O SENTIDO DOGMATICO DO ICONE
OUSPENSKY Leonid
traducao de monja Rebeca (Pereira)
O ícone é uma santa imagem e não uma “imagem santa” ou uma imagem piedosa. Ele tem o seu caráter próprio, seus cânones particulares e não se define por uma arte do século ou de um gênio nacional, mas pela fidelidade à sua destinação que é universal. Ela é uma expressão da economia divina, resumida no ensinamento da Igreja Ortodoxa: “Deus tornou-Se homem para que o homem se torne deus”. Tal é a importância que a Igreja atribui ao ícone que a vitória sobre o Iconoclasmo foi solenemente declarada Triunfo da Ortodoxia, triunfo sempre festejado na primeira semana da Grande Quaresma.
Para a Igreja Ortodoxa a imagem, tanto como a palavra, é uma linguagem exprimindo seus dogmas e seu ensinamento. É uma teologia inspirada, apresentada sob uma forma visual. Ela é o espelho refletindo a vida espiritual da Igreja, permitindo julgar lutas dogmáticas de tal ou tal época. As épocas de florescimento da arte litúrgica correspondem sempre a um apogeu da vida espiritual: foi o caso para Bizâncio, outros países ortodoxos e o Ocidente na época romana. Nestes momentos, a vida litúrgica é realizada plenamente em seu conjunto harmonioso, ainda que em cada um de seus domínios particulares.
Todavia, a imagem não se contenta em exprimir a via dogmática e espiritual da Igreja, sua vida interior. Através da Igreja, a imagem reflete de igual maneira a civilização que a rodeia. Ligada por aqueles que a criam no mundo aqui de baixo, esta arte é também o espelho da vida do povo, da época e do meio, e mesmo até a vida pessoal do artista. Ele é também, de alguma maneira, a história do país e do povo. Assim, um ícone russo, possuindo a mesma iconografia que um ícone bizantino, difere deste pelos seus tipos e seu caráter nacional, um ícone de Novgorod não parece com um de Moscou, etc... É precisamente este aspecto exterior da arte sacra que forma o objeto da grande maioria dos estudos atuais.
O conteúdo litúrgico da imagem sacra foi perdido no Ocidente no século XIII e no mundo ortodoxo, seguindo os países, nos séculos XV, XVI e XVII. É somente no fim do século XIX que os conhecedores, os sábios, os estetas descobrem o ícone. O que parecia ser, outrora uma mancha sombria, afogada num rico revestimento de ouro, aparece, de repente, em sua beleza miraculosa. Nossos ancestrais iconógrafos revelam-se não somente pintores geniais, mas antes mestres de vida espiritual, sabendo dar formas às palavras do Senhor: o Meu Reino não é deste mundo (João).
Ora, a incompreensão do conteúdo desta arte não é devido à superioridade, nem a uma perda de sua força vital ou de sua importância, mas à nossa decadência espiritual profunda. Sem falar das pessoas que estão fora, completamente, da Igreja, estamos em presença, mesmo junto aos fiéis, de um pecado essencial de nossa época: a secularização de nosso espírito, a deformação completa da própria idéia da Igreja e da Liturgia.
Podemos dizer, em geral, vemos mais a parte moral da vida espiritual. Seu fundo dogmático, tornado domínio dos “sábios teólogos”, é considerado como uma ciência abstrata e não tem relação com a realidade de nossa vida quotidiana. Quanto à Liturgia, guia infalível de nosso caminhar espiritual, profissão de nossa fé, ela não passa para muitos, de um rito tradicional ou ainda um uso piedoso e marcante. A unidade orgânica do dogma e da lei moral na Liturgia quebrantou-se, desagregou-se.
Esta ausência de unidade interior destrói a plenitude litúrgica de nossos serviços divinos. Os elementos que os compõem e que não compreendemos mais o objetivo comum – a palavra, o canto, a imagem, a arquitetura, a iluminação, etc... - estão se esvaindo, cada um em sua própria via, em busca de seu sentido e de seus efeitos particulares. Só estão unidos uns aos outros pelo modo de tal ou tal época (barroco, classicismo, etc...) ou pelo gosto pessoal. Assim, a arte da Igreja não vive mais da revelação do Espírito Santo, da vida dogmática da Igreja, mas se nutre da civilização de tal ou tal momento histórico. Ele não ensina mais; busca e tateia com o mundo.
Ouvimos, por vezes, vozes indignadas protestar contra as imagens de pouco valor e sentimentais “gênero Santo Suplício”, ou contra as peças do concerto que veem tomar o lugar do canto litúrgico. Não se trata lá, como admitimos correntemente de uma decadência de nosso gosto. O mau gosto sempre existiu e sempre existirá. O mal de nossa época é o gosto pessoal, que seja bom ou mal, é geralmente admitido como critério na Igreja, enquanto o critério perdeu-se.
Para compreender a significação e o conteúdo da arte sagrada, em particular, o ícone, comecemos por estudar, de maneira breve, o conjunto da qual ele não passa de uma parte, a igreja e sua significação simbólica, de uma parte, a atitude da Igreja Ortodoxa face à arte, de outra.
O princípio ortodoxo da construção das igrejas é baseado sobre a tradição legada pelos Padres. Ora, a tradição não é um princípio conservador; ela é, antes, a própria vida da Igreja no Espírito Santo. É a revelação divina que continua a viver. À experiência daquele que a recebeu e transmitiu, adiciona-se a experiência daquele que viverá depois dele. Assim, a unidade da verdade revelada cohabita com a pluralidade das compreensões pessoais.
Em seu segundo Tratado pela Defesa dos Santos Ícones, São João Damasceno diz: “A Lei e tudo o quê foi instituído pela Lei (o Antigo Testamento) era uma prefiguração da imagem que há de vir, quer dizer, de nosso culto atual. E o culto que rendemos atualmente é uma imagem dos bens que hão de vir. Quanto aos próprios objetos, eles são a Jerusalém celeste, imaterial e não feita por mão de homem, segundo a palavra do Apóstolo: “Não temos aqui cidade permanente, mas buscamos aquela que virá (Hb. 13, 14), quer dizer a Jerusalém celeste, cujo arquiteto e construtor é Deus (Hb. 11, 10). Uma igreja, com tudo que ela contém, é logo uma imagem dos “bens que hão de vir” da Jerusalém celeste.
Segundo os Padres liturgos, em particular São Germano de Constantinopla, grande confessor da Ortodoxia durante o período iconoclasta, “a igreja é o céu sobre a terra, onde habita e Se move Deus, Aquele que está no mais alto dos Céus”, “Ela foi prefigurada nas pessoas dos patriarcas, anunciada naquela dos profetas, fundada naquela dos Apóstolos, ornada naquela dos Hierarcas, santificada naquela dos mártires...” “Ela é a imagem da Igreja divina e representa o que está sobe a terra, o que está no céu e o que ultrapassa o céu” (São Simeão de Tessalônica). Ele precisa: “O nártex corresponde à terra, a nave o céu, e o santuário o quê está mais alto que o céu.”
Assim, para os Padres, a Igreja é o céu novo e a terra nova, o mundo transfigurado, a paz que há de vir, onde todas as criaturas se juntarão na ordem hierárquica em redor de seu Criador.
É sobre esta imagem que se baseiam a construção e a decoração das igrejas. Estão lá os símbolos dogmáticos que se limitam em fixar os princípios gerais e essenciais. Os Padres não prescrevem estilo algum de arquitetura, nem indicam como ornar o edifício, nem de que maneira deve se pintar os ícones. Tudo isto decorre da idéia geral da Igreja e segue uma regra de arte análoga à regra litúrgica. Falando de outra forma, temos uma fórmula geral muito nítida e muito clara que dirige nossos esforços, deixando uma liberdade completa à ação do Espírito Santo em nós.
É, então, a imagem do mundo transfigurado que está na base do princípio definindo o aspecto da Igreja, a forma dos objetos e seu lugar, o caráter dos cantos litúrgicos, e a regra de ordem dos sujeitos e da decoração, bem como o aspecto exterior da imagem.
É claro que uma semelhante concepção da Igreja necessita uma harmonia perfeita de todos os elementos que a formam, quer dizer sua unidade e sua plenitude litúrgica.
A arquitetura, a imagem, o canto, tudo deve fazer com que o fiel se lembre de que se encontra num lugar sagrado. Cada parte do edifício deve, pelo seu aspecto, lhe mostrar seu sentido e sua destinação.
Para formar um conjunto harmonioso, cada um dos elementos que compõem uma igreja deve, antes de tudo, estar subordinado à sua idéia geral e partindo renunciar a toda ambição de jogar um papel próprio, de valor para si mesmo. A imagem, o canto deixam de ser artes tendo cada uma a sua via própria, independente das outras, para tornar-se formas variadas exprimindo, cada uma, de sua maneira, a idéia geral da igreja, universo transfigurado, prefiguração da paz futura. Esta via é a única onde cada arte, fazendo parte de um todo harmonioso, pode adquirir a plenitude de seu valor e se enriquecer infinitamente de um conteúdo sempre novo.
Esta harmonia que forma da igreja e do serviço divino um todo homogêneo realiza, em seu domínio próprio, esta “unidade na diversidade” e esta “riqueza na unidade”, que exprime, no seu conjunto e em cada um dos detalhes, o princípio de catolicidade da Igreja Ortodoxa.
Assim, a arte da Igreja é, pela sua própria essência, uma arte litúrgica. Não somente serve de quadro ao serviço divino e o completa, mas lhe é perfeitamente conforme. A arte sacra e a Liturgia não deixam de formar um todo, tanto pelo seu conteúdo como pelos símbolos servindo a exprimi-lo. A imagem decorre do texto, ela lhe emprega seus temas iconográficos e a maneira de exprimi-los.
A correspondência perfeita da imagem e do texto foi o princípio da arte sacra, desde os primeiros séculos do Cristianismo. Nas catacumbas e nas primeiras igrejas, não víamos nunca imagens de caráter anedótico ou psicológico. Tal como a Liturgia, elas unem a realidade mais concreta a um simbolismo profundo.
Esta arte é de concepção relativa e subjetiva; expressão de um estado de alma do artista e de sua piedade e não, como a arte litúrgica, transmissão objetiva da revelação. Ela reflete o mundo sensível e emocional, concebe Deus à imagem do homem. Não é mais a Igreja que ensina, mas antes a personalidade humana que impõe suas buscas individuais aos fiéis. O objetivo da arte religiosa é de provocar certa emoção. Ora, a arte litúrgica não se propõe emocionar, mas transfigurar todo sentimento humano.
Da mesma maneira, a concepção de beleza, na arte religiosa, é completamente diferente daquela da arte litúrgica. Para Igreja Ortodoxa, a beleza é o vestimento real do Deus triunfante: o Senhor reina, revestido de Seu esplendor (Sl. 92, 1). No plano humano, ela é o coroamento divino de uma obra, a correspondência da imagem ao seu protótipo. Ora, na arte religiosa, tanto como na arte profana, a beleza tem o seu valor nela mesmo; ela é o objetivo da obra. Não é mais a beleza no sentido ortodoxo da palavra, mas antes uma deformação desta beleza, abolindo na imagem do mundo decaído, indo por vezes até a imagem do mundo decomposto, Picasso, os surrealistas...).
A beleza de uma imagem é aqui algo de subjetivo, tanto para o artista que a cria como para o espectador que a olha. Na maneira de criar, como na maneira de apreciar, é a personalidade humana que se afirma, conscientemente ou inconscientemente. É o que comumente chamamos de “liberdade”.
Esta liberdade consiste numa expressão da personalidade do artista, de seu eu; a piedade pessoal, os sentimentos individuais, a experiência de tal ou tal pessoa humana passando antes da confissão da verdade objetiva da revelação divina. É, na realidade, o culto do arbitrário. Adicionemos que, numa imagem religiosa, esta liberdade se exerce às custas daquela dos espectadores: o artista lhe apresenta sua personalidade que se interpõe entre eles e a realidade da Igreja. Isto só pode provocar uma revolta, e o que estava destinado à piedade dos fiéis confirma os descrentes em sua impiedade. Um artista que, conscientemente ou inconscientemente, se engaja nesta via, é escravo de sua emotividade, de suas impressões sentimentais. A imagem criada por ele perde inevitavelmente seu valor litúrgico. Além do que, a concepção individualista da arte destrói forçosamente sua unidade e priva os artistas do laço que os une uns aos outros e à Igreja. A catolicidade cede o passo ao culto do pessoa, do exclusivo, do original.
Muito diferente é o caminho seguido pelo pintor litúrgico ortodoxo. É a via da submissão ascética, da oração contemplativa. A beleza de um ícone, ainda que compreendida por cada um daqueles que o olham de uma maneira pessoal, na medida de suas possibilidades, é expressa pelo artista objetivamente, segundo a recusa de seu eu, apagando-se diante da verdade revelada. A liberdade consiste na “liberação de todas as paixões e de todos os desejos deste mundo e da carne”, seguindo Simeão o Novo Teólogo (Sermão 87). É a liberdade espiritual, aquela que São Paulo fala: “lá onde está o Espírito do Senhor, lá está a liberdade” (II Cor. 3, 17). A qualidade litúrgica e espiritual da arte é proporcionada ao degrau de liberdade espiritual do artista. Esta via é a única que conduz a personalidade do artista à plenitude de sua importância real.
A tarefa do pintor de ícones e aquela do sacerdote tem muitos pontos em comum. Segundo São Teodoro o Eremita, por exemplo, “um compõe o Corpo e o Sangue do Senhor e o outro O representa”. Tal como o sacerdote, o iconógrafo tem o dever, em sua arte, de nos colocar diante da realidade, deixando a cada um a liberdade de reagir na medida de seus meios, seguindo seu caráter e as circunstâncias.
Outro ponto em que a arte litúrgica difere essencialmente da arte religiosa é a maneira com a qual trata a matéria. Ela segue, lá também, o princípio essencial da Igreja. A imagem do mundo transfigurado não saberia, antes de tudo, tolerar mentira alguma, pois que é o oposto da ilusão, a verdade por excelência. Eis porque a matéria, entrando em sua composição, deve ser autêntica. É necessário que seu tratamento seja conforme à matéria em questão e que, de seu lado, a matéria seja conforme ao emprego do objeto. É essencial que o objeto não dê ilusão de seu outra coisa que não é. Também, no ícone, o espaço está limitado à superfície plana da prancha e não deve dar a impressão artificial de ultrapassá-la.
Vemos então que o próprio princípio da criação na arte litúrgica é diametralmente oposto aquele da arte religiosa. Eis porque uma imagem religiosa pode ser interessante e útil em seu lugar, mas este lugar não é a igreja.
É no decorrer do período iconoclasta dos séculos VIII e IX que a Igreja formula claramente o caráter dogmático do ícone. Ao defender as imagens, não é somente o papel didático, nem o lado estético que defendia a Igreja Ortodoxa, mas a própria base da fé cristã: o dogma da Encarnação de Deus. Em efeito, o ícone de nosso Senhor é por vezes um testemunho de Sua Encarnação e aquele de nossa confissão de Sua divindade. “Eu vi a imagem humana de Deus e minha alma foi salva”, diz São João Damasceno (Primeiro Tratado pela Defesa dos Santos Ícones, capítulo 22).
De uma parte, o ícone testemunha, representando a Pessoa do Verbo encarnado, realidade e plenitude de Sua Encarnação: por outro lado, nós confessamos por esta imagem sagrada que este “Filho do Homem” é realmente Deus, a Verdade revelada. Assim, vemos junto de São Pedro que, o primeiro, confessa a divindade de Cristo, não por meio de um conhecimento humano natural, mas por uma conhecimento de ordem superior, seguindo a palavra de nosso Senhor: Bem-avenuturado és tu, Simão, Barjonas (filho de Jonas), porque to não revelou a carne e o sangue, mas Meu Pai, que estás nos Céus.” (Mt. 16, 17).
O impulso do homem a Deus, o lado subjetivo da fé, se encontra aqui com a resposta de Deus ao homem, um conhecimento espiritual objetivo, exprimido seja pela palavra, seja pela imagem. Assim, a arte litúrgica não é somente nossa oferenda a Deus, mas também a descida de Deus até nós, uma forma na qual se opera o encontro de “Deus com o homem, da graça com a natureza, da eternidade com o tempo”. As formas desta interpenetração do divino e do humano estão perpetuamente transmitidas e sempre vivas na Tradição.
A Tradição na arte litúrgica, tal como na própria Igreja, se baseia sobre duas realidades: um fato histórico de uma parte, e a revelação ultrapassando os limites do tempo de outra. É assim que a imagem de uma festa ou de um Santo reproduz o mais fielmente possível a realidade histórica e nos conduz ao seu protótipo, sem a qual não é um ícone. De lá, o poder das imagens de operar milagres, pois “os Santos, no dealbar de suas vidas, estavam cheios do Espírito Santo. Antes de sua morte, igualmente, a graça do Espírito Santo permanece perpetuamente em suas almas, em seus corpos sepultados, em seu aspecto e em suas santas imagens” (São João Damasceno). No caso onde uma semelhança física absoluta não soubesse ser atingida, a realidade histórica é exprimida por símbolos perfeitamente adequados. Eis porque a Igreja Ortodoxa não admite as imagens pintadas d'após um modelo vivo ou segundo a imaginação do artista. Tal imagem exprime somente, apesar de sua inevitável mentira, o fato de que São Pedro, por exemplo, seja um homem e a Santa Virgem, uma mulher. Os Concílios prescrevem pintar como pintavam os antigos iconógrafos. Existe, para este fim, coletâneas e manuais fixando os traços iconográficos de cada Santo.
Por outro lado, uma imagem sacra não representa simplesmente um acontecimento histórico ou um ser humano dentre outros; ela nos mostra o rosto humano deste acontecimento ou deste se humano, nos revela seu senso dogmático e seu lugar no encadeamento dos acontecimentos salutares da economia divina. As imagens de nosso Senhor e da Virgem, já a elas, liberam a plenitude desta economia.
Tal como o Evangelho, a arte sacra é lacônica. A Santa Escritura só consagra algumas linhas a este acontecimento que decidiram a história da humanidade. A imagem sacra igualmente nos mostra somente o que é essencial. Os detalhes, aqui e ali, só são tolerados quando indispensáveis e suficientes, como por exemplo, no relato e na imagem da Ressurreição, os panos que estavam sobre a terra e o lençol que havia sido posto sobre a cabeça de Jesus, não com os panos, mas dobrado num local a parte (João).
Mas, se o ícone ultrapassa os limites do tempo, não rompe suas relações com o mundo, nem se fecha nele mesmo. Os Santos estão sempre representados de face oi de ¾ ao espectador. Eles são quase que nunca vistos de perfil, mesmo até nas composições complicadas, onde seu movimento está dirigido ao centro da composição. O perfil, em efeito, interrompe de alguma forma a comunhão, ele é como um início de ausência. Nós o toleramos na representação de personagens que não adquiriram a santidade, como por exemplo, os pastores ou os magos no ícone do Nascimento de nosso Senhor.
Esta ausência de perfil é uma das expressões da relação íntima entre aquele que ora e o Santo representado. Na Igreja, onde a decoração, como falamos, não passa de uma reunião de ícones mais ou menos arbitrária, mas forma, de alguma sorte, um ícone geral da Igreja, a Liturgia, quer dizer, “Ação comum”, engloba a assembléia dos Santos representados e aquela dos fiéis, os Santos virados por vezes a eles e ao Senhor, como um objeto de oração e mediadores junto de Deus.
Se hoje cessamos de compreender a mensagem que o ícone nos traz, é porque perdemos a chave de sua linguagem. Esta chave é o sentido concreto e vivo da Transfiguração, idéia central do ensinamento cristão. Assim dizia um bispo russo do XIX século, Santo Ignácio de Briantchaninov, “o próprio conhecimento da capacidade do corpo humano a ser/estar santificado está perdido dentre os homens” (Ensaio ascético, primeiro volume).
O ícone é precisamente o testemunho deste conhecimento concreto, vivido da santificação do corpo humano, de sua transfiguração. Assim como a palavra, mas por meio de imagens visíveis, ele nos mostra a criatura penetrada e deificada pela graça incriada. “O homem, cuja alma tornou-se toda fogo, transmite igualmente ao seu corpo uma parte da glória adquirida interiormente, como o fogo material transmite seu ação ao ferro” (São Simeão o Novo Teólogo, Sermão 83).
Santo Ignácio Briantchaninov descreve este estado de uma maneira que nos é mais acessível: Deus, por uma força desconhecida, entranhando com ela o corpo... junto ao homem nascido à uma nova vida, não é somente a alma, nem o coração, mas também a carne se preenche de uma consolação e uma felicidade espirituais: a alegria do Deus Vivo...
Quando o homem ora verdadeiramente, cada um de seus membros clama: “Senhor, quem se iguala a Ti? Tu livras o pobre dos poderosos que o oprimem. Tu libertas o pobre e o indigente daqueles que atacam sua oração e sua esperança: os pensamentos e as sensações vindouras da natureza decaída e provocadas pelos demônios.”
Assim, o homem por inteiro toma parte à oração: o corpo, os sentidos, os sentimentos, são santificados pela graça. Sua dispersão habitual, “os pensamentos e as sensações que provêm da natureza decaída” fazem parte à uma oração concentrada, fundindo-se no impulso do homem inteiro a Deus. Nossos sentidos regenerados tornam-se outros. É este corpo humano transformado que está presente no ícone. Isto não quer dizer que o corpo humano se torne outra coisa além do que é. Ao contrário, o corpo permanece e guarda todas as particularidades físicas da pessoa. Mas a mudança de seu estado é representada pelos traços que, não sendo naturalistas, nos são geralmente incompreensíveis.
O ícone é então, como temos dito, um testemunho da deificação do homem, da plenitude da vida espiritual, uma comunicação pela imagem do que é o homem em estado de oração santificado pela graça. De alguma maneira, é uma pintura segundo a natureza, mas a natureza renovada, com a ajuda de símbolos. Ele é o caminho e o meio; ele é a própria oração. De lá, a majestade do ícone, a simplicidade, a calma do movimento, o ritmo de suas linhas e de suas cores que decorrem de uma harmonia interior perfeita.
Convém precisar que este estado de santificação não deve ser confundido com aquele de êxtase. Em efeito, o estado extático não é uma união da natureza humana com Deus, ele não transfigura a criatura. Ele é uma ruptura da alma com o organismo sensível (raptus), uma visão que chega por vezes ao debutante na vida espiritual. A medida em que o debutante crê na graça, sua natureza penetra-se inteiramente; ele não está mais tomado pela visão do mundo sobrenatural; ele “conhece desde aqui de baixo, desde a vida presente, o mistério de sua deificação” (São Simeão o Novo Teólogo, sermão 83, capítulo 3).
Somente os homens que, por excelência pessoal, conhecem este estado, podem criar tais imagens, revelando a participação do homem à vida do mundo transfigurado que ele contempla. E somente tal imagem, autêntica e convincente, pode nos comunicar seu impulso a Deus. Imaginação artística alguma, perfeição técnica alguma podem substituir aqui o conhecimento positivo “proveniente da visão e da contemplação”.
De tudo que precede, só nos resta pensar que somente os Santos podem fazer ícones. A Igreja não consiste somente de Santos. Nós todos fazemos parte dela pelos sacramentos e isto nos confere o poder, o direito, a audácia de andar nos passos dos Santos. Todo pintor ortodoxo vivendo na tradição pode fazer ícones autênticos. Isto explica as exigências da Igreja, no que concerne o lado moral da vida dos pintores de ícones. A pintura de ícones não é somente uma arte, é uma ascese cotidiana. Mas a fonte inesgotável que sacia a arte sacra é o Espírito Santo pelo intermediário da Igreja, pela contemplação dos homens, cuja oração foi santificada pela graça divina. Eis porque a Igreja Ortodoxa, dentre as diferentes ordens de Santos, Doutores, Mártires, etc... tem uma ordem de santos pintores de ícones canonizados por sua arte.
Em guisa de conclusão: A arte litúrgica é uma teologia inspirada, exprimida pelas formas, as linhas e as cores. Ela contém os três elementos que formam a religião cristã: o dogma, que ela confessa pela imagem, o ensinamento espiritual e moral, que ela traduz pelo seu sujeito e seu conteúdo, e o culto, da qual ela faz parte integrante.
Assim como nosso Senhor sobre o Monte Tabor mostra aos Discípulos a Verdade do século que há-de-vir e os faz participar no mistério da Transfiguração “na medida em que estavam capazes”, a arte litúrgica, colocando diante de nossos olhos a imagem desta mesma verdade do século que há-de-vir (o Reino de Deus vindo com sua força – Mateus), santifica todo nosso ser seguindo nossas capacidades.
Esquecendo a capacidade do corpo humano a ser santificado, chegamos a aplicar à arte sacra as mesmas medidas e as mesmas exigências que à arte profana, abaixando assim o sobrenatural ao humano. O homem decaído tornou-se a medida de todas as coisas, ele criou Deus à sua imagem no lugar de reencontrar no homem a imagem de Deus.
Se no tempo do Iconoclasmo dos séculos VIII e IX, na luta pela própria existência da imagem, é o dogma da Encarnação de Deus que era defendido, “Deus tornou-Se homem”, hoje é a realização da Encarnação: “Para que o homem se torne deus”, que está em jogo. O iconoclasmo de nossos dias, inconsciente sem dúvida, não é tanto uma negação da imagem, mas sua desfiguração, sendo até sua corrupção, uma incompreensão de seu valor dogmático e educador. A maioria do tempo, a imagem é considerada como coisa secundária; a palavra somente é julgada suficiente. Esquecemos que nosso Senhor não é somente o Verbo do Pai, mas também a Imagem do Pai e que, desde os tempos mais remotos, a missão da Igreja no mundo era exercida pela imagem como pela palavra.
Longe de ser para nós um objeto de deleitação estética ou de curiosidade científica, o ícone tem um sentido teológico muito nítido: da mesma maneira que a arte profana representa a realidade do mundo sensível e emocional, tal como visto pessoalmente pelo artista, ela representa a realidade do Reino que não é deste mundo, tal como nos ensina a Igreja. Em outras palavras, ela representa, com a ajuda de símbolos, deste mesmo mundo sensível e emocional, liberado do pecado, transfigura e deificado.
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