A história de Bartimeu


BLOOM Metropolita Anthony de Sourozh
tradução de monja Rebeca (Pereira)


Eles vêm a Jerico. E enquanto Ele saía de Jerico , assim como seus discípulos e uma multidão considerável, o filho de Timeu, Bartimeu , um mendigo cego, estava sentado à beira do caminho. E, ao saber que era Jesus de Nazaré, ele se pôs a gritar e a dizer: “Jesus, Filho de David, tem piedade de mim!” E, parando, Jesus disse: “Chame-o”. E chamaram o cego, dizendo-lhe: “Coragem! De pé! Ele te chama!” Este, deixando o seu manto, veio de um salto ao encontro de Jesus. E, dirigindo-se a Ele, Jesus disse: “Para ti, que queres que eu faça?” O cego lhe diz: “Rabi, que eu recobre a visão”. E Jesus lhe disse: “Vá, a tua fé te salvou!” E ele logo recuperou a visão e O seguiu no caminho. (Marcos 10,46-52)

Creio que uma das razões que nos impedem de sermos realmente nós mesmos e de encontrar nosso caminho é que não percebemos até que ponto somos cegos. Se ao menos soubéssemos que somos cegos, com que pressa não buscaríamos a cura! Nós a pediríamos, provavelmente como Bartimeu o fez, aos homens, aos doutores, aos padres, aos curandeiros. Então, tendo perdido toda esperança “nos príncipes, nos filhos dos homens, em quem não há salvação”, talvez nos dirigíssemos a Deus. Mas o que é trágico é que não temos consciência de nossa cegueira. Coisas demais desfilam diante de nossos olhos para que suspeitemos da existência deste mundo invisível para o qual somos cegos. Nós vivemos em meio a um mundo de objetos diversos que reclamam a nossa atenção, que se impõem a ela. Não temos necessidade de afirmar sua existência: eles estão lá. As coisas invisíveis, ao contrário, não forçam a nossa atenção. Temos que procurá-las, descobri-las. O mundo exterior se impõem à nossa atenção; Deus nos implora timidamente.

Recordo-me de um velho monge que me dizia: “O Espírito Santo é como um grande pássaro assustado que pousou um pouco longe. Quando você o vir aproximar-se, não se mexa, não o assuste, deixe-o vir até você”. Pensamos na descida do Espírito Santo sob a forma de pomba. A imagem de um pássaro que desce, ao mesmo tempo temeroso e pronto a  se entregar, esta imagem é escritural e plena de significado. No entanto, ouvi uma voz em japonês  me dizer: “Na religião cristã , me parece que compreendo o que diz respeito ao Pai e ao Filho; mas não consigo descobrir o que pode significar o honorável passarinho”.

E como estamos no mundo dos símbolos da timidez, imagens de um coração que concede seu favor mas não se prostitui jamais, invoquemos esta passagem do Pequeno Príncipe na qual a raposa diz a seu interlocutor como ele deve fazer para cativá-la: ele deve ser muito paciente sentar-se um pouco distante e olhá-la com um canto do olho sem nada dizer, pois a linguagem é fonte de mal-entendidos. A cada dia ele se sentará um pouco mais perto. É assim que eles se tornarão amigos. Escreva “Deus” no lugar de “raposa” e notarão uma casta e amorosa modéstia, uma reserva que se oferece mas não se prostitui. Deus não aceitará as relações fáceis e cavalheirescas; também não impõe a Sua presença: Ele a oferece; mas para recebê-la  deve-se estar em uníssono e se fazer um coração modesto e amoroso: procura mútua cheia de modéstia e de reserva, animada por um sentimento de profundo respeito, porque cada um reconhece intuitivamente a santidade, a extraordinária beleza do amor partilhado.

O mundo externo se impõe por si só. O mundo inteiro pode ser percebido, ele jamais força a atenção. Assim, devemos progredir lentamente, com precaução. Devemos espiar o mundo inteiro do modo que um homem deseja observar os hábitos dos pássaros. Ele se coloca num bosque ou num campo que parece silencioso mas que é, na verdade, vibrante de vida. Ele não se mexe, ele presta atenção no que pode vir. Essa atitude que nos permite ver o que, de outro modo, nos escapa, poderíamos descrevê-la com as palavras desta velha canção infantil.

UMA VELHA CORUJA VIVIA EM SEU CARVALHO
QUANTO MAIS ELA OBSERVAVA, MENOS ELA FALAVA
QUANTO MENOS ELA FALAVA, MAIS ELA OUVIA
E SE NÓS SEGUÍSSEMOS O EXEMPLO?

Cegos pela multiplicidade das coisas, esquecemos que elas não estão à medida da profundidade da qual o homem é capaz. O homem, é ao mesmo tempo, pequeno e grande. Num universo em perpétua expansão - incomensuravelmente grande e infinitamente pequeno - nós somos como um grão de areia, efêmero, frágil, uma quantidade negligenciável. Mas, quando nos voltamos para o interior, descobrimos que não há nada nesta imensidão que nos preencha até a borda: é o mundo criado que cai, qual grão de areia, no abismo do nosso ser. Pois somos demasiado vastos para sermos preenchidos por ele: Deus, que nos fez para ele, à sua medida, é o único que pode nos preencher. Segundo as palavras de Angelus Silesins:

EU SOU TÃO GRANDE QUANTO DEUS;
ELE É TÃO PEQUENO QUANTO EU.

O mundo sensível possui a opacidade, a densidade, o peso, o volume: ele não tem profundidade. Sempre podemos ir ao fundo das coisas; mas quando chegamos ao seu ponto mais profundo, não podemos ir adiante: não existe nisso uma abertura ao infinito. O centro de uma esfera, por exemplo, é o seu ponto mais interior; mas, ao querer ultrapassá-lo, chegamos à superfície ou aos antípodas.

Quando, ao contrário, a Escritura fala da profundidade do coração humano, não se trata de uma profundidade passível de ser medida. A imensidão é sua própria natureza; ela ultrapassa todos valores mensuráveis. é uma profundidade que se enraíza na imensidão de Deus. Nós somos cegos, e nossa cegueira vem do fato de que o visível nos impede de perceber o invisível. Mas nós só começaremos a tomar consciência disso, quando tivermos percebido a diferença que existe entre uma presença que se afirma e outra que devemos procurar, porque ele se encontra em nossos corações; a diferença, em outros termos, entre a pesada e opaca densidade do mundo que nos cerca e a profundidade humana que só Deus pode preencher. Eu iria mais longe e falaria de bom grado da profundidade de todas as coisas criadas, pois sua vocação é se tornar o lugar da presença divina, o dia em que, tudo se tendo cumprido, Deus estará em todas as coisas.
               
Estar cego ao invisível, só ter consciência das realidades tangíveis, é ficar de fora da plenitude da consciência, estranho à experiência desta realidade total que é o mundo em Deus e Deus no coração do mundo. Disso, o cego Bartimeu estava dolorosamente  consciente pois o mundo físico escapava-lhe. Era com verdadeiro sofrimento de desespero que clamava ao Senhor. Apartado de tudo por sua cegueira, sentia passar com a salvação a esperança. Se muito freqüentemente não sabemos implorar a Deus desta maneira é porque não nos damos conta de a que ponto estamos aprisionados em uma cegueira que nos impede de ter do mundo uma visão total, visão esta que daria sua plena realidade ao próprio mundo visível. Se tão somente soubéssemos como nos tornar cegos às coisas visíveis a fim de descobrir para além delas em profundidade, aquilo que é invisível em nós e a nossa volta, penetrando com sua presença todas as coisas!

Há muitos tipos de cegueira. Há uma encontrada somente nos Santos que resulta de uma luz por demais viva. Falando da obscuridade divina, Simeão, o novo Teólogo diz que ela é um excesso de luz, uma luz tão ofuscante que aquele que a vê  uma vez permanece cego. Existe também um outro gênero de cegueira que persiste mesmo com os olhos bem abertos. Referindo-se a um herói de Tolstoi, Pierre Besoukhof, o teólogo russo Sérgio Troistky diz que ele contemplava os grandes e belos olhos de Helena e não via aí senão a si próprio: um homem sem defeitos - assim como ela - coitada! - o via. Olhava seus olhos e não via senão a si próprio; quanto a ela, escapava-lhe completamente!

É exatamente isto que fazemos em relação ao mundo sensível. Quando levamos nosso olhar até uma janela podemos, à vontade, ver aí nossa própria imagem refletida, ou o vidro, ou o que se encontra por trás dele. Nossos olhos podem ser os da indiferença, os mesmos com que os passantes olhavam o cego Bartimeu. Podem ser também os olhos do guloso de Dickens que ao ver o gado pastando não pensava senão “Viva a carne de boi!” Ou ainda serão os olhos do ódio, quando adquirimos aquela horrível perspicácia do diabo, quando não vemos senão o mal fazendo das coisas uma odiosa caricatura. Podemos, enfim, ver com os olhos do amor com aquela pureza de coração que permite ver a Deus e sua imagem nas pessoas, mesmo lá onde esta imagem está obscurecida, pois que penetra, para além das aparências e das evidências contrárias, até o centro o mais verdadeiro, ainda que mais secreto, da alma. É isto que dizia a raposa ao pequeno príncipe: “Não se vê bem senão com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.

Reconheçamos, portanto, que não somos conscientes da profundidade das coisas, da imensidão, da vocação de eternidade do universo e que não podemos nos dar conta disso enquanto, por um tipo de experiências primordial não tenhamos adquirido a certeza de que o mundo interior existe; e é pela fé que podemos ter a certeza de que o invisível é real que está presente e que é digno de ser procurado para além do visível, mesmo que através dele e em seu centro. Este ato de fé requer de nossa parte que aceitemos o testemunho daqueles para quem o mundo invisível tornou-se presente. É preciso que o aceitemos ao menos como uma hipótese de trabalho; hipótese provisória, talvez, mas que nos permitirá avançar em nossas pesquisas. Sem isto, nada é possível. Não podemos nos por em busca do invisível se, a priori, estamos certos de que ele não existe. E quando falo de testemunho, trata-se daquele que é prestado não por uma ou duas pessoas somente, mas por milhões de pessoas, cristãos e não cristãos, e que no correr do tempo experimentaram o invisível e atestaram sua presença.

Parece-me chegado o momento de alargar nosso horizonte, nossa compreensão da vida em geral. Creio que ainda hoje vivemos na ilusão que consiste em julgar duvidoso tudo aquilo que não é racional. No entanto, a psicologia mostrou que existe todo mundo irracional cuja influência é decisiva sobre a vida interior do homem. Quando digo irracional não quero dizer desafinado. Tomemos por exemplo as diversas manifestações do amor humano: amizade, amor familiar, ou aquele amor que distingue da multidão e escolhe aquele ou aquela que será para nós o único, o ser cuja presença transfigurará aos nossos olhos o mundo inteiro. Um velho escritor grego dizia: “Quando alguém ainda não encontrou aquela que será a sua noiva, está simplesmente cercado de homens e de mulheres. A partir do momento em que descobre a amada, existe “ela”, e os outros são gente.” Esta experiência, às vezes tão rica, tão complexa e tão universal, pertence à ordem irracional no sentido de que não conseguiria ser produzida pela razão. Não se ama alguém porque se pesou os prós e os contras. Trata-se de uma experiência direta, de um fato que se impõe por si próprio e que toca profundo demais para permitir qualquer argumento racional.

Da mesma maneira é a experiência da beleza, quer se ache na música ou nas artes plásticas, quer toque o ouvido ou os olhos: não se saberia identificá-la com todo o somatório das razões que nos fazem admirar uma obra de arte. Quando queremos partilhar com alguém a experiência que fizemos da beleza de um pedaço de música ou da obra de um escultor, de um arquiteto ou de um pintor, começaremos por dizer a esta pessoa, como Cristo a seus primeiros discípulos: “Vinde ver!” Com certeza não diremos: “Primeiro vou começar a explicar-te toda a beleza desta obra e quando a tiveres compreendido bem, estarás então pronto para ter a mesma experiência”.

O amor e a beleza, eis aí duas experiências primordiais nas quais nos encontramos confrontados com alguém ou alguma coisa que pôde passar despercebido durante anos que não havíamos jamais notado. De repente, inexplicavelmente, algo nos faz ver aquilo que não víamos antes. Uma moça e um rapaz estão perdidos na multidão. Um dia eles se encontram e produz-se algo, que se assemelha a um raio de  sol tocando um vitral. Sim o sol e vitral não é senão um entre-cruzamento de linhas escuras sobre um fundo desigualmente acinzentado. De súbito, é a iluminação , é a beleza, o tema escolhido pelo artista, seu sentido. Vê-se então, o vitral. Apesar de que o raio de sol seja efêmero e que vá desaparecer no fim do dia ou mesmo em um segundo; aquele que viu o vitral sabe agora que existe ali um vitral e não uma superfície sombria. A certeza prevalece sobre a evidência: é a isto que chamamos fé. A beleza que percebi, sei que está lá, mesmo depois que ela parece extinguir-se.

Mas existem duas maneiras de considerar-se o vitral que se viu. Como todas as revelações, há dois aspectos opostos. Ele é revelado pela chama lançada pelo raio de sol, e ele revela o raio que, sem ele, teria permanecido invisível. Duas pessoas se encontram: cada uma vê a outra iluminada por assim dizer do interior; elas são reveladas uma a outra pela luz  da graça de Deus, em todo o esplendor de suas realidades, tais como Deus os vê. Quando este esplendor desaparece as duas pessoas podem guardar a certeza de sua visão e lembrar que esta lhes foi concedida somente porque Deus irradiou as profundezas e as manifestou. O que acontece mais freqüentemente é que após haver visto alguém no resplendor desta glória, esquecemo-nos que esta visão foi-nos dada por uma luz vinda do além e, loucamente, imaginamos que toda beleza pertence àquela pessoa. O que era vitral torna-se ídolo; o que era revelação torna-se um muro opaco além do qual nada vemos. Sabemos todos -e este é um lugar comum na literatura- como uma visão passageira pode dar início a um sentimento exclusivo a que damos o nome amor apaixonado: este é material para novelas em todos os países.

Aprendamos a guardar a visão que nos foi concedida em toda a riqueza de sua dupla relação. Enquanto fizermos ídolos daquilo que Deus nos revela de beleza humana ou artística, estaremos nos arriscando a perder aquilo que poderia ser a ocasião de uma revelação e a transformá-la em cegueira: da moça que amamos teremos feito um ídolo. Ou, então, por haver descoberto numa árvore que se destacava do céu; uma beleza que não nos havia jamais tocado antes, nós adoraremos esta árvore ao invés de nos darmos conta de que um conjunto de circunstâncias revelou-nos aquilo que não soubéramos ver até então. Enquanto procedermos assim, não conheceremos jamais uma dimensão nova, mesmo no plano mais simples, o mais natural, o mais humano: continuaremos a viver nas duas dimensões do tempo e do espaço.

Devemos, então, acolher ao máximo a experiência do amor, descobrir e adorar a beleza das coisas e das pessoas. Então, quando tivermos descobertos a dimensão que ultrapassa a razão, esta dimensão que pode ser submetida ao exame da razão mas que é criada por ela, estaremos então prontos para fazer descobertas que levarão a Deus.

No instante em que realizamos que somos cegos e portanto estamos fora do Reino, colocamo-nos de imediato numa situação bastante real em relação ao Reino e a Deus; não estamos mais naquele estado imaginário no qual nos colocamos constantemente: fora, na rua, fazendo como se já estivéssemos nas moradas eternas e aquecêssemos as mãos no fogo que arde no seu interior; mas sim atrás da porta, esforçando-nos para participar de imediato de uma vida que está ainda fora de nosso alcance, imaginando que a pequena  fagulha que brilha em nós já constitui todo o Reino.

Mas esta fagulha não é o Reino. É somente uma garantia da vida eterna, uma promessa , um lembrete afixado em nós para nos fazer perseverar até o fim em nossa esperança depois que tivermos tomado lugar onde o Evangelho nos diz para começarmos: diante de uma porta que ainda está  fechada para nós, batendo nesta porta sem nos cansar até que esta porta se abra. Devemo-nos manter diante do mistério que ainda não penetramos, e chamar a Deus, a procura do nosso caminho, implorando assim até que se abra diante de nós o caminho que nos levará direto ao céu, certos de que chegará o momento em que Ele acolherá nossa oração.

Foi propositadamente que disse “acolherá” e não “ouvirá”. Deus sempre ouve as nossas  orações, mesmo quando parece não nos responder. Ele não é surdo; nós é que não somos sempre capazes de compreender o silêncio de Deus que responde ao nosso apelo.

Se  compreendêssemos bem que estamos diante de uma porta fechada, tornaríamo-nos capazes de medir nossa solidão e o quanto estamos longe ainda do júbilo ao qual fomos chamados, da plenitude que Deus nos oferece; e poderíamos, entretanto, e isto é muito importante, entender o quanto somos ricos a despeito de nossa infinita pobreza.

Sabemos muito pouco a respeito das coisa divinas; vivemos muito pouco em Deus. E no entanto que riqueza a nossa nesta fagulha plena de presença, de conhecimento, de comunhão que brilha no coração de nossas trevas! Se a escuridão é assim tão rica de luz, se ausência é tão plena de presença, se a vida em sua aurora é cheia de uma tal plenitude, com que esperança, com que alegria crescente não deveríamos nos colocar diante daquela porta fechada, sustentados pelo pensamento de que ela um dia se abrirá e dará passagem a uma tal explosão de vida  que não poderíamos contê-la em nós?

Não temos necessidade de tentar perceber continuamente a presença de Deus, nem de esperar a todo momento que Deus vá revelar-se a nós de maneira clara a nosso espírito. Os evangelhos oferecem-nos um certo número de exemplos mostrando o quanto estamos distantes de perceber a santidade de Deus e a Sua majestade, o quão pouco nos maravilhamos com isso. Portanto achamos bastante natural procurar a Sua presença, ainda que timidamente e como se esperássemos o impossível, deveríamos pedir a Deus que nos transformasse, que nos convertesse, antes de poder nos encontrar em face de presença tão temível. Um encontro com Deus já é a um grau maior ou menor o julgamento final. Encontrar-se face a face com o Deus vivo é uma coisa grave que pode ter conseqüências decisivas. Encontrar Deus é sempre uma crise; e em grego “crise” quer dizer julgamento. Podemos nos apresentar diante de Deus e sermos condenados ou salvos, segundo o que trazemos em nossos corações e pelo testemunho de nossas vidas. Eis porque os profetas do Antigo Testamento, poder-se-ia citar vários exemplos, lamentavam-se nestes termos: “Ai infeliz de mim pois vi  Deus e vou morrer!” Encontrar Deus é mais do que a alma humana poder suportar, a menos que esta tenha sido enxertada na própria vida de Deus em Cristo.

É temeroso procurar prematuramente este encontro. É por isso que todo ensinamento da Igreja Ortodoxa em matéria de oração e de conduta de vida, poderia se resumir nisto: “Não procureis nenhuma experiência mística. Pedi a Deus num ato de adoração, com toda atenção e a fé da qual sois capazes, com toda esperança e desejo, que nos transforme e nos torne dignos de um dia “poder encontrá-lo”. Aí está  algo profundamente evangélico. Lembremo-nos da pesca milagrosa. Pedro tomou a Cristo em seu barco; ele viu Cristo falando as multidões, mas não percebeu Sua majestade. O Senhor diz a seus discípulos que avancem até as águas profundas e que lancem as redes. Pedro responde: “Penamos a noite inteira sem nada pegar. Mas segundo a Tua palavra vou lançar as redes. “Ele então deixa ir sua rede e não pode mais retirá-la! Pede ajuda àqueles que se encontravam nos outros barcos, e é aí então que ele compreende, uma vez mais, estar em presença de algo, de alguém que ultrapassa aquilo que ele pode conceber. Aliás será ainda necessário que Deus revele a ele mais tarde que Cristo é Seu próprio Filho, o Filho do Deus vivo.  Naquele momento ele é tomado por um temor reverente. Lançasse aos pés do Senhor e grita: “Sai de junto de mim, Senhor, porque sou homem pecador !” Neste momento descobre a majestade d’Aquele que lá estava, presente entre os seus e como se conhecia bem, suplica-lhe que parta.

E nós, quando nossa prece se faz profunda, quando nos tornamos conscientes de Deus, de sua santidade, de sua grandeza, acontece-nos de dizer-lhe : “Senhor, aparta-Te de mim : sou indigno de Te sentir tão próximo”? Não procuramos antes provocar, forçar uma proximidade, uma intimidade que o próprio Deus não procurou? Não tentamos  nos impor a Ele, forçando a porta que Ele quer manter fechada? Lembremo-nos daquele centurião que suplicava a Cristo para salvar seu servo. “Vou curá-lo”, diz o Senhor.  “Não”, responde o centurião, “Não te canses... Pois eu tenho um posto subalterno, tenho soldados sob minhas ordens e digo a um, vai, e ele vai... Ordena com uma palavra e meu servo será curado” É esta a nossa atitude? Possuímos de Deus um tal sentido que não tentamos obrigá-lo a vir? Uma palavra basta; não precisamos de mais nada . sabemos respeitar a Sua liberdade soberana e reverenciar Sua grandeza? Temos a certeza íntima que Sua palavra é vida para aqueles a quem Ele se dirige? Se ao menos tivéssemos consciência de que é nossa cegueira que nos mantém fora do Reino, privados de Sua Presença, poderíamos então bater na porta, procurar um meio de entrar, implorar ao Senhor ao invés de dizer-lhe: “Abre-me já, não tenho paciência para esperar. Mostra-Te agora; esperei-Te tempo demais!”

Ora, é precisamente isto que fazemos sempre. Em 24 horas conseguimos encontrar uma curta meia hora para consagrar ao Senhor, e nos espantamos de que no momento em que dizemos “Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo", a Santíssima Trindade não se nos revela em toda Sua Majestade!

É de primeira importância para nós aprender o quanto estamos ainda longe e o quanto já estamos plenos da presença divina pela luz que nossas trevas encobrem; nossas próprias potencialidades podem ser uma inspiração, uma via, uma esperança; quão pouco devemos nos apressar, tomando como mais importante o sermos verdadeiros o estarmos em relação a Deus e ao mundo que nos cerca num plano que seja verdadeiramente nosso, e onde Deus possa agir. Pois Deus não pode agir sobre o plano irreal onde nos colocamos continuamente pelo efeito de nossa imaginação, de nossa fantasia, de nossos desejos, e daquilo que os Padres do deserto chamavam gula espiritual.

Um de nossos problemas estaria então resolvido: um aspecto da oração que é o tormento de nossa vida tornar-se-ia um ato criador, um ato cheio de significado. Orar com o sentimento da ausência de Deus: faze-mo-lo raramente com todo o nosso coração. Quanto nos lamentamos desta ausência! Quão pouco aproveitamos dela para sermos verdadeiros e dizer: “Eu sou cego, estou diante da porta, no frio e no escuro; não que eu esteja nas trevas exteriores, rejeitado por um julgamento de Deus, mas como no princípio da Gênese, naquele momento em que Deus estava criando todas as coisas, tirando das trevas a luz, mesmo que aquilo a que eu chamava luz  ontem não seja hoje mais do que crepúsculos. Orar na ausência de Deus, saber que Ele está lá e eu é que sou cego, que sou insensível, e que de Seu lado é um ato de misericórdia infinita não se fazer presente para mim enquanto eu não for capaz de suportar o esplendor de Sua vinda.

Se olharmos atentamente aquilo que se encontra no fundo do labirinto sombrio que são nosso coração, nossa consciência, nosso passado, nosso presente, nossos ímpetos em direção ao futuro, poderíamos afirmar que estamos preparados para um encontro com Deus? Ousaríamos desejar encontrá-lo? Sim, mas somente naquele momento escolhido por Ele e como um dom de sua parte. Quanto a querer um encontro a qualquer preço e a forçar a mão de Deus, ah! isto não. Seria muito mais do que podemos suportar. No entanto, é assim que nos comportamos, tornados cegos pelas coisas visíveis, incapazes de ver a grandeza temível do Invisível, faltos do sentido de admiração, do temor reverencial, da visão concedida pela fé, do humilde sentimento de ter tocado a franja dos vestidos de Cristo. Se ao menos soubéssemos ser gratos a Deus por esta ausência que nos ensina a bater na porta, a por à prova nossos pensamentos e nosso coração, a considerar o sentido de nossas ações, a julgar os impulsos de nosso ser inteiro, a nos perguntar se nossa vontade é realmente sempre voltada para Deus, ou se não buscamos n’Ele senão um momento de repouso, para abandoná-lo um segundo depois, logo que tenhamos recobrado um pouco de forças, para desperdiçar como o filho pródigo a energia que nos foi concedida.

Estas coisas são importantes pois se ao nosso ponto de partida falta realismo, senão tomamos consciência da verdadeira natureza das coisas, se não as aceitamos sem reserva como um dom de Deus em resposta a nossa situação, passaremos o tempo tentando forçar uma porta que se abrirá sozinha, um dia. São João Crisóstomo diz: “Encontra a chave do teu coração; descobrirás que esta chave abre também a porta do Reino”. Eis a direção que deve tomar a nossa busca.

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