A história de Bartimeu
BLOOM Metropolita Anthony de Sourozh
tradução de monja Rebeca (Pereira)
Eles vêm a Jerico. E enquanto Ele saía de
Jerico , assim como seus discípulos e uma multidão considerável, o filho de
Timeu, Bartimeu , um mendigo cego, estava sentado à beira do caminho. E, ao
saber que era Jesus de Nazaré, ele se pôs a gritar e a dizer: “Jesus, Filho de
David, tem piedade de mim!” E, parando, Jesus disse: “Chame-o”. E chamaram o
cego, dizendo-lhe: “Coragem! De pé! Ele te chama!” Este, deixando o seu manto,
veio de um salto ao encontro de Jesus. E, dirigindo-se a Ele, Jesus disse: “Para
ti, que queres que eu faça?” O cego lhe diz: “Rabi, que eu recobre a visão”. E
Jesus lhe disse: “Vá, a tua fé te salvou!” E ele logo recuperou a visão e O
seguiu no caminho. (Marcos 10,46-52)
Creio que uma das razões que nos impedem de
sermos realmente nós mesmos e de encontrar nosso caminho é que não percebemos
até que ponto somos cegos. Se ao menos soubéssemos que somos cegos, com que
pressa não buscaríamos a cura! Nós a pediríamos, provavelmente como Bartimeu o
fez, aos homens, aos doutores, aos padres, aos curandeiros. Então, tendo
perdido toda esperança “nos príncipes, nos filhos dos homens, em quem não há
salvação”, talvez nos dirigíssemos a Deus. Mas o que é trágico é que não temos
consciência de nossa cegueira. Coisas demais desfilam diante de nossos olhos
para que suspeitemos da existência deste mundo invisível para o qual somos
cegos. Nós vivemos em meio a um mundo de objetos diversos que reclamam a nossa
atenção, que se impõem a ela. Não temos necessidade de afirmar sua existência:
eles estão lá. As coisas invisíveis, ao contrário, não forçam a nossa atenção.
Temos que procurá-las, descobri-las. O mundo exterior se impõem à nossa
atenção; Deus nos implora timidamente.
Recordo-me de um velho monge que me dizia: “O
Espírito Santo é como um grande pássaro assustado que pousou um pouco longe.
Quando você o vir aproximar-se, não se mexa, não o assuste, deixe-o vir até
você”. Pensamos na descida do Espírito Santo sob a forma de pomba. A imagem de
um pássaro que desce, ao mesmo tempo temeroso e pronto a se entregar, esta imagem é escritural e plena
de significado. No entanto, ouvi uma voz em japonês me dizer: “Na religião cristã , me parece que
compreendo o que diz respeito ao Pai e ao Filho; mas não consigo descobrir o
que pode significar o honorável passarinho”.
E como estamos no mundo dos símbolos da
timidez, imagens de um coração que concede seu favor mas não se prostitui
jamais, invoquemos esta passagem do Pequeno Príncipe na qual a raposa diz a seu
interlocutor como ele deve fazer para cativá-la: ele deve ser muito paciente
sentar-se um pouco distante e olhá-la com um canto do olho sem nada dizer, pois
a linguagem é fonte de mal-entendidos. A cada dia ele se sentará um pouco mais
perto. É assim que eles se tornarão amigos. Escreva “Deus” no lugar de “raposa”
e notarão uma casta e amorosa modéstia, uma reserva que se oferece mas não se
prostitui. Deus não aceitará as relações fáceis e cavalheirescas; também não
impõe a Sua presença: Ele a oferece; mas para recebê-la deve-se estar em uníssono e se fazer um
coração modesto e amoroso: procura mútua cheia de modéstia e de reserva,
animada por um sentimento de profundo respeito, porque cada um reconhece
intuitivamente a santidade, a extraordinária beleza do amor partilhado.
O mundo externo se impõe por si só. O mundo
inteiro pode ser percebido, ele jamais força a atenção. Assim, devemos
progredir lentamente, com precaução. Devemos espiar o mundo inteiro do modo que
um homem deseja observar os hábitos dos pássaros. Ele se coloca num bosque ou
num campo que parece silencioso mas que é, na verdade, vibrante de vida. Ele
não se mexe, ele presta atenção no que pode vir. Essa atitude que nos permite
ver o que, de outro modo, nos escapa, poderíamos descrevê-la com as palavras
desta velha canção infantil.
UMA VELHA CORUJA VIVIA EM SEU CARVALHO
QUANTO MAIS ELA OBSERVAVA, MENOS ELA FALAVA
QUANTO MENOS ELA FALAVA, MAIS ELA OUVIA
E SE NÓS SEGUÍSSEMOS O EXEMPLO?
Cegos pela multiplicidade das coisas,
esquecemos que elas não estão à medida da profundidade da qual o homem é capaz.
O homem, é ao mesmo tempo, pequeno e grande. Num universo em perpétua expansão
- incomensuravelmente grande e infinitamente pequeno - nós somos como um grão
de areia, efêmero, frágil, uma quantidade negligenciável. Mas, quando nos
voltamos para o interior, descobrimos que não há nada nesta imensidão que nos
preencha até a borda: é o mundo criado que cai, qual grão de areia, no abismo
do nosso ser. Pois somos demasiado vastos para sermos preenchidos por ele:
Deus, que nos fez para ele, à sua medida, é o único que pode nos preencher.
Segundo as palavras de Angelus Silesins:
EU SOU TÃO GRANDE QUANTO DEUS;
ELE É TÃO PEQUENO QUANTO EU.
O mundo sensível possui a opacidade, a
densidade, o peso, o volume: ele não tem profundidade. Sempre podemos ir ao
fundo das coisas; mas quando chegamos ao seu ponto mais profundo, não podemos
ir adiante: não existe nisso uma abertura ao infinito. O centro de uma esfera,
por exemplo, é o seu ponto mais interior; mas, ao querer ultrapassá-lo,
chegamos à superfície ou aos antípodas.
Quando, ao contrário, a Escritura fala da
profundidade do coração humano, não se trata de uma profundidade passível de
ser medida. A imensidão é sua própria natureza; ela ultrapassa todos valores
mensuráveis. é uma profundidade que se enraíza na imensidão de Deus. Nós somos
cegos, e nossa cegueira vem do fato de que o visível nos impede de perceber o
invisível. Mas nós só começaremos a tomar consciência disso, quando tivermos
percebido a diferença que existe entre uma presença que se afirma e outra que
devemos procurar, porque ele se encontra em nossos corações; a diferença, em
outros termos, entre a pesada e opaca densidade do mundo que nos cerca e a
profundidade humana que só Deus pode preencher. Eu iria mais longe e falaria de
bom grado da profundidade de todas as coisas criadas, pois sua vocação é se
tornar o lugar da presença divina, o dia em que, tudo se tendo cumprido, Deus
estará em todas as coisas.
Estar cego ao invisível, só ter consciência das
realidades tangíveis, é ficar de fora da plenitude da consciência, estranho à
experiência desta realidade total que é o mundo em Deus e Deus no coração do
mundo. Disso, o cego Bartimeu estava dolorosamente consciente pois o mundo físico escapava-lhe.
Era com verdadeiro sofrimento de desespero que clamava ao Senhor. Apartado de
tudo por sua cegueira, sentia passar com a salvação a esperança. Se muito
freqüentemente não sabemos implorar a Deus desta maneira é porque não nos damos
conta de a que ponto estamos aprisionados em uma cegueira que nos impede de ter
do mundo uma visão total, visão esta que daria sua plena realidade ao próprio
mundo visível. Se tão somente soubéssemos como nos tornar cegos às coisas
visíveis a fim de descobrir para além delas em profundidade, aquilo que é
invisível em nós e a nossa volta, penetrando com sua presença todas as coisas!
Há muitos tipos de cegueira. Há uma encontrada
somente nos Santos que resulta de uma luz por demais viva. Falando da
obscuridade divina, Simeão, o novo Teólogo diz que ela é um excesso de luz, uma
luz tão ofuscante que aquele que a vê
uma vez permanece cego. Existe também um outro gênero de cegueira que
persiste mesmo com os olhos bem abertos. Referindo-se a um herói de Tolstoi,
Pierre Besoukhof, o teólogo russo Sérgio Troistky diz que ele contemplava os
grandes e belos olhos de Helena e não via aí senão a si próprio: um homem sem
defeitos - assim como ela - coitada! - o via. Olhava seus olhos e não via senão
a si próprio; quanto a ela, escapava-lhe completamente!
É exatamente isto que fazemos em relação ao
mundo sensível. Quando levamos nosso olhar até uma janela podemos, à vontade,
ver aí nossa própria imagem refletida, ou o vidro, ou o que se encontra por
trás dele. Nossos olhos podem ser os da indiferença, os mesmos com que os
passantes olhavam o cego Bartimeu. Podem ser também os olhos do guloso de
Dickens que ao ver o gado pastando não pensava senão “Viva a carne de boi!” Ou
ainda serão os olhos do ódio, quando adquirimos aquela horrível perspicácia do
diabo, quando não vemos senão o mal fazendo das coisas uma odiosa caricatura.
Podemos, enfim, ver com os olhos do amor com aquela pureza de coração que
permite ver a Deus e sua imagem nas pessoas, mesmo lá onde esta imagem está
obscurecida, pois que penetra, para além das aparências e das evidências
contrárias, até o centro o mais verdadeiro, ainda que mais secreto, da alma. É
isto que dizia a raposa ao pequeno príncipe: “Não se vê bem senão com o
coração. O essencial é invisível aos olhos”.
Reconheçamos, portanto, que não somos
conscientes da profundidade das coisas, da imensidão, da vocação de eternidade
do universo e que não podemos nos dar conta disso enquanto, por um tipo de
experiências primordial não tenhamos adquirido a certeza de que o mundo
interior existe; e é pela fé que podemos ter a certeza de que o invisível é
real que está presente e que é digno de ser procurado para além do visível,
mesmo que através dele e em seu centro. Este ato de fé requer de nossa parte
que aceitemos o testemunho daqueles para quem o mundo invisível tornou-se
presente. É preciso que o aceitemos ao menos como uma hipótese de trabalho;
hipótese provisória, talvez, mas que nos permitirá avançar em nossas pesquisas.
Sem isto, nada é possível. Não podemos nos por em busca do invisível se, a
priori, estamos certos de que ele não existe. E quando falo de testemunho,
trata-se daquele que é prestado não por uma ou duas pessoas somente, mas por
milhões de pessoas, cristãos e não cristãos, e que no correr do tempo
experimentaram o invisível e atestaram sua presença.
Parece-me chegado o momento de alargar nosso
horizonte, nossa compreensão da vida em geral. Creio que ainda hoje vivemos na
ilusão que consiste em julgar duvidoso tudo aquilo que não é racional. No
entanto, a psicologia mostrou que existe todo mundo irracional cuja influência
é decisiva sobre a vida interior do homem. Quando digo irracional não quero
dizer desafinado. Tomemos por exemplo as diversas manifestações do amor humano:
amizade, amor familiar, ou aquele amor que distingue da multidão e escolhe
aquele ou aquela que será para nós o único, o ser cuja presença transfigurará
aos nossos olhos o mundo inteiro. Um velho escritor grego dizia: “Quando alguém
ainda não encontrou aquela que será a sua noiva, está simplesmente cercado de
homens e de mulheres. A partir do momento em que descobre a amada, existe
“ela”, e os outros são gente.” Esta experiência, às vezes tão rica, tão
complexa e tão universal, pertence à ordem irracional no sentido de que não
conseguiria ser produzida pela razão. Não se ama alguém porque se pesou os prós
e os contras. Trata-se de uma experiência direta, de um fato que se impõe por
si próprio e que toca profundo demais para permitir qualquer argumento
racional.
Da mesma maneira é a experiência da beleza,
quer se ache na música ou nas artes plásticas, quer toque o ouvido ou os olhos:
não se saberia identificá-la com todo o somatório das razões que nos fazem
admirar uma obra de arte. Quando queremos partilhar com alguém a experiência
que fizemos da beleza de um pedaço de música ou da obra de um escultor, de um
arquiteto ou de um pintor, começaremos por dizer a esta pessoa, como Cristo a
seus primeiros discípulos: “Vinde ver!” Com certeza não diremos: “Primeiro vou
começar a explicar-te toda a beleza desta obra e quando a tiveres compreendido
bem, estarás então pronto para ter a mesma experiência”.
O amor e a beleza, eis aí duas experiências
primordiais nas quais nos encontramos confrontados com alguém ou alguma coisa
que pôde passar despercebido durante anos que não havíamos jamais notado. De
repente, inexplicavelmente, algo nos faz ver aquilo que não víamos antes. Uma
moça e um rapaz estão perdidos na multidão. Um dia eles se encontram e
produz-se algo, que se assemelha a um raio de
sol tocando um vitral. Sim o sol e vitral não é senão um
entre-cruzamento de linhas escuras sobre um fundo desigualmente acinzentado. De
súbito, é a iluminação , é a beleza, o tema escolhido pelo artista, seu
sentido. Vê-se então, o vitral. Apesar de que o raio de sol seja efêmero e que
vá desaparecer no fim do dia ou mesmo em um segundo; aquele que viu o vitral
sabe agora que existe ali um vitral e não uma superfície sombria. A certeza
prevalece sobre a evidência: é a isto que chamamos fé. A beleza que percebi,
sei que está lá, mesmo depois que ela parece extinguir-se.
Mas existem duas maneiras de considerar-se o
vitral que se viu. Como todas as revelações, há dois aspectos opostos. Ele é
revelado pela chama lançada pelo raio de sol, e ele revela o raio que, sem ele,
teria permanecido invisível. Duas pessoas se encontram: cada uma vê a outra
iluminada por assim dizer do interior; elas são reveladas uma a outra pela
luz da graça de Deus, em todo o
esplendor de suas realidades, tais como Deus os vê. Quando este esplendor
desaparece as duas pessoas podem guardar a certeza de sua visão e lembrar que
esta lhes foi concedida somente porque Deus irradiou as profundezas e as
manifestou. O que acontece mais freqüentemente é que após haver visto alguém no
resplendor desta glória, esquecemo-nos que esta visão foi-nos dada por uma luz
vinda do além e, loucamente, imaginamos que toda beleza pertence àquela pessoa.
O que era vitral torna-se ídolo; o que era revelação torna-se um muro opaco
além do qual nada vemos. Sabemos todos -e este é um lugar comum na literatura-
como uma visão passageira pode dar início a um sentimento exclusivo a que damos
o nome amor apaixonado: este é material para novelas em todos os países.
Aprendamos a guardar a visão que nos foi
concedida em toda a riqueza de sua dupla relação. Enquanto fizermos ídolos
daquilo que Deus nos revela de beleza humana ou artística, estaremos nos
arriscando a perder aquilo que poderia ser a ocasião de uma revelação e a
transformá-la em cegueira: da moça que amamos teremos feito um ídolo. Ou,
então, por haver descoberto numa árvore que se destacava do céu; uma beleza que
não nos havia jamais tocado antes, nós adoraremos esta árvore ao invés de nos
darmos conta de que um conjunto de circunstâncias revelou-nos aquilo que não
soubéramos ver até então. Enquanto procedermos assim, não conheceremos jamais
uma dimensão nova, mesmo no plano mais simples, o mais natural, o mais humano:
continuaremos a viver nas duas dimensões do tempo e do espaço.
Devemos, então, acolher ao máximo a experiência
do amor, descobrir e adorar a beleza das coisas e das pessoas. Então, quando
tivermos descobertos a dimensão que ultrapassa a razão, esta dimensão que pode
ser submetida ao exame da razão mas que é criada por ela, estaremos então
prontos para fazer descobertas que levarão a Deus.
No instante em que realizamos que somos cegos e
portanto estamos fora do Reino, colocamo-nos de imediato numa situação bastante
real em relação ao Reino e a Deus; não estamos mais naquele estado imaginário
no qual nos colocamos constantemente: fora, na rua, fazendo como se já
estivéssemos nas moradas eternas e aquecêssemos as mãos no fogo que arde no seu
interior; mas sim atrás da porta, esforçando-nos para participar de imediato de
uma vida que está ainda fora de nosso alcance, imaginando que a pequena fagulha que brilha em nós já constitui todo o
Reino.
Mas esta fagulha não é o Reino. É somente uma
garantia da vida eterna, uma promessa , um lembrete afixado em nós para nos
fazer perseverar até o fim em nossa esperança depois que tivermos tomado lugar
onde o Evangelho nos diz para começarmos: diante de uma porta que ainda
está fechada para nós, batendo nesta
porta sem nos cansar até que esta porta se abra. Devemo-nos manter diante do
mistério que ainda não penetramos, e chamar a Deus, a procura do nosso caminho,
implorando assim até que se abra diante de nós o caminho que nos levará direto
ao céu, certos de que chegará o momento em que Ele acolherá nossa oração.
Foi propositadamente que disse “acolherá” e não
“ouvirá”. Deus sempre ouve as nossas
orações, mesmo quando parece não nos responder. Ele não é surdo; nós é
que não somos sempre capazes de compreender o silêncio de Deus que responde ao
nosso apelo.
Se
compreendêssemos bem que estamos diante de uma porta fechada, tornaríamo-nos
capazes de medir nossa solidão e o quanto estamos longe ainda do júbilo ao qual
fomos chamados, da plenitude que Deus nos oferece; e poderíamos, entretanto, e
isto é muito importante, entender o quanto somos ricos a despeito de nossa
infinita pobreza.
Sabemos muito pouco a respeito das coisa
divinas; vivemos muito pouco em Deus. E no entanto que riqueza a nossa nesta
fagulha plena de presença, de conhecimento, de comunhão que brilha no coração
de nossas trevas! Se a escuridão é assim tão rica de luz, se ausência é tão
plena de presença, se a vida em sua aurora é cheia de uma tal plenitude, com
que esperança, com que alegria crescente não deveríamos nos colocar diante
daquela porta fechada, sustentados pelo pensamento de que ela um dia se abrirá
e dará passagem a uma tal explosão de vida
que não poderíamos contê-la em nós?
Não temos necessidade de tentar perceber
continuamente a presença de Deus, nem de esperar a todo momento que Deus vá
revelar-se a nós de maneira clara a nosso espírito. Os evangelhos oferecem-nos
um certo número de exemplos mostrando o quanto estamos distantes de perceber a
santidade de Deus e a Sua majestade, o quão pouco nos maravilhamos com isso.
Portanto achamos bastante natural procurar a Sua presença, ainda que timidamente
e como se esperássemos o impossível, deveríamos pedir a Deus que nos
transformasse, que nos convertesse, antes de poder nos encontrar em face de
presença tão temível. Um encontro com Deus já é a um grau maior ou menor o
julgamento final. Encontrar-se face a face com o Deus vivo é uma coisa grave
que pode ter conseqüências decisivas. Encontrar Deus é sempre uma crise; e em
grego “crise” quer dizer julgamento. Podemos nos apresentar diante de Deus e
sermos condenados ou salvos, segundo o que trazemos em nossos corações e pelo
testemunho de nossas vidas. Eis porque os profetas do Antigo Testamento,
poder-se-ia citar vários exemplos, lamentavam-se nestes termos: “Ai infeliz de
mim pois vi Deus e vou morrer!”
Encontrar Deus é mais do que a alma humana poder suportar, a menos que esta
tenha sido enxertada na própria vida de Deus em Cristo.
É temeroso procurar prematuramente este
encontro. É por isso que todo ensinamento da Igreja Ortodoxa em matéria de
oração e de conduta de vida, poderia se resumir nisto: “Não procureis nenhuma
experiência mística. Pedi a Deus num ato de adoração, com toda atenção e a fé
da qual sois capazes, com toda esperança e desejo, que nos transforme e nos
torne dignos de um dia “poder encontrá-lo”. Aí está algo profundamente evangélico. Lembremo-nos
da pesca milagrosa. Pedro tomou a Cristo em seu barco; ele viu Cristo falando
as multidões, mas não percebeu Sua majestade. O Senhor diz a seus discípulos
que avancem até as águas profundas e que lancem as redes. Pedro responde:
“Penamos a noite inteira sem nada pegar. Mas segundo a Tua palavra vou lançar
as redes. “Ele então deixa ir sua rede e não pode mais retirá-la! Pede ajuda
àqueles que se encontravam nos outros barcos, e é aí então que ele compreende,
uma vez mais, estar em presença de algo, de alguém que ultrapassa aquilo que
ele pode conceber. Aliás será ainda necessário que Deus revele a ele mais tarde
que Cristo é Seu próprio Filho, o Filho do Deus vivo. Naquele momento ele é tomado por um temor
reverente. Lançasse aos pés do Senhor e grita: “Sai de junto de mim, Senhor,
porque sou homem pecador !” Neste momento descobre a majestade d’Aquele que lá
estava, presente entre os seus e como se conhecia bem, suplica-lhe que parta.
E nós, quando nossa prece se faz profunda,
quando nos tornamos conscientes de Deus, de sua santidade, de sua grandeza,
acontece-nos de dizer-lhe : “Senhor, aparta-Te de mim : sou indigno de Te
sentir tão próximo”? Não procuramos antes provocar, forçar uma proximidade, uma
intimidade que o próprio Deus não procurou? Não tentamos nos impor a Ele, forçando a porta que Ele
quer manter fechada? Lembremo-nos daquele centurião que suplicava a Cristo para
salvar seu servo. “Vou curá-lo”, diz o Senhor.
“Não”, responde o centurião, “Não te canses... Pois eu tenho um posto
subalterno, tenho soldados sob minhas ordens e digo a um, vai, e ele vai...
Ordena com uma palavra e meu servo será curado” É esta a nossa atitude?
Possuímos de Deus um tal sentido que não tentamos obrigá-lo a vir? Uma palavra
basta; não precisamos de mais nada . sabemos respeitar a Sua liberdade soberana
e reverenciar Sua grandeza? Temos a certeza íntima que Sua palavra é vida para
aqueles a quem Ele se dirige? Se ao menos tivéssemos consciência de que é nossa
cegueira que nos mantém fora do Reino, privados de Sua Presença, poderíamos
então bater na porta, procurar um meio de entrar, implorar ao Senhor ao invés
de dizer-lhe: “Abre-me já, não tenho paciência para esperar. Mostra-Te agora;
esperei-Te tempo demais!”
Ora, é precisamente isto que fazemos sempre. Em
24 horas conseguimos encontrar uma curta meia hora para consagrar ao Senhor, e
nos espantamos de que no momento em que dizemos “Em nome do Pai, e do Filho, e
do Espírito Santo", a Santíssima Trindade não se nos revela em toda Sua
Majestade!
É de primeira importância para nós aprender o
quanto estamos ainda longe e o quanto já estamos plenos da presença divina pela
luz que nossas trevas encobrem; nossas próprias potencialidades podem ser uma
inspiração, uma via, uma esperança; quão pouco devemos nos apressar, tomando
como mais importante o sermos verdadeiros o estarmos em relação a Deus e ao
mundo que nos cerca num plano que seja verdadeiramente nosso, e onde Deus possa
agir. Pois Deus não pode agir sobre o plano irreal onde nos colocamos
continuamente pelo efeito de nossa imaginação, de nossa fantasia, de nossos
desejos, e daquilo que os Padres do deserto chamavam gula espiritual.
Um de nossos problemas estaria então resolvido:
um aspecto da oração que é o tormento de nossa vida tornar-se-ia um ato
criador, um ato cheio de significado. Orar com o sentimento da ausência de
Deus: faze-mo-lo raramente com todo o nosso coração. Quanto nos lamentamos
desta ausência! Quão pouco aproveitamos dela para sermos verdadeiros e dizer:
“Eu sou cego, estou diante da porta, no frio e no escuro; não que eu esteja nas
trevas exteriores, rejeitado por um julgamento de Deus, mas como no princípio
da Gênese, naquele momento em que Deus estava criando todas as coisas, tirando
das trevas a luz, mesmo que aquilo a que eu chamava luz ontem não seja hoje mais do que crepúsculos.
Orar na ausência de Deus, saber que Ele está lá e eu é que sou cego, que sou
insensível, e que de Seu lado é um ato de misericórdia infinita não se fazer
presente para mim enquanto eu não for capaz de suportar o esplendor de Sua
vinda.
Se olharmos atentamente aquilo que se encontra
no fundo do labirinto sombrio que são nosso coração, nossa consciência, nosso
passado, nosso presente, nossos ímpetos em direção ao futuro, poderíamos
afirmar que estamos preparados para um encontro com Deus? Ousaríamos desejar
encontrá-lo? Sim, mas somente naquele momento escolhido por Ele e como um dom
de sua parte. Quanto a querer um encontro a qualquer preço e a forçar a mão de
Deus, ah! isto não. Seria muito mais do que podemos suportar. No entanto, é
assim que nos comportamos, tornados cegos pelas coisas visíveis, incapazes de
ver a grandeza temível do Invisível, faltos do sentido de admiração, do temor
reverencial, da visão concedida pela fé, do humilde sentimento de ter tocado a
franja dos vestidos de Cristo. Se ao menos soubéssemos ser gratos a Deus por
esta ausência que nos ensina a bater na porta, a por à prova nossos pensamentos
e nosso coração, a considerar o sentido de nossas ações, a julgar os impulsos
de nosso ser inteiro, a nos perguntar se nossa vontade é realmente sempre
voltada para Deus, ou se não buscamos n’Ele senão um momento de repouso, para
abandoná-lo um segundo depois, logo que tenhamos recobrado um pouco de forças,
para desperdiçar como o filho pródigo a energia que nos foi concedida.
Estas coisas são importantes pois se ao nosso
ponto de partida falta realismo, senão tomamos consciência da verdadeira
natureza das coisas, se não as aceitamos sem reserva como um dom de Deus em
resposta a nossa situação, passaremos o tempo tentando forçar uma porta que se
abrirá sozinha, um dia. São João Crisóstomo diz: “Encontra a chave do teu
coração; descobrirás que esta chave abre também a porta do Reino”. Eis a
direção que deve tomar a nossa busca.
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