A SALVAÇÃO COMO DIVINIZAÇÃO NA OBRA DE SÃO GREGÓRIO PALAMAS
YANGAZOGLOU Stavros
tradução de monja Rebeca (Pereira)
I – A
economia de Cristo, motivos e pressuposições
A corrupção
que caracteriza desde a origem a natureza dos seres criados constitui
o quadro principal da consideração antropológica de São Gregório
Palamas. Nestes limites, a liberdade da existência criada se opera
de maneira trágica e antinômica. O primeiro homem, encontrando-se
no limite do intangível e do sensível, englobava em sua natureza a
totalidade da criação tal um outro microcosmo. Ele deveria dirigir
progressivamente esta criação e reconsolidá-la livremente na vida
incriada de Deus. Tentando ele mesmo ser Deus, não chega a ser um
amante derrisório do orgulho e da dominação. É então livremente
e pela sua própria vontade que ele se abandona à mortificação da
vida, o que significa o seu abandono e sua separação de para com
Deus. O fracasso da economia adâmica leva à privação da vida
livre e verídica do homem e à sujeição deste último e de toda
criação sensível à última ameaça.
Caídos nas
armadilhas do círculo da corrupção, os descendentes de Adão não
chegam a se desligarem deste enlaçar mortal. O problema da corrupção
não concerne simplesmente o comportamento moral e a desobediência
que os primeiros homens lamentaram amargamente. A morte ataca a
partir de então não somente a vontade mas toda a natureza do criado
e ela se transmite hereditariamente como uma doença incurável.
Assim, a perspectiva original da economia adâmica, quer dizer sua
transformação progressiva e a união de Adão como Filho e o Verbo
de Deus, “a fim de que no porvir ele se dirigisse ao seu
arquétipo”, se interrompe provisoriamente. As túnicas de pele que
Deus oferece por amor pelos homens são um emblema do tempo do
arrependimento a fim de que a humanidade, cativa do perigo último da
inexistência, possa livremente e por ela mesma superar sua
decadência voluntária fora da vida verdadeira.
Eis porque
fora necessário, e é necessário, que o homem nasça sem ter
provado do pecado. Ora, era algo de impossível. [...] Uma vez que
Adão caiu, desviando-se do bem para o mal, nenhum dentre os homens,
não foi deixado indiferente ao mal, nem apareceu tal, depois dele.
(1)
A natureza
caída do homem tem necessidade de uma ajuda e de uma salvação que
provenham de fora da humanidade, mas que ela seja capaz de se
apropriar.
Deus, que é
incriado, é o único que está acima da morte e da corrupção. Ele
intervém por amor pelos homens socorrendo o ser criado que se
encontra no impasse. A intervenção divina que se realiza em toda
liberdade não deveria, em função disto, atingir, limitar, ver
arrasar, pela sua presença incriada, a liberdade e a integridade do
homem. São Gregório Palamas considera que a intervenção de Deus
na tragédia humana e o retorno do gênero humano à liberdade e à
vida se operam “na justiça, sem a qual nada não se realiza sem
Deus” (2).
Contrariamente ao artificio diabólico que uma força superior pôs
em obra para subjugar o homem, Deus não manifesta seu todo-poder
face à justiça divina que tolera e não viola a liberdade dos seres
criados.
Pois que
tal era a ordem do melhor: que a justiça precedesse o poder; tal era
a obra de uma soberania verdadeiramente divina e boa, não de uma
tirania: que o poder seguisse a justiça. (3)
Deus não
é, por assim dizer, nem um monarca supremo, que se submete
inevitavelmente a uma noção abstrata de justiça que O ultrapassa,
nem um tirano que impõe Sua vontade pela lei. No clima totalmente
diferente dos conceitos psicológicos e jurídicos da Idade Média
ocidental, segundo os quais a salvação tem lugar para satisfazer a
justiça divina, a teologia dos Padres gregos reconhece na justiça
divina a expressão de uma benevolência infinita e de um amor
desinteressado aquando da manifestação da economia de Deus.
Segundo a
justiça divina, Deus, por amor e em toda liberdade, dá ao homem o
direito de responder livremente ao seu desígnio tanto na criação
original como na recreação em Cristo. A aplicação desta justiça
misericordiosa em favor da salvação e da reabilitação dos homens
deveria preencher certas exigências. Colocando uma série de
condições antropológicas, Gregório Palamas analisa e resume o
pensamento patrístico concernente a solução que a cristologia
propõe contra o impasse da economia adâmica.
Antes de
tudo, a ultrapassagem da morte deveria de certa maneira provir da
própria natureza do homem posto que ele se expôs voluntariamente.
Posto que a morte conquistou os homens, a vitória sobre a corrupção
não deveria somente concernir a natureza humana, mas necessário
seria que ela fosse duma amplitude que reunisse toda a humanidade à
qual transmitiria a comunhão à imortalidade. Isto significa que a
natureza humana pela qual se efetuaria a ultrapassagem da morte não
deveria possuir uma hypostase particular mas reagrupar de certa
maneira toda humanidade. Era necessário um novo Adão cuja hypostase
lhe permitisse de tornar-se o vector pessoal da intervenção divina.
Ele deveria, de certa forma, associar e incorporar todas as
hypostases humanas no seio de sua própria existência e de lá
ajudar na ultrapassagem das diversas divisões da natureza criada.
Conseqüentemente,
era necessário que o novo Adão não fosse somente feito homem mas
também Deus, que ele seja literalmente vida e sabedoria, justiça e
amor, benevolência e todo outro mérito, para que possa realizar o
renascimento e a revivência do Antigo Adão na misericórdia, na
sabedoria e na justiça. (4)
De outra
maneira, posto que a natureza humana foi mortalmente tocada corpo e
alma, “era-nos necessário não somente a ressurreição da alma,
mas também aquela do corpo, em virtude dos homens que viriam ao
mundo em seguida, no tempo determinado” (5).
Isto significa que a existência humana sobre a qual se realizará a
intervenção salutar deverá, corpo e alma, estar íntegra e
incorruptível. De mais, aqueles que já foram entregues à morte
deveriam igualmente ter acesso à ressurreição da vida:
Àqueles
que estavam no inferno [...] e que a libertação definitiva em
relação aos demônios que os mantinha em cativo, a santificação,
e a promessa futura, fossem oferecidas. (6)
Logo, a
intervenção de Deus para renovar e revivificar a linhagem adâmica
deveria em todo estado de causa ter lugar “no homem”. Mas desde o
instante onde toda linhagem de Adão herda e transmite a morte à sua
descendência, uma nova existência humana deveria ser criada, a qual
seria sem pecados para que ela pudesse aceitar a presença do Deus
incriado e tornar-se a fonte e a portadora de uma vida inesgotável
para toda criação destinada à corrupção:
Eis porque
então o Filho e o Verbo de Deus, o único sem pecado, torna-Se o
Filho do homem, imutável em Sua divindade, irrepreensível em Sua
humanidade; [...] ainda mais, Ele é o único a não ter sido
concebido nas iniqüidades nem gerado nos pecados. (7)
A
humanidade que se apronta em assumir o Filho de Deus era, antes da
decadência da natureza humana, isenta de todo pecado. Ainda que ela
fosse sem pecados, a humanidade do Novo Adão aceitará de bom grado
sofrer as conseqüências da queda do Antigo Adão e isto a fim de
ultrapassá-las. “Assim, o diabo é vencido pelo homem, sobre o
qual, no princípio, ele tinha levado a vitória” (8).
Tal obra salvadora no seio da natureza humana não poderia ser
realizada nem por um Anjo nem por não importa qual homem mas somente
por “Aquele que, concebido e Encarnado no seio materno da Virgem,
permanece Deus sem mudança” (9).
Face à
perspectiva da criação do homem formado à imagem e à semelhança
de Deus, o conjunto da tradição patrística entreviu de maneira
dinâmica a relação arquétipa entre o Verbo de Deus e a existência
humana. Sob estas condições antropológicas, a teologia dos Padres
distinguiu corretamente de uma parte “o fato de ser o Filho Aquelq
que encarna e não o Pai nem o Espírito” e de outra parte “o que
Ele realizou ao encarnar-Se” (10).
Ao fundamentar-se sobre a benevolência – princípio que anuncia a
liberdade na iniciativa de Deus aquando da Encarnação - “o Filho
de Deus torna-Se filho do homem”, de sorte que Sua qualidade filial
permanece inalterada. O Verbo do Pai, que havia originalmente criado
a natureza humana “à Sua própria imagem”, intervém ainda uma
vez para realizar o mistério da recriação e do retorno à
verdadeira vida.
Eis porque,
no presente, Deus não Se limita a remodelar maravilhosamente de Suas
mãos nossa natureza, mas a contém n´Ele; Ele não no-la assume
somente para tirá-la da decadência, mas a reveste inefavelmente
unindo-Se sem separação com ela, gerada por vezes como Deus e
homem, de uma mulher, para assumir a própria natureza que Ele havia
modelado em nossos antepassados, de uma virgem, para criar um homem
novo. (11)
Esta
intervenção paradoxal do Filho era de qualquer forma compreendida
na evolução positiva da economia adâmica como uma união
progressiva do criado e do incriado. Sem mudar de orientação, esta
Cristologia
original se transforma a partir de então e toma em consideração o
acontecimento trágico da decadência e da corrupção do gênero
humano. Isto significa que a salvação e a libertação da
decadência herdada pelos descendentes de Adão e de Eva não
constituíam a única razão da Encarnação, mas elas são
compreendidas no destino benevolente que Deus concebeu para Seu mundo
(12).
O mistério
da Encarnação da economia de Deus é pré-eterno. A vontade divina
da Encarnação de uma das três Pessoas da Trindade foi incriada e é
pré-eterna. Pela Sua Encarnação que teve lugar pelo amor ilimitado
para com o homem, como Deus a quis, nós aprendemos qual era a Sua
vontade pré-eterna para conosco. (13)
São
Gregório Palamas considera tal como São Máximo o Confessor (14)
que a Encarnação é o objetivo primordial e absoluto que prossegue
Deus em Seu ato de criação. O gênero humano “mortal antes mesmo
da aparição da morte porque tais foram suas raízes” tinha
necessidade de ser integrado a um Arquétipo. O acontecimento
crístico não é devido absolutamente à queda de Adão e à inveja
do diabo, mas constituía desde o princípio o objetivo da perfeição
do primeiro homem.
Ainda mais,
a própria fundação do mundo, desde o princípio, olhava para Ele,
que é batizado aqui em baixo como Filho do Homem, e que Se designou
pelo testemunho o Alto como o único Filho bem-amado de Deus, para
que e por que toda coisa existisse, como diz o Apóstolo.
Conseqüentemente, a criação do homem, no princípio, se produziu
por Ele, pois o homem fora moldado à imagem de Deus, a fim de que um
dia pudesse conter o Arquétipo. O mandamento dado por Deus no
Paraíso fora destinado a ele: pois o legislador não o teria
instituído que devesse permanecer para sempre imperfeito. As
palavras e as obras de Deus que seguem este mandamento, em sua
quase-totalidade, foram destinadas a ele; poderíamos dizer também
que todas as naturezas, as ordens angélicas e as instituições que
lá do alto tendiam a este objetivo: a economia divino-humana que
elas servem do início até o fim. (15)
Isso para
não dizer que a teologia patrística bem como Gregório Palamas se
colocam fora do clima das suposições escolásticas concernindo o
“pressuposto” ou o “não-pressuposto” da Encarnação. O
Padre Jugie revelou – despojando-as de sua coerência – passagens
dos textos do santo hesycasta que, segundo ele, sustentam que o Verbo
fez-Se carne de maneira “pressuposta” ou “não-pressuposta”,
e conclui que a verdadeira posição de Palamas se identifica àquela
que Santo Tomás de Aquino tinha adotado no fim de sua vida. Assim,
de uma parte, a Encarnação do Verbo foi inevitavelmente decidida em
virtude da decadência e, de outra parte, Deus guarda para Jesus toda
a graça que deveria conceder aos Anjos e aos homens. Nossa opinião
é que a posição de São Gregório Palamas enquanto teólogo por
excelência da deificação não diferencia de maneira hipotética
mas sublinha de maneira complementar o dito “pressuposto” da
Encarnação alargando a soteriologia no quadro da cristologia –
domínio mais vasto que aquele da Redenção. (16)
A história
da economia divina revela de uma teologia dos acontecimentos que
desde o início tendem a um único objetivo, e ela não se limita de
maneira unívoca ao esquema soteriológico “Queda – Redenção”
mas se estende da Criação ao Reino de Deus. Eis porque a
salvação em Cristo não consiste numa simples cura da natureza
caída, mas na realização do objetivo inicial que era a união do
criado com o incriado. Esta salvação não se esgota na cura da
natureza caída mas se cumpre na vida da divinização em Cristo. Por
outro lado, os seres criados e dotados de razão renunciaram a Deus
no objetivo falacioso e egocêntrico de alcançar a divinização.
Eis por que aliás, no lugar de serem deificados, foram constrangidos
à morte. O Verbo de Deus oferece a solução ao homem que não chega
à autodeterminação e à divinização.
Ele torna toda coisa
semelhante a Ele; e posto que por natureza Ele é igual a Ele próprio
e recebe a mesma honra, torna também Sua criatura igual a ela mesma,
recebendo a mesma honra por graça. (17)
Daqui em diante, a tendência
do homem à divinização o torna responsável e seu desejo inicial
se realiza.
Em uma homilia que pronunciou
no sábado santo, Gregório Palamas sublinha que “Deus, ainda que
pudesse de diversas maneiras render o homem da tirania do diabo,
preferiu, a justo título, proceder segundo esta economia” (18).
O Arcebispo de Tessalônica remarca desde o início que a Encarnação
não era a única solução possível que o Filho pré-eterno
dispunha para salvar o homem da morte e da sujeição do diabo. O
Deus Todo-Poderoso poderia ter salvado o homem do pecado mortal por
diversas maneiras, mas Ele preferiu a economia da Encarnação a
qualquer outra intervenção na existência do criado.
Mas em realidade, Ele tinha um
meio mais apropriado à nossa natureza e à nossa fraqueza, e que
convinha o melhor ao Agente, a saber a Encarnação do Verbo de Deus;
pois que este meio comportava nele a justiça, sem a qual nada é
realizado por Deus. (19)
Nesta apóstrofe lançada
aquando do Discurso pascal de São Gregório Palamas, nós
discernimos a síntese entre a perspectiva “pressuposta” ou
“não-pressuposta” da economia da Encarnação. A encarnação se
oferecia e convinha como um remédio à doença da natureza humana e
ela era ao mesmo tempo o meio mais apropriado que dispunha o Filho e
Verbo de Deus para ativar o mistério pré-eterno da benevolência
amante para com os homens. Tanto a salvação como a divinização do
homem se realizam livremente e “com justiça”, e não de maneira
forçada.
Este ponto de vista sintético
de Gregório Palamas exprime de maneira vigorosa a relação única
entre a economia adâmica e a cristologia. E mais, não somente o
teólogo hesycasta destaca da questão da decadência o motivo da
Encarnação, mas considera a encarnação do Filho e a divinização
do homem como axe central e objetivo principal da criação dos
seres. A história da economia divina não levanta-se mais do passado
e do fato da decadência do Antigo Adão, mas se realiza através da
revelação gloriosa do Novo Adão como um acontecimento que
compreende e concerne a chegada do Reino de Deus. O Senhor Encarnado
é “o alfa e o ômega” no universo, “Aquele que é, que era e
que vem” (Ap. 1, 8).
Os motivos da Encarnação do
Filho que poderiam ser diferenciados em três níveis distintos, quer
dizer antropológico, soteriológico e teológico são recomeçados
por Palamas que os reúne harmoniosamente para reconstituir toda
história da economia divina como uma teologia de acontecimentos
partindo da criação original à vinda do Reino de Deus. Por razões
metodológicas, vamos apresentar separadamente os quadros
antropológico, soteriológico e teológico a fim de pôr em
evidência a continuidade e a integração da economia adâmica na
cristologia:
Por conseqüência, o Filho de
Deus tornou-Se homem [...] para mostrar que a nossa natureza fora
criada boa por Deus [...] para mostrar como a natureza humana fora
criada à parte e à imagem de Deus, pois sua parentela com Deus é
tão grande que ela pode se unir a Ele numa única hypostase; para
honrar a carne, esta própria carne mortal, de maneira a que os
espíritos orgulhosos não se considerem e não sejam considerados
digno de honras maiores que o homem, e que eles não desafiem sob
pretexto de sua incorporeidade e de sua aparente imortalidade. (20)
A perspectiva antropológica
dos motivos da Encarnação se coloca no quadro da Revelação e da
realização icônica entre a existência divina e a
existência humana. O fato que a natureza humana em sua unidade
psicossomática tenha a possibilidade de se unir numa única
hypostase com a natureza da divindade, revela a função cristológica
inicial bem como a criação do homem à imagem e à semelhança do
Verbo de Deus. Noutro lugar, a Encarnação confirma em si que o
pecado não convém à natureza humana. Em paralelo, a carne enquanto
tal não constitui uma causa de mortalidade e, deste fato, ela não
pode ser considerada de maneira unívoca como o problema
antropológico principal da corrupção. Ao contrário, a falta de
imortalidade afeta todos os seres criados, que eles sejam sensíveis
ou inteligíveis. Os Anjos incorporais não poderiam em caso algum
contribuir de maneira decisiva na ultrapassagem da corrupção que
caracteriza a dualidade da natureza humana. E mais, a possibilidade
da divinização oferecida igualmente ao corpo humano abre uma
perspectiva dinâmica para todos os seres sensíveis na pessoa do
Filho Encarnado:
O Filho de Deus tornou-Se
homem [...] para mostrar o amor de Deus por nós; para mostrar em que
abismos de mal tínhamos caído, ao ponto de ter necessidade da
Encarnação de Deus; para desligar o laço do pecado; para
tornar-se, à nossa intenção, um exemplo da pobreza da carne e das
paixões, e um remédio contra o orgulho; para que não
pretendêssemos nós mesmos termos triunfado de nossa inferioridade;
para tornar-se o príncipe e o responsável da Ressurreição e da
vida eterna, arrasando o desespero; para nos mostrar a que altura nos
elevaria; para que, sendo duplo, fosse verdadeiro mediador,
harmonizando cada parte uma com a outra e uma pela outra; para que,
tornado Filho do Homem, participando à condição mortal, torne os
homens filhos de Deus, dando-lhes em partilha a divina imortalidade.
(21)
Segundo a interpretação
soteriológica da Encarnação, a decadência do homem e seu abandono
ao mal teriam, de certa maneira, provocado a vinda de Deus sobre a
terra sob forma humana. Nós consideramos, todavia, que Palamas põe
notoriamente o acento sobre o fato de que a queda do homem fora tão
grande que a Encarnação testemunha de uma parte, da profundeza
abissal de sua queda e, de outra parte, da necessidade imperiosa para
a existência humana de ai encontrar um remédio. Em conseqüência,
foi o homem e não Deus que teve necessidade da vinda de Deus sobre a
terra. Assim, a queda não provoca obrigatoriamente a Encarnação
mas Deus intervém de Si mesmo e por amor a fim de libertar o homem
da corrupção (22). A Encarnação não somente salvou o
homem da morte, como foi igualmente complementária para com o
objetivo inicial posto que ela une o criado com o incriado. A
Encarnação de Deus tem por conseqüência a deificação do homem.
A salvação dos seres criados se realiza inteiramente quando sua
mortalidade se muda em vida perpétua e imortal.
O quê mais adicionar? Se o
Verbo de Deus não tivesse encarnado, o Pai não teria Se manifestado
realmente como Pai, nem o Filho realmente como Filho, nem o Espírito
Santo como procedendo Ele também do Pai; Deus não Se revelaria em
Sua existência essencial e hypostática, mas somente como uma
energia contemplada nas criaturas, como diziam outrora os sábios
tornados loucos, e como o dizem ainda hoje os partidários de Barlãao
e de Akindynos. (23)
Gregório Palamas completa
suas considerações acerca dos motivos da Encarnação do Filho
pondo em evidência o objetivo final da perspectiva teológica da
revelação completa e verídica das pessoas trinitárias. A salvação
torna-se deificação quando o mistério da economia se resume na
pessoa do Filho e a comunhão da Santa Trindade que abole toda crença
antropomórfica para com Deus e conduz o mundo corruptível a um
mundo novo que viverá sob a luz incriada do Reino do Pai e do Filho
e do Espírito Santo.
II – União hypostática
e deificação da humanidade
Segundo o Santo Bispo, a
cristologia revela o fato de que o homem, formado à imagem de Deus,
tem a possibilidade de reganhar e de consolidar suas relações com o
Criador:
A natureza humana pode até se
unir a Ele numa hypostase e permanecer eternamente com Ele sem
divisão. (24)
Mas a união das duas
naturezas de Cristo não compreendem obrigatoriamente duas hypostases
respectivas porque isto levaria certamente à confusão e à mudança
tanto da divindade como da humanidade. Todavia, sem sombra de
dúvidas, uma “cristologia simétrica” no absoluto aniquilaria ou
limitaria a humanidade à existência do criado por ele próprio.
Neste caso, a deificação, vista como uma comunhão real com Deus,
seria absolutamente irrealizável. Cristo é um segundo a hypostase e
duplo no que concerne Suas naturezas humana e divina. Esta
cristologia assimétrica adotada aquando do Concílio
Ecumênico de Calcedônia (451) não coloca a hypostase do Verbo
entre duas naturezas cuja mistura mecânica e a aproximação
realizam o acontecimento cristológico. Ao contrário, a hypostase
substancial e eterna do Verbo, ao assumir a natureza humana, a
deifica igualmente. Graças ao seu caráter enhypostasiado, a
humanidade de Cristo pode assumir o que ela não obteria se existisse
por ela mesma. Por conseqüência, na cristologia, tudo se produz por
meio da “unicidade da hypostase”.
É importante sublinhar o fato
de que os Concílios do XIV século aprovaram a doutrina teológica
de São Gregório Palamas e introduziram-nas na cristologia do VI
Concílio Ecumênico. Esta doutrina não foi considerada como uma
simples adição mas como um desenvolvimento da cristologia de São
Máximo o Confessor. Segundo a cristologia das duas naturezas e
energias, a união do Filho segundo a hypostase com a humanidade
assumida garante igualmente a troca das energias físicas e das
propriedades, mas não das naturezas. Desta maneira pessoal, a graça
incriada e a glória da divindade tornam-se igualmente esplendor da
humanidade de Cristo. Posto que a deificação é uma unção e não
uma modificação da natureza humana, o Nome de Cristo – que
significa ungido – não se refere de maneira unívoca à
hypostase divina, mas as duas naturezas.
A natureza humana, ungida pela
sua união hypostática com o Filho, recebe a plenitude das energias
incriadas da natureza trinitária. Cada dom feito por Deus para com a
criação e, por excelência, o mistério da deificação da
humanidade em Cristo é um acontecimento cujo axe é a Trindade
Santa. Deus Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, dispõe com
benevolência o mistério da deificação-unção, o qual é
realizado por Cristo em Pessoa enquanto o Espírito Santo O assiste
de uma maneira particular. A graça divina, riqueza inesgotável de
energia da divindade trinitária, pela ação d Espírito Santo – o
qual “acaba” a energia trinitária inserindo-o da existência
criada – desce sobre a terra e reside para sempre, na natureza
humana de Cristo, posto que esta última é enhypostasiada pelo
próprio Verbo de Deus.
O Cristo é então a nova
existência, o “segundo homem” que, recebendo a plenitude da
divindade incriada, tornou-Se uma fonte inesgotável de santidade e
de graça. Isto é atestado de maneira decisiva pelo Nascimento
paradoxal, o Batismo, o ensinamento e os milagres, a Transfiguração
e enfim a Cruz, a Ressurreição e a Ascensão, que são
acontecimentos que revelam progressivamente a obra da economia
divina; pelo meio da unicidade da hypostase, a humanidade de Cristo
iguala a divindade e torna-se, ela também, a fonte das energias e
das forças incriadas.
III – Da comunhão
eclesial à deificação
A doutrina dos Padres gregos
sobre a deificação do homem se resume pela frase clássica de Santo
Atanásio:
O Verbo e Filho de Deus que Se
uniu à carne, torna-Se carne, homem perfeito, a fim de que os homens
se unissem num só Espírito. Ele é então Deus que porta a carne e
nós, os homens, aqueles que portam o Espírito. (25)
A Encarnação do Verbo foi o
começo da deificação dos homens em particular, porque ela permitiu
precisamente a vinda e a transmissão da graça do Espírito Santo. A
hypostase de Cristo não pode ser dividida, o que não é o caso do
dinamismo incriado de sua humanidade deificada. Existe então uma
distinção precisa entre a deificação da humanidade de Cristo e
aquela dos Santos. A deificação do que foi assumido em Cristo é um
acontecimento único que é caracterizado pela união hypostática
com a divindade do Verbo. As hypostases específicas dos homens não
se unem a Deus segundo a natureza ou segundo a hypostase, mas
participam segundo a energia à graça incriada do Espírito Santo. A
natureza humana de Cristo é uma fontana e uma cisterna de onde jorra
esta graça deificante. O Cristo pleno do Espírito é uma fontana
inesgotável de graça e torna-se o fundador da Igreja. Ele transmite
Sua “energia teândrica” aos Seus fiéis. Ele é e permanece
único enquanto uma multidão de homens tornam-se “crísticos”,
“sem princípio” e “sem fim” segundo a graça e não segundo
a natureza. A revelação única de Cristo “pela Sua própria
carne” é seguida de Sua presença perpétua através dos Santos.
Desta maneira, Ele torna-Se novamente graça. Esplendor e deificação,
segundo sua adoção no Espírito Santo. Os Santos são, seguindo São
Máximo o Confessor, ícones vivos do Cristo. Por
conseqüência, a santidade da Igreja está em comunhão na santidade
do Cristo, trata-se então de uma cristofania.
A obra de Cristo não se
limita então simplesmente à recepção e à deificação segundo a
hypostase da natureza humana, mas compreende igualmente a tarefa de
renovar cada ser humano enquanto pessoa. A posição segundo a qual
Cristo é simplesmente o libertador da natureza humana em geral é
errônea porque ela pressupõe, de uma pare, que a libertação da
natureza humana tem lugar tanto na ocasião da Encarnação como
aquando dos Sacramentos da Igreja e, de outra parte, a obra da
deificação e da libertação das hypostases humanas pertencem a uma
economia específica, aquela do Espírito Santo. (26)
Pois que não é uma hypostase
mas a nossa natureza que o Filho Único de Deus assumiu de nós e a
renovou, unindo-Se a ela em Sua própria hypostase, não comunica
então Ele a Sua graça a cada uma de nossas hypostases, e cada um
dentre nós não recebe d´Ele a remissão de seus próprios pecados?
E como Ele que “quer que todos os homens sejam perfeitamente
salvos” (I Tg. 2, 4) e que, para todos os homens, “inclinou os
céus e dele desceu” (Sl. 17, 5), que por Suas obras, Suas palavras
e Sua Paixão nos mostrou toda a via da salvação, subiu Ele
novamente aos céus atraindo a Ele os fiéis? Pois bem, Ele renova a
natureza que Ele havia assumido de nós para nós, Ele a mostrou
santificada, justificada e obediente ao Pai, por tudo o quê Ele fez
e sofreu ´Ele mesmo, unindo-Se a ela segundo a hypostase. Ora, a
nossa natureza não é somente de cada um de nós, crentes, mas
também nossas hypostases, que Ele renovou; e pela graça Ele nos deu
a remissão dos pecados pelo divino Batismo, pela guarda de Seus
Mandamentos, pelo arrependimento que Ele deu por graça àqueles que
caem, e pela comunhão ao Seu Corpo e ao Seu Sangue. (27)
Assim como o acontecimento do
Cristo que Se realizou ele próprio “pelo Espírito Santo”, da
mesma obra divina da Encarnação, a constituição dos membros do
Corpo da Igreja pressupõe um encontro pessoal com Cristo o qual se
realiza pelo Espírito Santo. A graça do Paráclito que pode ser
partilhada e comunicada contribui a que o Cristo único seja múltiplo
segundo a graça e “myriohypostático” a fim de que seja acolhido
por muitos homens. Este dom e esta transmissão de Espírito revela a
força da presença do Verbo Unigênito sobre a terra. Ele é o fogo
que acende o altar divino e se propaga pelo corpo do homem-Deus como
uma força de ressurreição e de imortalidade. Ele é iluminação
para os Santos mas também um elemento constitutivo para todos os
seres racionais.
A formação pneumatológica
do mistério cristológico se dissemina então na vida da Igreja. Por
meio dos Sacramentos, o Cristo único Se associa santificando e
deificando cada homem pessoalmente segundo sua preparação ascética.
Posto que a comunhão sacramental de Cristo produz o renascimento
espiritual dos fiéis que “se unem num único espírito com o
Senhor”. A vista reveladora da luz incriada que fora manifestada
exteriormente aos Discípulos na Transfiguração, pode iluminar
interiormente toda existência dos que crêem. Porque, a partir de
então, com a conclusão de Sua economia, Cristo, instalado como
convinha a Deus, “para lá das absides do céu” os transforma em
membros de Seu Corpo deificante. A comunhão eucarística no Corpo de
Cristo enquanto participação da graça e energia incriada do
Espírito Santo é a comunhão da deificação e, para aqueles que
tem um coração puro, ela é uma teofania que se identifica àquela
dos Discípulos sobre o Monte Tabor. (28)
Notas
1. cf. Homilia 16, 4; 11
(éd. in PG 151 e por Oikonomos, Atenas, 1861).
2. cf. Homilia 16, 21.
3. cf. Homilia 16, 2.
4. cf. Homilia 7, 4.
5. cf. Homilia 16, 21.
6. Ibid.
7. cf. Homilia 16, 4.
8. cf. Homilia 16, 7.
9. cf. Homilia 14, 5.
10. cf. João Damasceno,
De fide orthodoxa, PG 94, 1105C-1109C.
11. cf. Homilia 58, 8.
12. cf. G. Florovsky,
“Cur Deus Homo? The Motive of the Incarnation” em Eucharistirion,
Mélanges offerts à A. Alivisatos, Atenas, 1958, p.70-79.
13. cf. Conversações
com Gregório, 6.
14. cf. Máximo o
Confessor, Quaestiones ad Thalassium 60, PG 90, 620-625. H.
Urs von Balthasar precisa que “é a união do mundo consigo mesmo e
com Deus e não a redenção do pecado que é o motivo último da
Encarnação e logo do pensamento primário do Criador antes de toda
criação”, ver Liturgie Cosmique, éd. Aubier, Paris, 1947,
p.205.
15. cf. Homilia 60,
19-20.
16. cf. M. Jugie,
“Palamas Grégoire”, DTC XI, 1769-70. Ver também G.
Russo, “Rahner and Palamas: A Unity of Grace”, SVTQ 32,
nº2, 1988, p.173-174.
17. cf. Homilia 58, 4-5.
18. cf. Homilia 16, Sobre a
economia da encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo.
19. cf. Homilia 16, 1.
20. cf. Homila 16, 19.
21. Ibid.
22. Seguindo
J. Meyendorff, “a questão de saber se, sem a queda, a Encarnação
teria da mesma maneira lugar, não era central para os bizantinos: os
teólogos consideram antes o fato concreto da mortalidade humana, uma
tragédia cósmica a qual, pela Encarnação, Deus aceitou tomar
parte pessoalmente, ou mais exatamente hypostasicamente. A mais
importante e, aparentemente, a única exceção é representada por
São Máximo o Confessor para que a Encarnação e a “recapitulação”
de todas as coisas em Cristo são “intenção” e o
“objetivo”verdadeiros da criação: elas eram então previstas e
projetadas independentemente do abuso trágico que o homem havia
feito de sua liberdade. A perspectiva de Máximo corresponde bem à
sua concepção de “natureza” criada enquanto processo dinâmico
orientado a um objetivo escatológico: o Cristo, Logos
encarnado. Como Criador, o Logos
está no “princípio” (arche) da criação e enquanto Encarnado
está também no “fim” (telos) quando todas as coisas serão não
somente “por Ele” mas também “n´Ele”. Para estar “em
Cristo”, a criação deveria ter sido assumida por Deus, feito
“sua”. Em outras palavras, a Encarnação é a condição
primária da glorificação final do homem independentemente do
pecado e da corrupção”. Ver Initiation
à la théologie byzantine, éd. du
Cerf, Paris, 1975, p. 216.
23. Ibid.
24. cf.
Homilia 16, 11.
25. cf.
Atanásio de Alexandria, Sobre a Encarnação do Verbo, 8, PG 26,
996C.
26. Esta
posição foi sustentada pelo teólogo V. Lossky em seu célebre
livro La
théologie mystique de l´Église
d´Orient. Para uma discussão e uma
crítica das posições de Lossky em relação com a teologia de
Palamas, ver a obra Communion dans la
déification. La synthèse entre christologie et pneumatologie dans
l´oeuvre de saint Grégoire Palamas,
Atenas, 2001 (em grego).
27. cf.
Homilia 60, 18.
28. cf.
Triades pour la défense des saints
hésychastes, 1, 3, 38, éd. J.
Meyendorff, Louvain, 1959.
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