Sobre a liberdade espiritual
SAKHAROV Ancião Sofrônio
tradução de monja Rebeca (Pereira)
“Estai pois
firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a
meter-vos debaixo do jugo da servidão.” Ga. 5, 1
Por começar nossa
vida em um corpo “modelado com o pó da terra” (Gn. 2,7), fazemos
a experiência de nossa dependência com respeito às forças
naturais e, em geral, às energias cósmicas as quais estão ligados
a necessidade e o determinismo. É somente por Cristo que nós
podemos conhecer o Reino da liberdade do Espírito divino (ver II
Cor. 3, 17). E, em seguida, também o espírito humano (ver Jo. 8,
31-32). Criado misteriosamente por Deus como imagem do Espírito do
Senhor, o espírito humano é de alguma maneira engendrado na
materialidade de nosso corpo, mas, pela sua natureza, ele transcende
a matéria cósmica. Graças ao seu encontro com Cristo, ele se
desenvolve em sua consciência hypostática até uma maturidade tal
que deixa de depender das leis naturais da terra e começa a perceber
efetivamente o sôpro da eternidade divina.
A liberdade do
homem que crê na divindade de Jesus Cristo e que permanece na esfera
de sua palavra, pertence a um outro plano, a outras dimensões: ela
não é em nada determinada pelo exterior. Quando um tal homem se
aproxima da “medida da estatura perfeita do Cristo” (Ef. 4, 13),
o Criador não Se comporta para com ele – ainda que seja uma de
Suas criaturas – como com sua “energia”, mas como com um fato
definido,
mesmo para Ele: Deus não lhe impõe nada por obrigação, nem mesmo
o amar-Lhe como a seu Pai. Ele Se revela ao homem tal como Ele é,
deixando-o livre para reagir como ele quer. Dessa maneira, a Igreja
rejeita todo determinismo divino, “origenista”; segundo Orígenes,
em efeito, Deus saberá – em Sua bondade – encontrar os meios de
salvar todos os homens e todas as coisas, sem no entanto violar o
princípio da liberdade.
Esta liberdade,
cuja experiência de o fazer é dada ao cristão, provém do
princípio pessoal no homem. Estes dois
elementos
– a pessoa e a liberdade – estão indissoluvelmente ligados: lá
onde não existe liberdade não existe pessoa. E vice-versa: lá onde
não há pessoa, não existe também liberdade. Este modo de ser
eterno é próprio unicamente à pessoa e de maneira alguma ao
indivíduo (cf.
I Cor. 15, 47-50).
Deus nos criou “à
Sua imagem” para uma vida “à Sua semelhança”, o que quer
dizer para a nossa total deificação, a fim de que a vida divina nos
seja comunicada em toda a sua plenitude. As relações entre Deus e o
homem estão fundadas sobre os princípios da liberdade: em nossas
últimas determinações de nós próprios em relação a Deus, somos
pessoas autônomas. Quando, em nossa liberdade, nos inclinamos ao
pecado, rompemos o laço de amor que nos une a Deus e nos afastamos
d’Ele. Esta possibilidade de uma auto-determinação negativa em
relação ao nosso Pai celeste constitui
o aspecto trágico da liberdade. No entanto, esta fatídica autonomia
constitui
ao mesmo tempo uma condição sine
qua non
para a progressão da pessoa criada rumo à assimilação da vida
divina.
Sim, somos livres,
mas não na medida absoluta na qual Deus é livre, pois Ele determina
Ele próprio o seu Ser em tudo. Nós, em contrapartida, tendo sido
criados “do nada”, não temos o ser em nós mesmos. Mesmo se
quiséssemos – em nossa sapiência ou loucura – não poderíamos
criar o menor ser. Diante de nós se encontra o fato
do
ser-em-si primário
de Deus, fora do qual nada de existente-por-si só existe. Somos
colocados diante de uma escolha: seja a nossa adoção filial pelo
nosso Deus e nosso Pai, seja o nosso afastamento d’Ele nas trevas
do não-ser. Não
existe via intermediária.
O cristão é
chamado a ter a audácia de crer que nós podemos ser postos em
possessão
inalienável da vida divina. Ela não nos pertence de pleno direito,
porque somos criaturas. Não dispusemos da capacidade de suscitar
esta vida em nós, mas no entanto, ela pode nos ser dada como puro
dom do amor do Pai.
Acerca do quê eu
falo neste momento? Eu tento estabelecer um certo paralelo entre a
nossa vida de todos os dias e o que se passa quando o Senhor vem
habitar em nós. O homem nasce como uma criança, cega, frágil. Suas
armas – em sua luta pela existência – são os prantos, pelos
quais ele exprime seu descontentamento ou uma dor, qualquer que seja
a causa. Seus pais – sua mãe, antes de tudo, por amor pelo fruto
do seu seio- se apressa em lhe vir ao auxílio. No início de sua
vida, o bebê se agarra à sua mãe: ele lhe aperta o pescoço com
seus braços; ele faz pressão contra o seu rosto, seu ombro, seu
peito, contra suas pernas assim quando ele começa e pôr-se de pé,
e assim por diante. Ele aprende gradualmente a distinguir os objetos,
a pronunciar algumas palavras. Começa a assimilar certas ideias,
torna-se mais forte, capaz de permanecer de pé, de andar e de
correr. Finalmente, atinge sua maturidade física, moral e
intelectual. Ele pode ele-mesmo tornar-se pai ou mãe. Ingressa em
uma vida independente. Tudo o que experimentou em uma prima infância
desaparece de sua memória. Ele sabe quem é seu pai e sua mãe, mas
no entanto não tem mais um sentimento de dependência em relação a
eles. Ele vive como se não tivesse (pro) vindo de ninguém. Ele é
livre em seus movimentos e suas decisões. Ele se vê como uma certa
totalidade, uma individualidade
integral. Em breve, “eu existo”. Eu não sei de que maneira isto
aconteceu, mas é um fato, plenamente convincente para mim mesmo.
Somente a minha razão sabe que a vida de meus pais me fora
comunicada, que ela correu em minhas veias, que ela tornou-se minha e
encontrou a sua vida.
O mesmo acontece
conosco e Deus: “Porque, como o Pai tem a vida em Si mesmo, assim
deu também ao Filho ter a vida em Si mesmo” (Jo. 5, 26). “Assim
como o Pai que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, assim quem de Mim
se alimenta, também viverá por Mim” (Jo. 6, 57). “Eu vivo, e
vós vivereis” (Jo. 14, 19). Quando esta vida original nos é
comunicada ontologicamente nós a ressentimos como nossa própria
vida. Sabemos, a partir de nossa experiência anterior que esta vida
nos fora dada por Deus. Ela não é nossa em sua essência; mas
antes, dada em possessão inegável àqueles que são salvos, ela
torna-se verdadeiramente nossa
vida.
Podemos evocar, em seu respeito as palavras do Apóstolo Paulo: “E
vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Ga. 2, 20). Eu o
repito novamente: sei que é Ele que vive em mim. E, como a Sua vida
tornou-se o mais profundo núcleo de todo o meu ser, eu posso falar
dela como de minha
vida: o Senhor vive e, eu também, eu vivo.
“Aquele que tem
os Meus Mandamentos e os guarda, esse é o que Me ama; e aquele que
Me ama será amado de Meu Pai, e Eu o amarei e Me manifestarei a ele.
(...) e viremos para ele, e faremos nele morada.” (Jo. 14, 21-23).
Eles a farão – com certeza – não por um espaço de tempo, antes
para a eternidade.
Nossa entrada em
possessão
desta vida imortal é condicionada pela observação dos Mandamentos
do Senhor: “Se vós permanecerdes na Minha palavra, verdadeiramente
sereis Meus discípulos; e conhecereis a Verdade, e a Verdade vos
libertará” (Jo. 8, 31-32).
A semelhança de
nossa natureza com Deus engendra espontaneamente em nós uma sêde de
conhecer a Verdade, de tender à perfeição divina. Esta perfeição
não está em nós-próprios, antes no Pai, fonte de tudo o quê
existe. Segui-Lo em tudo não significa de maneira alguma submeter-se
à obrigações
de um poder que nos seria exterior; é o nosso amor que nos atira a
Ele, e nós desejamos
sem cessar à Sua perfeição. Cristo nos deu este Mandamento: “Sede
vós pois perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no céu”
(Mt. 5, 48).
A santa vontade do
Pai, eternamente presente n’Ele não nos é estrangeira, à nós
que somos Sua “imagem”. Ela é aparentada ao nosso espírito,
ainda que ultrapasse nossa natureza criada, a transcendência do Pai
explica porque devemos lutar para assimilá-la completamente. É de
maneira livre que vamos a diante deste esforço ascético, por vezes
provador e inspirador. Pela oração, a força do Altíssimo desce
sobre nós. Não são os nossos vãos esforços, mas antes o Espírito
Santo que realiza em nós o que buscamos e esperamos. Estamos na dor
e na aflição, porque não contemos a plenitude divina em nós
próprios. Nós temos dificuldades e sofremos, mas ao mesmo tempo
somos repletos de júbilo neste sofrimento; em nosso amor veneramos
Deus e O adoramos. Nossa oração não é – em sua mais pura forma
– nada mais é do que a exultação de nosso espírito diante
d’Ele.
“Senhor, ensina-nos a orar (...).
Ele lhes disse: Quando orardes, dizei: Pai nosso” (Lc. 11, 1-2).
“Portanto, vós orareis assim:
Pai
Nosso que estás nos Céus,
Santificado
seja o Teu Nome:
Tu deste ao meu espírito de respirar o odor de Tua santidade, e
agora a minha alma tem sêde de ser santa em Ti.
Venha
o Teu Reino:
escuta a minha oração: que a Tua vida real me cumule, eu que sou
pobre e miserável e que ela torne-se minha vida pelos séculos dos
séculos.
Seja
feita a Tua vontade, assim na Terra como no Céu,
na terra do meu ser criado...: Que eu esteja incluído, eu que sou
mortal, na grande corrente desta Luz, assim como o é em Ti-mesmo
desde o princípio.
O
pão
nosso essencial
dá-nos hoje:
antes de tudo e depois de tudo, “o verdadeiro pão que desce do céu
e dá a vida ao mundo” (Jo. 6, 32-33).
E
perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos
devedores:
eu
Te imploro, envia sobre mim, imerso que estou na corrupção, a graça
do Teu Espírito Santo: que Ele me dê a força de perdoar tudo a
todos, a fim de que obstáculo algum em mim permaneça e me impeça
de receber de Ti o perdão dos meus inúmeros pecados.
E
não nos deixes
cair em
tentação:
Ó Tu que sondas os corações, Tu conheces a minha perversidade e
minha inclinação ao pecado, eu te suplico: envia o Teu Anjo com uma
espada inflamada para que Ele fecha a passagem conduzindo à queda
(vede Nm. 22, 22s.)
Mas
livra-nos do maligno:
Pai Santo, Que
tudo domina, Onipotente
e bom, livra-me da influência do nosso Inimigo, Teu adversário.
Lutar só contra ele é para lá das minhas forças.A nossa oração é – em um primeiro
tempo – uma oração de demanda por nós próprios. Mas quando o
Espírito Santo acresce o nosso conhecimento e expande o campo de
nossa consciência, ela toma dimensões cósmicas. Ao invocar o “Pai
Nosso”, pela palavra “nosso”, nós pensamos em toda humanidade,
e imploramos a graça sobre todos os homens com o mesmo fervor para
nós próprios.
“Que o Teu Nome
seja santificado” entre os povos. “Que o Teu Reino venha” na
alma de todos os homens, de tal sorte que a Luz da vida que jorra de
Ti torne-se a vida do nosso mundo inteiro. “Que a Tua vontade seja
feita”, a única que seja santa e capaz de unir todos os homens em
seu amor por Ti sobre a terra em que habitamos, assim com ela, reinam
no céu os Santos. “Livra-nos do maligno”
– do “homicida” (Jo. 8, 44) que semeia em toda parte o joio da
raiva e da morte (vede Mt. 13, 27-28).
Segundo a
concepção cristã, o mal – assim como o bem, aliás – só se
encontra lá onde existe uma forma pessoal do ser. Fora deste modo de
vida, não existe – claramente falando – mal, mas somente
processos submetidos a um determinismo natural.
O problema do mal
no mundo, em geral, e na humanidade em particular, está ligado à
questão da participação de Deus no destino histórico dos povos.
Muitos numerosos homens perderam a fé em Deus, porque lhes parece
que se Deus existisse não saberia ter um tal desencadeamento do mal,
uma tal quantidade de sofrimentos não justificados no mundo e uma
tal ausência de ordem e de sentido. Esquecem eles ou talvez jamais,
verdadeiramente souberam que o Criador respeita a liberdade do homem,
liberdade que é o princípio fundamental na criação de seres “à
imagem de Deus”. Para Deus, intervir à cada vez que a vontade dos
homens os conduz às vias do mal, equivaleria a privá-los da
possibilidade de auto-determinação deles. O resultado final seria o
de tudo reduzir às leis cósmicas impessoais.
Deus, seguramente, salva os
indivíduos isolados que sofrem, bem como povos inteiros, se eles
dirigem seus passos segundo as suas vias e clamam a Ele, implorando o
Seu socorro.
Nem todos têm a
mesma inteligência da palavra salvação.
Para os cristãos que levam um combate sem pena nem rodeios contra o
pecado, a salvação consiste no fato de que Deus, Ele-Próprio, Se
dá ao homem, na imensidão de Sua eternidade. Toda a vida de um
asceta pode ser acompanhada de males visíveis, mas ele –
interiormente – permanece diante do Invisível (ver II Tm. 4, 7;
Fp. 1, 29; At. 9, 16; I Cor. 15, 30; II Cor. 6, 4). Toda tentativa de
descrever seu estado interior será vã: ele se entrega à vontade de
Deus e, neste rebaixamento voluntário, realiza a sua semelhança a
Cristo (Lc. 22, 42). Este ato é em sua essência uma livre
manifestação do amor kenótico,
o qual torna o homem semelhante a Deus: “a hora chegou; eis que o
Filho do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores” (Mc. 14,
21). Não existe amor maior do que este: nós nos abandonamos nas
mãos santas de nosso Criador e, por este meio, franqueamos a
plenitude da vida divina.
A oração é mais
preciosa do que não importa qual outra atividade, que ela seja no
domínio social ou político, ou ainda na esfera da ciência e das
artes. Para aquele que sabe isto por experiência, é-lhe fácil
sacrificar o seu bem-estar material a fim de encontrar o lazer
de falar com Deus. É um privilégio ímpar
ter a possibilidade de parar o seu intelecto acerca do que não se
passa, acerca do que é mais alto e vai mais longe do que todas as
realizações mais remarcáveis da ciência, da filosofia ou do
serviço social. No princípio, a luta pela liberdade espiritual pode
parecer excessivamente penível e arriscada; mas todas as
dificuldades se assentam quando a oração toma totalmente a alma.
A oração de um profundo
arrependimento pode conduzir o homem ao estado em que ele faz a
experiência da liberdade no Espírito de Verdade: “E a Verdade vos
libertará” (Jo. 8, 32). Esta santa liberdade é infelizmente
desconhecida pela maioria dos homens. O primeiro sinal da liberação
é a ausência do desejo de dominar o que quer que seja. O degrau
seguinte consiste em se emancipar interiormente do poder dos outros
sobre si; isto não por desprezo para com as autoridades
estabelecidas por Deus para administrar a vida exterior dos povos,
mas em virtude do temor de Deus que não nos permite de transgredir o
Mandamento do amor ao próximo.
O Deus
sem-princípio revelou-Se a nós em Sua incompreensível humildade.
Criador de tudo o que existe, Ele não Se impõe a nós. Verdade é
também que ninguém tem domínio sobre Ele. Ao homem, enquanto
imagem deste Deus humilde e livre, seria normal de nos esforçarmos
em Lhe assemelhar em Seu modo de ser: nos abstendo de dominar sobre
os outros e sermos nós-próprios constantes “na liberdade com que
Cristo nos libertou” (cf.Ga. 5, 1; I Cor. 15, 23-28).
Ao vir à alma do
homem que ora, a Luz divina a libera do jugo das paixões e a
introduz na radiosa esfera da liberdade divina, plena de amor,
excluindo toda tendência
ao despotismo – o que é inverso ao amor. Lá onde não há
liberdade nem amor, tudo está privado de sentido. Carismas privados
de amor, nem mesmo aqueles como o dom da profecia, o conhecimento
de todos os mistérios e o poder de operar milagres, perdem o seu
valor (cf. I Cor. 13, 1-3).
Grande e
maravilhoso é o mundo da santa liberdade. Fora dela, a salvação
como deificação do homem é impossível. É vital que o homem se
determine ele-próprio livremente à eternidade. Toda criação
aspira a ser liberada da servidão, do jugo da corrupção afim de
entrar na liberdade dos filhos de Deus (cf. Rom. 8, 21-23).
Em nossos dias,
combates se desenrolam em todos os lugares pela liberdade e a
independência. Mas, todavia, com dificuldade encontramos um homem ao
qual o mistério da divina liberdade dos filhos do Pai celeste tenha
sido revelado. As palavras são sem poder para descrever
a excelência deste estado: nós só o conhecemos por um dom vindo do
Alto. Mais uma vez, não posso deixar de me recordar do Apóstolo
Paulo, que sem a mínima dúvida, conhecia esta liberdade divinamente
real: “Porque a ardente expectação da criatura espera a
manifestação dos filhos de Deus, porque a criação ficou sujeita à
vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou”
(Rom. 8, 19-20).
“Estai pois
firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a
meter-vos debaixo do jugo da servidão” (Ga. 5, 1). É fácil
compreender: a paixão de dominar o nosso irmão tem por consequência
imediata a perda da nossa independência. E ainda mais, o que é
terrível, é que o Deus de amor Se afasta de nós, a graça do
Espírito Santo nos abandona. Nas profundezas da alma daquele que
subjuga se prepara uma queda no vazio do não-ser (do nada). A
semelhança ao Senhor dos senhores exclui a escravidão, na qual não
existe vida eterna, nem mesmo temporal. A dominação se estabelece
habitualmente pela violência e por massacres. No Julgamento final,
aqueles que não fizeram prova de misericórdia serão julgados
segundo o princípio: “Porque com o juízo com que julgardes sereis
julgados”, e ainda “Porque o juízo será sem misericórdia sobre
aquele que não fez misericórdia” (Mt. 7, 2; Tg. 2, 13).
“Onde está o
Espírito do Senhor ai há liberdade” (II Cor. 3, 17). Em sua forma
absoluta, a liberdade é própria a Deus somente. A benção de
conhecê-la em partes é todavia dada ao homem, na oração unida à
uma vida segundo os Mandamentos. Dom inestimável do céu, a oração
exige “lazer”. Para poder encontrar o Cristo vivente, não é tão
custoso renunciar aos prazeres que atiram o homem, e preferir toda
conversa(ção) com Ele. Este privilégio ímpar
– eu diria mesmo, com audácia, esta felicidade – me foi
concedido, sobretudo no deserto. O conceito ascético de “deserto”
não é geográfico, mas antes designa um modo de vida: um
afastamento dentre os homens tal que, de uma parte, ninguém nos vê
ou nos ouve; de outra parte, não estamos submetidos a nenhum poder
humano e não dominamos ninguém.
Esta liberdade nos
é indispensável se queremos mergulhar totalmente com nosso espírito
– e ainda mais: de todo o nosso ser – na esfera divina. Então, a
impassibilidade divina – que é mais preciosa do que todos os
valores da terra – pode nos ser comunicada. Tal
homem não terá pensamento algum de dominação sobre o seu irmão;
ele não busca nem honra, nem glória, nem – com mais forte razão
– riquezas materiais. Oh! Uma definição positiva da verdadeira
liberdade não se deixa formular por palavras. Eu não compreendo
porque a benção de viver na liberdade dos “filhos de Deus”
(Rom. 8, 21) desceu sobre mim no deserto. Eu não posso afirmar ter
recebido este dom até os níveis mais elevados, o que quer dizer
quando o homem verdadeiramente triunfou do poder que o pecado e a
morte exercem sobre ele. Todavia, encontrei-me, em dados momentos,
num limite em que compreendia que a plena liberação vem quando a
morte é vencida. Aquele que não teme a morte se encontra no caminho
que conduz à liberdade. O homem é mantido em escravidão quando
nele prevalece uma ligação ao que é terrestre. “Eis-me aqui a
mim, e os filhos que Deus me deu. Visto como os filhos participam da
carne e do sangue, também Ele participou das mesmas coisas; para que
pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o
Diabo; e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a
vida sujeitos à servidão” (Hb. 2, 13-15).
Eu só fiz, em
partes, a experiência da entusiástica
liberdade espiritual. Dela estou privado desde a época em que
tornei-me Pai espiritual
e Confessor, porque estou ligado pelo amor àqueles que o Senhor
conduz a mim. Não é raro que o amor me sujeite àqueles que sirvo,
que têm necessidade de mim em suas buscas de Deus. Todavia, alguns
traços da experiência que vivi subsistem ainda em alguma parte no
profundo de minha alma. Esta experiência me foi dada em França pela
primeira vez – em uma forma ainda um tanto vaga – quando senti
uma imperiosa necessidade de me afastar do mundo. Eu rendi ações de
graças à Providência do Senhor, vendo-me livre para fazer este
passo, pois não havia ninguém no mundo inteiro cuja vida dependesse
de mim. Na minha sêde de Deus, eu podia tomar não importa qual
riso; eu não estava ligado a nada, estava pronto a fazer face à
todas as dificuldades. Esta foi a experiência inicial da liberdade
de Seu amor, Cristo entregou-Se à morte; e por este meio, Ele nos
abriu a via ao conhecimento supremo, à imortalidade divina.
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