impura e não podia ser construtiva. Precisava, a todo preço, abster-se de uma imagem concreta.

Falando de outra forma, uma imagem da criatura não pode substituir a imagem de Deus que o povo não tinha visto quando o Senhor falou em Horebe. Eis porque diante de Deus a criação de qualquer semelhança é uma iniqüidade. De lá as palavras: “Guardai pois com diligência as vossas almas para que não vos corrompais e vos façais alguma escultura, semelhança de imagem, figura de macho ou de fêmea, figura dalgum animal que haja na terra...” (Dt. 4, 15-17).

Mas esta interdição é nitidamente uma medida de proteção ligada ao ministério específico do povo eleito e isto ressalva nitidamente da ordem dada por Deus a Moisés de construir, seguindo a imagem que lhe fora demonstrada sobre a montanha, o Tabernáculo e tudo o que ele deveria conter, compreendendo os querubins colados no metal (Ex. 25, 18; 26, 1 e 31). Primeiramente, este mandamento indica a possibilidade de exprimir pelos meios da arte a realidade espiritual. De outra parte, não trataria de representar querubins em geral nem não importa aonde, pois que os judeus poderiam ter, diante da imagem deles como diante daquela de toda outra criatura, caído na idolatria. Os querubins só poderiam ser representados no Tabernáculo, como servidores do verdadeiro Deus, no lugar e na atitude que sublinhassem esta dignidade.

Esta exceção à regra geral mostra que esta não tinha um caráter absoluto. Eis porque também “Salomão que havia recebido o dom da sabedoria, ao representar o céu, fez imagens de querubins, de leões e de touros”, diz São João Damasceno 14. O fato de que estas criaturas eram representadas junto do Templo, quer dizer no local onde o culto ao verdadeiro Deus era realizado, excluía sem dúvida toda possibilidade de adoração 15.

Para construir o Tabernáculo seguindo o modelo sobre a montanha, Deus indica homens especialmente escolhidos a este propósito. Não se trata de homens que, com seus dons naturais, pudessem simplesmente fazer tudo seguindo as indicações de Moisés. Não. Eis o que a Bíblia diz a este respeito: “Enchi Bezaleel do Espírito de Deus, de sabedoria, e de entendimento, e de ciência, em todo artifício. E eis que eu tenho posto com ele a Aoliabe, o filho de Aisamaque, da tribo de Dã, e tenho dado sabedoria ao coração de todo aquele que é sábio de coração, para que façam tudo o que tenho ordenado” (Ex. 3 e 6). Existe ai uma indicação muito nítida de que a arte que está ao serviço de Deus não é uma arte como outra qualquer. Sua base não é somente o talento nem a sabedoria humanos, mas também a sabedoria do Espírito de Deus, a inteligência concedida pelo Próprio Deus. Em outras palavras, a inspiração divina é o próprio princípio da arte litúrgica. A Escritura traça lá um limite entre a arte litúrgica e a arte em geral.

Isto tem para nós muita importância, pois este caráter específico e esta inspiração divina da arte são próprios não somente ao Antigo Testamento, mas ao próprio princípio da arte. Tal era o princípio no Antigo Testamento, tal é no Novo Testamento.

Todavia, regressemos à explicação de São João Damasceno. Se, no Antigo Testamento a revelação direta de Deus se manifestava somente pela palavra, no Novo Testamento ela se manifesta por vezes pela palavra e pela imagem. Pois o Invisível tornou-Se visível, o Irrepresentável representável. A presente, Deus não Se dirige mais aos homens pela única palavra e pelo intermediário dos Profetas: Ele Se mostra na Pessoa do Verbo Encarnado, Ele “permanece entre os homens”. No Evangelho segundo São Mateus (13, 16-17), diz São João Damasceno, o Senhor, quer dizer o mesmo Deus que havia falado no Antigo Testamento, diz honrando Seus Discípulos e, com eles, todos aqueles que vivem a Sua imagem e seguem Seus traços: “Felizes são os vossos olhos porque eles vêem e os vossos ouvidos porque eles ouvem. Eu vo-lo digo, em verdade, muitos dos Profetas e dos justos quiseram ver o que vós vedes e não viram, ouvir o que vós ouvirdes e não ouviram 16”. É evidente que quando Cristo dia a Seus Discípulos que seus olhos são bem-aventurados de ver o que eles vêem e seus ouvidos de ouvirem o que ouvem, isto se reporta a algo que ninguém nunca viu nem ouviu, pois os homens sempre tiveram olhos para ver e ouvidos para ouvir. Estas palavras de Cristo não se reportam aos Seus milagres, pois os Profetas veterotestamentários também tinham operado milagres (bem como Moisés, Elias que tinha ressuscitado um morto, impedido a chuva de cair, etc.). Estas palavras querem dizer que os Discípulos viam e ouviam diretamente Aquele que foi anunciado pelos Profetas – Deus Encarnado. “Ninguém jamais viu a Deus, diz o Evangelista São João: o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, é Aquele que O fez conhecer” (Jo. 1, 18).

É assim que o traço distintivo do Novo Testamento é o laço estreito existente entre a palavra e a imagem. Eis porque os Padres e os Concílios, ao falarem de imagem, não deixam jamais de sublinhar: “O que ouvimos falar, nos o havemos visto”, citando as palavras do Salmo 48, 8: “Como o ouvimos, assim o vimos na cidade do Senhor dos Exércitos, na cidade do nosso Deus.” O que o homem vê e o que ele ouve são a partir de então inseparáveis. O quê David e Salomão viam e ouviam não passavam de palavras proféticas, prefigurações proféticas do que havia acontecido no Novo Testamento. A presente, no Novo Testamento, o homem recebe a revelação do Reino de Deus que há-de-vir e esta revelação é-lhe dada tanto pela palavra como pela imagem – pelo próprio Filho de Deus Encarnado.

Os Apóstolos viam de seus olhos carnais o que, no Antigo Testamento, era somente prefigurado por meio de símbolo: “Deus que não tem corpo nem forma, outrora não era representado de maneira alguma. Todavia, agora, que Ele veio na carne e que Ele habitou entre os homens, eu represento o aspecto visível de Deus 17.” Eis ai toda a diferença com as visões do Antigo Testamento. “Eu contemplo a semelhança de Deus como Jacob a via, mas duma maneira diferente: pois ele via pelos olhos imateriais do espírito uma imagem imaterial que prefigurava o porvir, enquanto eu vejo o que inflama a lembrança d´Aquele que veio na carne 18.” Enquanto os Profetas contemplavam em espírito prefigurações revelando o porvir (Ezequiel, Jacob, Isaías...). Agora o homem vê com os olhos da carne a realização de suas revelações – Deus encarnado. São João Evangelista o exprime com uma grande força em todas as primeiras palavras de suas Epístolas: “Aquele que era desde o início, o que nós ouvimos, o que nós vimos com os nossos olhos e o que nossas mãos tocaram.”

“Assim, continua São João Damasceno, os Apóstolos tinham visto de seus olhos carnais o Deus tornado Homem – Cristo - eles tinham visto Sua paixão, Seus milagres e ouvido Suas palavras. Ora, nós também que seguimos os traços dos Apóstolos, desejamos ardentemente ver e ouvir. Os Apóstolos viram Cristo face a Face porque Ele estava corporalmente presente. Mas nós que não O vemos diretamente, nem ouvimos Suas palavras, nós escutamos pelo menos estas palavras pelo intermediário de livros e santificamos assim nosso ouvir e, por este meio, nossa alma. Nós nos consideramos felizes e veneramos os livros pelo intermediário dos quais ouvimos as palavras sagradas e somos santificados. Da mesma maneira, pelo intermediário de Sua imagem contemplamos o aspecto físico de Cristo, Seus milagres, Sua paixão. Esta contemplação santifica nossa vista e, por este meio, nossa alma. Nós nos consideramos felizes e veneramos esta imagem elevando-nos na medida do possível, através deste aspecto físico, à contemplação da glória divina 19...” Por conseqüência, se pelo intermediário das palavras que ouvimos com os nossos ouvidos carnais nos saciam do que é espiritual, a contemplação carnal nos conduz também à contemplação espiritual.

O comentário de São João Damasceno não exprime sua opinião pessoal, nem mesmo um ensinamento que a Igreja teria adicionado à sua doutrina primitiva. Este ensinamento faz o corpo com a doutrina cristã. Ele faz parte da própria essência do Cristianismo, da mesma forma que o ensinamento acerca das duas naturezas de Cristo ou a veneração da Virgem. São João Damasceno só faz sistematizar e formular no século VIII o quê existia desde o início. Ele o faz em resposta a uma situação que exigia uma grande clareza e nitidez, assim como sistematizou e formulou também o ensinamento geral da Igreja em sua obra Sobre a Fé ortodoxa.

Todas as prefigurações do Antigo Testamento anunciavam a salvação futura, esta salvação que é, a presente, realizada e que os Padres resumiram na fórmula: “Deus tornou-Se Homem para que o homem torne-se deus.” Esta obra redentora é então centrada sobre a Pessoa de Cristo, Deus tornado Homem, e ao lado d´Ele, sobre a primeira pessoa humana inteiramente deificada, a Virgem. É a estas duas Pessoas centrais que converge toda a tipologia do Antigo Testamento, que ela se exprime pela história humana, por animais ou por objetos. Assim, o sacrifício de Isaac, o cordeiro, a serpente de cobre prefigurando o Cristo, Ester, mediadora do povo diante do rei, o vaso de ouro contendo o pão celeste, a vara de Aarão, etc., prefiguravam a Virgem. A realização destes símbolos proféticos se realiza no Novo Testamento pelas duas imagens essenciais: aquela de nosso Senhor, o Deus-Homem, e aquela da Santíssima Mãe de Deus, primeiro ser humano deificado. Eis porque os primeiros ícones, que apareceram ao mesmo tempo que o Cristianismo são aqueles do Cristo e da Virgem. E a Igreja, afirmando-o pela sua tradição fundamenta sobre estas duas imagens, verdadeiros pólos de seu culto, toda a sua iconografia.

Esta realização da promessa divina feita ao homem santifica e ilumina assim a criatura antiga, a humanidade veterotestamentária, englobando-a na humanidade resgatada. Nós podemos agora, depois da Encarnação, representar igualmente os Profetas e os Patriarcas da Antiga Aliança, como testemunhas da humanidade já resgatada pelo sangue do Deus Encarnado. As imagens destes homens, tanto como aquelas dos Santos neo-testamentários, não podem mais nos levar à idolatria porque conhecemos agora a imagem de Deus no homem, “porque, como nos diz sempre São João Damasceno, recebemos de Deus a capacidade de discernir e sabemos o que pode ser representado e o que não pode ser expresso pela representação. Pois a lei foi como um pedagogo para nos conduzir a Cristo, a fim de que fossemos justificados pela lei. Tendo, então, vindo a fé, não estamos mais sob o pedagogo (Ga. 3, 24-25: ver também Ga. 4, 3) 20”. Isto quer dizer que não representamos os vícios dos homens, não fazemos imagens à glória dos demônios. Nós fazemos representações à glória de Deus e de Seus Santos, a fim de sermos encorajados ao bem, evitarmos o vício e salvarmos nossas almas.

O laço fundamental entre a imagem e o Cristianismo é a fonte da tradição segundo a qual, desde o início, a Igreja pregava ao mundo o Cristianismo por vezes por meio da palavra e também pela imagem. É por isso que os Padres do Sétimo Concílio Ecumênico puderam dizer: “A tradição de fazer os ícones existia desde o tempo da predicação apostólica 21”. Este pertencer essencial da imagem ao Cristianismo explica porque ele aparece na Igreja e porque, como uma coisa que vai de si-mesmo, ocupa silenciosamente o lugar que lhe é devido, apesar da interdição do Antigo Testamento e uma oposição relativa
  
NOTAS DA TRADUÇÃO:
1. É necessário dizer que, contrariamente à opinião corrente, a Igreja Ortodoxa não somente nunca interditou as estátuas, mas que tal interdição é mesmo impossível, pois não tem fundamento em seu ensinamento.
2. Trata-se sobretudo de Tertuliano (160-240 ou 250), Clemente de Alexandria (150-216), Orígenes (185ou186-254 ou 255), Eusébio de Cesaréia (265-339 ou 340) e outros, menos conhecidos, tal como Minutius Félix (II séc. ou III séc.), Arnobo (255 ou 260-327) e Lactâncio (240 ou 250, a data de sua morte não é conhecida).
3. Tertuliano, apesar de sua grandeza de apologista e de confessor, termina sua vida no Montanismo e o De Pudicitia, onde ele protesta contra certas imagens, foi escrito quando ele já tinha deixado a Igreja: Orígenes foi condenado pelo Quinto Concílio Ecumênico; Eusébio, semi-ariano, era também origenista.
4. L. BRÉHIER, L´Art chrétien, Paris 1928, pp. 13 e 16. Na mesma ordem de idéias, ver pelo exemplo o célebre Dictionnaire d´Archéologie chrétienne et de Liturgie de CABROL., Paris 1915; Ch.DIEHL, Manuel d´Art Byzantin, t.I, 1925, pp. 1 e 360; a Enciclopédia oficial da Igreja romana intitulado Ecclesia, Paris, 1935, pp.2-3; V. LAZAREV, Historie de la Peinture byzantine, em russo, Moscou-Leningrado, 1947, t.I, p.41; A. GRABAR, L´iconoclasme byzantin, Paris, 1957, cap. “l´Église et les images”. Dentre os mais recentes, citemos Th. KLAUSER, “Die Äusserungen der alten Kirche zur Kunst”, Gesammelte Arbeiten zur Liturgie-Geschichte, Münster, 1974, pp. 329-337.
5. Ibid., p. 334.
6. É verdade que a ciência moderna tem tendência a não seguir as datações dos sábios do passado e, ao contrário, datar os afrescos das catacumbas em função de sua própria pesquisa científica. Assim, Th. Klauser considera ser necessário modificar a datação para adaptá-la às considerações que ele desenvolve. É o quê se faz atualmente. Ver por exemplo o nº 18, 1977, da revista Les Dossiers de l´Archeologie onde os mesmos afrescos são atribuídos seja ao II séc. ou ao IV séc., graças aos métodos científicos dos autores.
7. Protreptique, Introdução, tradução e notas de Cl. MONDESERT, Paris, 1949, pp. 121-122.
8. Pédagogue, Tradução de Cl. MONDESERT e Ch. MATRAY, P.G. 8, 156 C. Paris, 1970, p. 125, P.G. 8, 633.
9. N. POKROVSKY, “Monumentos da iconografia e da arte cristã”, 2ª edição, SPb. 1900, p. 16, em russo.
10. II Tratado pela defesa dos santos ícones, cap. XV.
11. I Tratado, cap. VIII e III Tratado, cap. VIII.
12. III Tratado, cap. IV.
13. I Tratado, cap. XV.
14. I Tratado, cap. XX.
15. É interessante notar que se os judeus antigos não renunciavam as imagens esculpidas (talhadas) que existiam no Tabernáculo e no Templo de Salomão, os judeus de nossa era, em contrapartida, se pegam rigorosamente à letra da Lei e se abstêm de toda imagem talhada (ver E. NAMENYI, L´esprit de l´art juif, 1957, p.27).
16. II Tratado, cap. XX. Cf. III Tratado, cap. XII.
17. I Tratado, cap. XVI.
18. I Tratado, cap. XXII.
19. III Tratado, cap. XII.
20. III Tratado, cap. VIII.
21. Mansi XIII, 252 B.

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