Sobre a sinergia
CLEMENT Olivier
tradução de monja Rebeca (Pereira)
São Paulo fala do homem como
synergos,
colaborador de Cristo, e muitas palavras do Evangelho evocam esta
“sinergia”: notoriamente a parábola do semeador, onde cabe ao
homem laborar a terra para que ela receba plenamente o bom grão e
traga seus frutos ao cêntuplo.
Na
tradição ortodoxa – e este será o meu primeiro ponto – a
sinergia se fundamenta sobre três temas teológicos, estreitamente
ligados:
·o
arriscar-se de Deus na criação;
·a
sinergia do divino e do humano em Cristo;
·uma
antropologia “teândrica”, animada pelas noções conjuntas da
imagem, da semelhança e da liberdade.
Como tudo é circular (penso na
fórmula de Evágrio: “Deus dá a oração àquele que ora”),
ouso então repetir:
· O
arriscar-se de Deus na criação
Deus é tão poderoso que pode
criar, face a Ele, um outro que Ele respeite em sua alteridade e em
sua liberdade. Necessário é ao poder pleno para criar (bara)
realmente um outro,
e por lá-mesmo, este poder pleno implica uma misteriosa limitação,
como um retirar-se,
dizem os Padres gregos (a mística judia fala aqui do tsimtsum),
a limitação que implica o amor. Na criação dum outro, Deus Se
arrisca, Deus Se faz vulnerável. A criação está à sombra da
Cruz, o Cordeiro fora
imolado desde a fundação do mundo,
diz o Apocalipse. Nosso Deus não é um Deus compacto, massivo,
arrasador, Ele é comunhão e fonte de toda comunhão, Ele Se abre e
Se revela amor:
“No princípio era o Verbo,
e o Verbo estava pros
ton Théon
e o Verbo era théos”.
O quê era o próprio lugar do
Espírito torna-se em Cristo, nosso lugar. Em efeito, quando
este Deus Se encarna, Ele respeita de tal forma os homens que Se
deixa crucificar por eles.
“Vinde a Mim, vós todos que estais afadigados e Eu vos darei
repouso”. Repousar,
pousar duplamente,
simultaneamente, graças ao Cristo, no divino, no humano.
·A
sinergia do divino e do humano em Cristo
São Máximo o Confessor aplica
significativamente à relação do divino e do humano em Cristo a
noção até então reservada as Pessoas trinitárias da perichorese.
Não existe em Cristo preponderância de uma vontade sobre a outra,
de uma energia sobre a outra, mas sim sinergia
livre, comunhão dinâmica no mistério, por vezes divino e humano,
eterno e temporal, da filiação.
O Verbo, pela Encarnação, assumiu a natureza humana, restaurando no
homem a imagem, por pura graça. Mas
a passagem da imagem à semelhança
exige a colaboração ativa do homem: da
vontade humana de Jesus primeira e fundamentalmente,
e em seguida daquela dos homens re-nascidos no Espírito, à sua
vocação própria de filhos de Deus. O local deste renascimento,
tonando-se pouco a pouco consciente e operativo, por ser então o
Cristo – em quem o tropos
filial é oferecido à liberdade pessoal. “Eis que o Senhor nos
concedeu o tropos
da salvação e nos deu o poder eterno de nos tornarmos filhos de
Deus: desde então a nossa salvação está em nosso querer”
(Máximo, PG 90,953B).
A salvação é virtualmente
universal, posto que Cristo morreu por todos e todos são n´Ele
ressuscitados. No Gólgota – quando Jesus exclama: Eli,
eli, lama sabactani –
Deus vem de qualquer maneira em Sua própria ausência. “Eis que
estou à porta e bato”, diz o Apocalipse. Todos
estão predestinados à salvação, o Adão total no Adão
definitivo. Deus não
está ausente: Ele procura o homem com uma inesgotável paciência
e ternura, até a recusa; na mais
opaca ou na mais luciferina separação não há um só instante em
que Deus não solicite o homem, onde Seu amor não o cerque, pronto a
invadi-lo desde que uma porta
se entreabra, “...Uma pressão atmosférica que pesa igualmente
sobre cada um”, diz o Padre Lev Gillet. Nicolau Cabasilas, grande
liturgo e espiritual bizantino do XIV século dizia ao meio laico que
“o amor louco” de Deus pelos homens O faz transbordar-Se para
fora de Si-mesmo, até Se encarnar, sofrer e morrer, a fim de
convencer os homens deste amor. “...Ele declara Seu amor e pede que
O paguemos em retorno; diante de uma recusa, Ele não Se retira, Ele
não formula injúrias; afastado; espera à porta e faz de tudo para
Se mostrar como verdadeiro amante...”
·Uma
antropologia “teândrica”
A Ortodoxia recusa colocar o
problema da salvação em termos de “causalidade”:
é Deus, é o homem, o quê é a “causa”
da salvação? Nem a salvação pela fé somente, nem a salvação
pelas obras somente, mas a salvação
pelo amor. O amor
implica o encontro, e o encontro para ser verdadeiro, implica a
liberdade. A graça vivifica toda existência. O dinamismo a Deus é
suscitado por ela. Liberdade e graça são duas noções que não
podemos separar. É necessário concebê-las juntas e uma na outra.
Só podemos distingui-las, unindo-as. O
momento da graça é incluso na obra criadora de Deus.
A criatura existe para receber a graça e esta está presente na
criação. A liberdade primária, trágica do homem, a liberdade
nascida, de alguma sorte, do “retirar-se” de Deus, pode recusar a
graça e tornar-se escrava da morte. Gregório de Nissa escreve
(Discursos de Páscoa): “Deus honrou o homem com a liberdade a fim
de que o bem pertença, como próprio, àquele que o escolheu não
menos que Àquele ao qual o bem pertence como natureza.” A
liberdade nos é necessária para aceitarmos o nosso ser criado, bem
como todo o cosmos, como dom
de Deus – no lugar
de sofrê-los (herdá-los)
passivamente.
São Máximo o Confessor
distinguiu no homem duas
liberdades – temas
repetidos, com outras nuances, no XX século, por Nicolas Berdiaev.
De uma parte a
liberdade propriamente “natural”,
que é justamente o dinamismo de nossa natureza unida à graça.
Cristo restaurou plenamente esta liberdade. Mas de outra parte, o
homem, enquanto pessoa, é uma liberdade sobre a qual Deus não tem
controle (proveniente
de Ungrund original,
diz Berdiaev, talvez um pouco ingenuamente). O Verbo, ao encarnar,
não pode assumir esta liberdade, sob pena de ver os homens
tornarem-se presas de marionetes zombadoras. Ele pode somente tentar
dobrá-la – eu diria quase que seduzi-la – pela demonstração de
Seu amor, de Seu “amor louco”, como dizem Máximo e Cabasilas,
pela revelação do Deus crucificado, não pleno, compacto,
arbitrário, tirano, mas “esvaziado” ao infinito pela kenosis –
como que para nos fazer espaço. Somente a meditação da Cruz pode
dobrar nossa mais selvagem liberdade, diz Máximo o Confessor em sua
“Epístola a Tomé”. Somente a visão do Deus morrente de amor
pode oferecer a própria vida aos Seus assassinos pode abrir à graça
esta liberdade primária – diante da qual o Cristo destrói os
obstáculos, as barreiras de Sua prisão: a distância entre o criado
e o incriado pela Sua Encarnação, a separação pela separação
invertida da cruz, a morte pela ressurreição. Então o Espírito
Santo, em Cristo, libera
nossa liberdade. O
Oriente desenvolveu uma mística batismal fundada sobre a
participação dinâmica do homem em sua santificação. “O
Espírito não forja de força a liberdade. Ele a modela segundo o
seu querer da santificação...” (Máximo, 90, 280 CD). A forma
Cristica de filho é selada no coração do homem pelo Espírito –
e eis o gérmen do mundo novo. Então começa a sinergia com a graça
de todo agir natural do homem e, através deste, todo o dinamismo da
criação: a escatologia começa desde esta vida. A forma divina que
recebemos no batismo é uma vocação a entrar no “modo de vida”
do Cristo (91, 712 B).
A transformação incessante –
sinérgica – da natureza na graça, é
a passagem da imagem à semelhança
– uma palavra que deve-se tomar em um sentido dinâmico.
O Verbo, diz Máximo, preside à
criação (gênesis)
da natureza humana criada à imagem de Deus. E o Espírito, quando a
liberdade primária pronunciou seu fiat suscita no homem um
nascimento (gennêsis),
quer dizer uma pessoa livre pela semelhança com Deus: “... a fim
de que o mesmo homem seja criatura de Deus por natureza, mas filho de
Deus e deus segundo a graça pelo Espírito. Pois não era possível
que o homem criado fosse capaz de ser deus e filho de Deus pela
santificação da graça, se não houvesse sido primeiramente
engendrado ao Espírito segundo a livre escolha, pelo poder da
liberdade que o abre ao Espírito” (91, 1315 D).
Assim a distinção
imagem/semelhança,
compreendida mais geralmente pelos Padres como a dupla
natureza/hypostase,
permite de crescer muito longe o sinergismo, sem pôr em causa a
prioridade divina das iniciativas de graça. Posto que tudo têm raiz
na Encarnação. A imagem só pode chegar a sua realização última
renascendo como semelhança na sinergia de uma liberdade pessoal e do
Espírito Santo. Ressuscitado pelo batismo à sua liberdade de filho
de Deus, libertado onde se libera sua trágica liberdade primária, o
homem ingressa na escatologia, aprendendo na sinergia do Espírito a
viver segundo Cristo para O revestir conscientemente. A semelhança
pode assim ser definida como a vocação pessoal do homem e a
liberdade, fecundada pelo Espírito, entra em uma sinergia livre com
o desígnio de Deus.
Decerto Deus permanece o
Inacessível, o “Secreto supraessencial”. Mas Ele Se faz
voluntariamente participável pelo amor, na graça. A palavra tem
valor de liberdade e de gratuidade: mas é em
um movimento de encontro onde Deus, tendo Ele toda a iniciativa,
coloca o homem como um “tu”, em uma verdadeira reciprocidade.
Tudo é graça significa tudo é amor – e a correspondência à
graça se faz na confiança e na humildade. É
acerca desta correspondência que eu gostaria de agora falar.
E assim Deus permanece oculto.
Mas Ele dá ao homem o desejo, por vezes falta e impulso – eros
ao ágape. É assim
que Ele torna nossa vontade ativa, mas sem uma decisão desta aqui,
Ele não pode intervir. “O homem, dizem os Padres, tem duas asas
para atingir o céu, a graça e a liberdade”. Juntas, em encontro,
na interação – jamais como duas causas se exercendo paralelamente
ou em concorrência. A tensão humana se faz no interior deste
encontro. Não em um voluntarismo, mas como um abandono
ativo.
De uma parte, as lermos os
textos clássicos da ascética ortodoxa, temos o sentimento de que o
acento é posto sobre as qualidades viris da alma,
sobre o elemento da atividade, de luta, de esforço, sobre o “combate
espiritual”. Santo Isaac o Sírio: “Tal é a vontade do Espírito:
àqueles que Ele habita, Ele não ensina a preguiça. Muito pelo
contrário, os incita a não procurar repouso, antes a se dedicar ao
trabalho e às maiores penas. Pelas provações, o Espírito os
fortifica e os faz atingir a sabedoria. Eis a vontade do Espírito:
que os seus bem amados perseverem no combate.”
Mas rapidamente, vemos que com
uma força igual é posta em relevo a
impassibilidade para o homem de se salvar ele-próprio.
É como que o avesso da mesma experiência. Heséquio de Jerusalém:
“O Espírito humano não pode ultrapassar as tentações pelas suas
próprias forças. Ele nem deve mesmo arriscar.”
Somos chamados a sermos
guerreiros de Deus, somos chamados à Verdade, à coragem – e nós
nos descobrimos fracos e impotentes. Resta então o apelo de
profundis,
a metanóia
a toda hora renovada – o quê significa muito mais do que
arrependimento, retorno de toda nossa compreensão do real. “A nós
fracos, só nos resta refugiar-nos no Nome de Jesus”. É Ele que
vem em nosso auxílio e combate por nós. “Se invocas o Nome de
Jesus, eles (os demônios) não poderão um só instante te
resistirem, nem empreender o que quer que seja contra ti”
(Heséquio). “Em nenhum outro está a salvação para nós, a não
ser em Jesus Cristo. Foi Ele Mesmo que o disse” (Filoteu do Sinai).
Nós somos fracos, mas
nos abandonando a Ele, tornamo-nos fortes.
Participamos à força de Sua humanidade crucificada e glorificada. A
solução do dilema se chama, na oração, confiança
e humildade.
Jesus, escrevia Nicolau
Cabasilas, “tem por comensal o assassino e por confidente o
traidor,... Ele Se deixa beijar por ele...Pregado no madeiro, está
tão longe de retirar Seu amor aos Seus carrascos que Ele ora a Seu
Pai de não os tomar em rigor...” Nesta perspectiva, precisa
Cabasilas, “o
concurso mínimo do homem é o responder livremente por uma humilde
confiança”. “Para
todo bem que Ele nos faz, Deus só pede em retorno o nosso amor; em
troca de nosso amor, Ele nos quita de toda dívida”. Somente fazer
atenção à imensidão da salvação. Mesmo não tentar de amar a
Deus, mas pressentir como Ele nos ama. “Sejamos plenos de confiança
diante do pensamento de que Deus é bom para com os ingratos e
pecadores...” Onde Cabasilas só faz glosar a parábola do banquete
das bodas, em Mateus e em Lucas. Os convidados de qualidade fogem, e
o rei, ou o mestre da casa, faz convidar aqueles que vagam pelos
caminhos e ao longo das clausuras, “tanto
os maus como os bons”
precisa Mateus. Somente um único é lançado para fora, aquele que
não pôs suas vestes das bodas. Eis o quê nos é pedido: de
vestir nosso coração com uma veste de bodas,
o hábito da gratidão e da alegria, da imensa alegria desmerecida.
Eis porque oramos, no ofício da meia-noite, na vigília, na aurora,
a vigilância que Cristo ilumine as nossas almas, posto que não
temos vestes das bodas e somente Ele pode nos esclarecer com Sua luz.
Donde a importância fundamental
da humildade.
Não é uma “virtude” que se junta às demais, antes a atitude
inata da alma diante de Deus. E a Igreja Ortodoxa não cessa de
ensinar. Os Padres ascetas lembram que as árvores, quando trazem
muitos frutos, se inclinam face à terra. Os grandes textos
penitenciais (durante a Quaresma, notoriamente) nos fazem explorar de
uma maneira quase-dostoievskiana os abismos da alma humana, como se
revestíssemos, diz Paul Evdokimov, “uma espécie de escafandro
ascético para descer e explorar os abismos da humanidade”, na
certeza de que cada homem traz nele a humanidade inteira. Mais o
homem se santifica, mais ele se aproxima de Deus, e mais ele se vê
pecador, quer dizer separado, deslocado, entregue à derrota
espiritual (tal como o que atira o arco e perde seu alvo). Abraão
exclama: “Eu não passo de terra e pó”. Isaac: “Eu sou um
reprovado, um impuro”. Santo Antônio o Grande é enviado por
Cristo, como a um modelo, a um sapateiro de Alexandria que, vendo
circular todos os passantes da grande vila, orava “Que todos sejam
salvos. Somente eu mereço estar perdido...” – e por lá mesmo se
lançava aos pés de Cristo presente nas trevas mais opacas. Jesus
diz ao Starets Siluan: “Guarda o teu espírito no inferno e não
desespere...” Aba Sisoi, sobre seu leito de morte, solicitado pelos
monges do deserto circunvizinhos, lhes diz: rhéma,
uma palavra de vida, se contenta em murmurar: “O quê poderei vos
dizer? Eu nem ainda comecei a fazer penitência.”
O homem recebe assim a “memória
da morte”. No
sentido forte da palavra “memória”:
a anamnése, o memorial, como dizemos para a eucaristia. E no sentido
forte, quase-lacaniano, da palavra morte, com um maiúsculo: não a
morte biológica, mas antes a Morte como separação, derrisão,
nihilismo – tudo o quê é tão posto em valor em nossa época, o
“teatro do absurdo”. Mas “a memória da morte” não leva ao
nada: ela descobre, no fundo do inferno, ela
descobre o Cristo que a partir de então Se interpõe entre o nada e
nós. A “memória da
morte” torna-se “memória
de Deus” ou mais
precisamente, memória da ressurreição.
Todo o nosso esforço, então, é
o de deixar subir em nós a vida de Cristo – “não sou mais eu
que vivo, é Cristo que vive em mim” – tirando os obstáculos –
arrancando as peles mortas: e o destino se encarrega, ele nos obriga
a nos rasparmos contra a terra rugosa tal como uma velha serpente,
para nos descamarmos! Abandono ativo, para deixar aumentar em nós a
seiva do Cepo, a seiva Daquele com o Qual somos “uma única
planta”, diz São Paulo. Quanto mais a metanóia
se aprofunda em nós, mais aumenta em nós a força da humanidade de
Cristo, toda vibrante do Sopro vivificante, toda penetrada pela luz
do Espírito.
Assim, morremos com o Cristo para
deixar Sua vida ressuscitada investir de dentro de nossa humanidade –
para que Ele nos ressuscite pelo Seu Sopro. Quando nos unimos ao
Cristo no desnudamento, na pobreza, na morte, nós não O vemos,
portanto Ele está lá, no próprio deserto da ausência, no puro
deserto da fé.
As obras então não são ações
morais, mas antes as “obras
da fé”, o
agir humano dentro do agir divino, a energia humana despertada pela
energia divina da qual ela é o reflexo, a união das duas se fazendo
em Cristo. “Deus faz
tudo em nós, escreve Máximo o Confessor: a virtude e o
conhecimento, a sabedoria e a bondade e a verdade, sem que tragamos
absolutamente nada além da adesão de nossa liberdade...” (Ad
thal., q.54, PG 90, 512 B). A força do Cristo, que é a própria
graça do Espírito, e que transforma em nós a imagem em semelhança,
exige, para nós ser misteriosamente “apropriada” no mais pessoal
de nossa pessoa uma lenta “desapropriação”
de nossa condição por vezes endurecida – o “coração de pedra”
– e desintegrada – “meu nome é legião”.
Eis porque Marcos o Monge e
Máximo o Confessor puderam dizer: “Cristo
é a essência das virtudes”.
É no Espírito que o homem
torna-se autenticamente criador
– eu gostaria de retomar aqui algumas intuições de Nicolas
Berdiaev. De nada, diz ele, o Deus vivente criou de novo, Sua
liberdade deixa surgir uma outra liberdade chamada a colaborar com a
Sua. Deus que Se dá em Cristo e nos dá o Espírito, espera do homem
a resposta de um amor por vezes livre e criador. O realizar da
história e do universo só pode ser, em Cristo, divino-humano.
Decerto, o homem, por criar, tem necessidade da matéria cósmica e
social, ele não pode suscitar pessoas, somente servi-las. Portanto o
homem é a imagem dinâmica do Criador, “poeta do céu e da terra”:
como pessoa única, insubstituível, jamais vista, Ele ultrapassa
tudo condicionadamente para suscitar uma novidade
absoluta: que é a
expressão de sua existência pessoal – expressão comunitária,
transfigurante, através dos seres e das coisas. Uma certa
“genialidade” no Espírito Santo pertence então a todo homem
enquanto pessoa: “O amor do homem pela mulher, da mãe pelo seu
filho,... a intuição dos seres, o sofrimento diante do enigma da
vida, a busca da verdade revelam a genialidade” (Destinação
do homem, p. 172). A
escolha que fizemos e fazemos sem cessar da exterioridade e da
separação, petrificou nosso poder criador na opacidade, o
determinismo, os encadeamentos evolutivos do mundo “objetivado”.
Mas a vitória de Cristo sobre a separação e sobre a morte permite
ao homem reencontrar no Espírito sua vocação, que é a de se
santificar santificando o universo. Deus,
em Cristo, no Espírito, Se revela o espaço infinito de minha
liberdade criadora.
Toda criação a partir de então é um milagre
escatológico que se
abre sobre a transfiguração do mundo na luz do Oitavo Dia, do Dia
sem Declínio. Nela revive o paraíso perdido e se inauguram o novo
céu e a nova terra.
Berdiaev amava em Scriabine o
músico visionário que sonhava em compor um “mistério” (no
senso medieval) cujos últimos acordes seriam tão reais que o velho
mundo se reuniria no Reino. Loucura? Mas, para Berdiaev – e esta
será a última palavra desta rápida reflexão sobre a sinergia –
o ato criador mais humilde, na secreta luz do Espírito – um
sorriso, um olhar de compaixão e de ternura – já é um milagre
onde a morte é abolida, onde começa a verdadeira e viva eternidade.
Comentários
Postar um comentário