O PAPEL DE PALAMAS NO CENÁRIO DA ESPIRITUALIDADE ORTODOXA

por um sacerdote PIEDOSO



"O poder (de ver Deus), não tendo outros meios de agir, tendo ido além de todos os outros seres, se torna todo luz em si e semelhante àquela que vê; é unido sem mistura; sendo ele mesmo luz, e vendo a luz através da luz. Se olha para si mesmo, vê luz. Se olha para o objeto de sua visão, novamente vê luz. E se olha para o meio pelo qual vê, de novo vê luz. Isto é o que significa união. Tudo é tão uno que aquele que vê não pode fazer distinções entre os meios ou os fins ou o objeto. Ele está consciente apenas de ser luz e ver luz distinta de tudo que foi criado".
'Tríades' II, 3 - GREGÓRIO PÁLAMAS

Por volta do século XIV, Bizâncio havia se tornado uma sombra de sua antiga glória. Os Cruzados, fascinados com a riqueza de Constantinopla, que já estava se esvaindo, saquearam-na. Líderes eslavos criaram reinos temporários em suas territórios do norte, e os turcos invadiram a Ásia Menor vindos do leste. Dentro dos portões de Constantinopla, facções aristocráticas e nobres disputavam entre si para estabelecer uma ou outra linha dinástica. Comerciantes venezianos monopolizavam a economia mercantilista do império e jamais foram completamente desalojados. Mesmo quando o império mergulhou em direção ao seu esquecimento final, a Igreja Ortodoxa Grega libertou-se das instituições imperiais e começou a exercer sua independência dentro e sua influência além das fronteiras bizantinas. A igreja enfrentou desafios de um tipo diferente e emergiu deles como uma instituição mais forte e mais monástica. Coube a Gregório Pálamas ser o catalisador que emancipou a igreja de suas ligações políticas e cristalizou sua orientação espiritual.

Gregório Pálamas nasceu em 1296, em Constantinopla. Embora seus pais fossem nobres da Ásia Menor, repetidas invasões turcas forçaram-nos a fugir da capital imperial, onde seu pai se tornara um respeitável membro do senado. Durante sua infância e juventude, Gregório recebeu o melhor da educação tradicional, incluindo o 'trivium' e o 'quadrivium'. Embora o pai de Gregório morresse quando ele ainda era jovem, o imperador Andrônico II Paleólogo prometeu-lhe uma importante carreira no governo, e Gregório pareceu destinado a seguí-la. Em 1316, contudo, Teolépto de Filadélfia encorajou Gregório a adentrar na vida cenobítica, e, a despeito do apelo do imperador, Gregório decidiu tornar-se monge. Uma vez que como filho mais velho ele era responsável por toda a sua família, incluindo um grande número de servos, persuadiu sua mãe, irmãs e irmãos e muitos dos servidores de sua casa a ingressarem na comunidade monástica. A maioria entrou em mosteiros em Constantinopla, mas Gregório e seus irmãos seguiram para o Monte Athos, o centro do monasticismo cenobítico e eremítico, tornado independente do governo imperial por Andrônico II, em 1312. Morando perto do mosteiro de Vatopedi por três anos, Gregório mudou-se depois para o Grande Lavra, o centro religioso do Monte Athos.

Ali, seguia seriamente os métodos de meditação cultivados pelos grandes expoentes do 'hesicasma' (quietismo), incluindo Simeão, o Novo Teólogo. O ponto de vista de Simeão se tornou o de Gregório, que, como Simeão, preferiu uma vida de retiro e contemplação. Mas novamente como com Simeão, uma combinação de circunstâncias históricas compeliu Gregório a falar pelo que ele acreditava ser a quintessência do Cristianismo. Ele fez um relato sistemático sobre as convicções de Simeão e as tornou a base central da ortodoxia oriental. Sua vida pública começou quando ele decidiu fazer uma peregrinação à Terra Santa e ao Sinai. Embora os Cruzados houvessem sido rechaçados para fora do Mediterrâneo oriental, os governantes Muçulmanos eram razoavelmente tolerantes para com os peregrinos Cristãos, e os mais intelectuais dentre estes teriam discernido a influência das práticas Sufi sobre as dos hesicastas. Porém ele não pôde levar seu plano a cabo, e encontrou-se na Tessalônica, onde encontrou Isidoro, o futuro Patriarca de Constantinopla. Descobriu que Isidoro compartilhava de seu profundo sentimento de que a contemplação espiritual não era um privilégio de eremitas, mas uma necessidade para todos os fiéis a Cristo.

Ele foi consagrado sacerdote em Tessalônica e fundou um pequeno eremitério nas cercanias de Berroéia, permanecendo enquanto asceta por cinco anos. E, 1331 voltou para o Monte Athos porque as incursões nas proximidades de Berroéia tumultuaram a vida monástica. Retira-se para o eremitério de São Sabázio, logo acima do Grande Lavra, descendo para o Serviço Divino com os irmãos somente nas festas litúrgicas. Embora fosse indicado abade do grande mosteiro de Esfigmenou, seu zelo pela reforma chocou-se com as duas centenas de seus monges, e ele voluntariamente retornou para São Sabázio dentro de um ano. Logo, contudo, sua paz foi de novo perturbada por duas séries de eventos, uma teológica e outra política. Um calabrês de descendência grega chamado Barlaão chegou em Constantinopla e criou renome como filósofo. João Cantacúzenos, o 'Megas Domesticus' (Mordomo-Mor) de Andrônico III, indicou-o para uma cátedra na universidade imperial. Incumbiram-no de missões diplomáticas para junto da coorte papal de Avignon, e ele escreveu comentários sobre uma variedade de textos religiosos. Embora sendo inteiramente leal ao Cristianismo ortodoxo e um arguto crítico de sua contraparte latina, Barlaão ficara profundamente impressionado pelo humanismo secular em surgimento da Renascença italiana. Filosoficamente, sua crença na transcendência da Deidade levou-o a negar a possibilidade do conhecimento de Deus. Em virtude de seu temperamento, sentia-se repelido pelas práticas hesicastas que prometiam tal conhecimento. Ele argumentava que a meditação era inútil e que qualquer coisa que se pudesse saber do divino deveria vir de um estudo da Natureza.

Gregório reconheceu que o ponto de vista de Barlaão não era meramente uma proposição acadêmica sobre um tópico abstruso. Ela desafiava o cerne hesicasta da ortodoxia e minava o conceito de deificação ardorosamente ensinado por Simeão. Embora Gregório tivesse aconselhado contra práticas meditativas empreendidas sem  orientação reconhecida, ele defendeu a meditação, reafirmou a possibilidade de experiência direta do Divino e sustentava que o estudo da Natureza era adequado, mas que jamais poderia fornecer direção para a realidade espiritual. Se Gregório era cauteloso contra tudo que pudesse alimentar atitudes seculares, ao mesmo tempo Barlaão entendera mal a natureza do hesicasma. Embora os monges do Monte Athos apoiasssem solidamente Gregório, e Barlaão decidisse voltar para a Itália, a disputa continuou e poderia ter permanecido indecisa, não fosse por uma estranha concatenação de eventos políticos.

O imperador Andrônico III morreu quatro dias depois de presidir os debates conciliares que, em 13421, decidiram a favor de Gregório. Uma vez que seu filho, João V, era menor, sua esposa, Ana de Savóia, se tornou regente. Ela não poderia manter um equilíbrio entre o 'Megas Domesticus' João Cantacúzenos, que apoiava Gregório, e o patriarca João Cálecas, que alinhara-se com os seguidores de Barlaão. Depois de João Cantacúzenos ter assegurado a aprovação imperial para a decisão conciliar, ele foi destituído pelo patriarca e um grupo de nobres. Gregório permaneceu leal a Ana como regente, mas condenou abertamente o golpe palaciano. Em 1343 o patriarca viu o caminho livre para prender Gregório sob acusação de heresia e, quando Gregório recusou-se a mudar sua posição, excomungou-o. Embora Ana temesse que Gregório  fosse um adversário político, ela o respeitava como teólogo e considerava intolerável a arrogância do patriarca. Enquanto João Cantacúzenos dava andamento a uma guerra civil contra o trono, Ana tramava contra o patriarca. Em 1347 ela convocou um concílio que depôs o patriarca, e João Cantacúzenos subiu ao trono, governando em nome de João V. Gregório foi consagrado arcebispo de Tessalônica, e João Cantacúzenos indicado Palamita pelo patriarca, inaugurando assim uma tradição que perdurou por anos e por fim transformou a espiritualidade monástica no ponto de vista eclesiástico. Quando João Cantacúzenos abdicou em favor de João V, em 1364, ele já era uma venerada autoridade religiosa. Ele se tornou  monge e com o  nome de Josafá fez muito para separar a igreja do império. Quando o império colapsou no século XV, a igreja pouco foi afetada e através dela a civilização bizantina continuou a exercer uma poderosa influência.

Gregório era bem-quisto em Tessalônica, pois ele combatia a injustiça social de todo o tipo, incluindo as taxas impostas pela capital. Uma vez, quando viajava para Constantinopla para apelar ao imperador, ele era passageiro de um navio que foi capturado pelos turcos. Ele passou um ano em agradável cativeiro, debatendo posições religiosas com o filho do emir Orkhan, na esperança de que "logo viesse o dia em que poderíamos entender um ao outro". Embora cidadão leal de Bizâncio, Gregório claramente distinguia entre a igreja bizantina, cujas verdades eram eternas, e o estado bizantino, que era temporal. Quando foi libertado, voltou a Tessalônica, onde morreu em 27 de novembro de 1369. Ele foi canonizado pelo patriarca Filoteu, seu amigo e antigo discípulo, e até hoje ele só é menos venerado que Demétrio, o santo padroeiro da cidade.

Os tratados de Barlaão contra as posições mantidas pelos monges desde o tempo de Simeão não eram simplesmente inovações filosóficas - eles traziam para a superfície ambigüidades e tensões que existiam desde muito antes de Simeão. Gregório entendeu que a crítica de Barlaão forçava o reconhecimento e a resolução de atitudes e concepções incipientes que tanto os monges como as autoridades eclesiásticas preferiam ignorar. A natureza da Cristandade oriental estava em cheque e talvez só Gregório tenha percebido quão grandes eram os riscos. A crítica de Barlaão das práticas místicas era baseada sobre uma visão Aristotélica de que todo o conhecimento é derivado da experiência sensível. Dado que Dionísio Areopagita havia ensinado que o conhecimento de Deus está completamente além da experiência sensível e que a Deidade é incognoscível, Barlaão argumentava que a iluminação mística associada à mais alta deificação não poderia constituir conhecimento de Deus. Se tivesse algum valor enfim, era só simbólico; dado que Barlaão havia testemunhado as práticas hesicastas, ele duvidava que houvesse algo mais que indulgência psíquica na oração do coração.
Embora Gregório se opusesse à aplicação de métodos filosóficos à busca religiosa, ele proferiu suas respostas muito cuidadosamente. Ele sabia que a igreja não poderia aceitar uma concepção do conhecimento exclusivamente sensória sem destruir a visão hesicasta da deificação, mas ele via também que os monges tinham uma idéia obscura a respeito do conhecimento de Deus. Ele leu as obras de Barlaão com cuidado e viu, ironicamente, que Barlaão, o empírico filosófico, não tinha conhecimento algum de primeira mão sobre a meditação. Ele confundira técnicas preliminares - como o controle da respiração - com toda a prática e sustentava que concentrar a mente no coração era equivalente a atar a alma ao corpo. Em nome de Platão ele advogara uma tensão quase maniqueísta entre alma e corpo, bem e mal. Gregório respondeu explicando os propósitos dos exercícios contemplativos. "Consideramos como um mal", escreveu ele, "para a mente misturar-se às vontades da carne, não sendo errado para a mente estar no corpo, pois o corpo não é mau". Gregório rejeitava a noção de matéria pecaminosa, concordando com Simeão que a Queda de Adão no Jardim do Éden (e não sua corporificação física) liberara uma tendência a pecar na humanidade.

"Portanto lutamos contra esta lei de pecado, banimo-la do corpo e estabelecemos ali a mente como um bispo. Doravante estabelecemos leis para cada poder da alma e para cada membro do corpo como lhes for apropriado. Para os sentidos prescrevemos o que eles devem receber e em que medida, e esta prática da lei espiritual é chamada de autodomínio. Nós levamos a parte desejosa da alma para aquele estado excelentíssimo cujo nome é amor. Nós melhoramos a parte mental banindo dela tudo o que impede a mente de voar para Deus, e a esta parte da lei espiritual chamamos sobriedade".

Para Gregório a verdadeira morada da mente é o coração, que não é nem um vaso para ela, nem algo a ela ligado, mas seu órgão ou correspondente funcional no corpo físico. "Assim o coração é a câmara secreta da mente e o primeiro órgão físico do poder mental". Se a alma fizesse uso adequado da mente, deveria ser afastada de suas distrações e difusão pelo corpo e levada a uma condição de 'prosoche', atenção. Este é o objetivo de sentar calmamente, contando as respirações e focalizando a atenção no coração - e não no umbigo como Barlaão alegara quando tentara mostrar que os monges eram 'omphalopsyches'  (almas umbilicais) errantes, que acreditavam que a alma está no umbigo. Só quando se atinge uma atenção real a oração no coração será eficaz.

"Tudo isso é natural para aqueles que são avançados no silêncio, pois quando as almas entram completamente em si mesmas, tudo isso ocorre natural e necessariamente, sem esforço ou cuidado especial. Mas para os iniciantes nada disso é possível sem um esforço estrênuo".

Tendo desfeito as más concepções de Barlaão a respeito da natureza da meditação, Gregório enfrentou a formidável tarefa de clarificar seus objetivos e resultados. A todos os indivíduos que receberam o batismo no espírito correto foi prometida a possibilidade do conhecimento de Deus, embora poucos, talvez, jamais tenham desejado isso e menos ainda o tenham conseguido. A deificação é a experiência direta do Divino, do se tornar uno com Deus, quando a alma emancipada usa a mente uni-direcionada liberta das amarras do corpo para voar até sua morada espiritual. O protótipo desta experiência era a Transfiguração, quando Jesus se tornou radiante com a Luz interior diante dos discípulos no Monte Tabor. Uma vez que Deus é transcendente, argumentara Barlaão, sua luz não seria visível a olhos terrenos. Os discípulos não poderiam ter visto o Divino no Monte Tabor, e assim sua visão era simbólica. Gregório queria tanto quanto qualquer hesicasta estabelecer uma nítida distinção entre o Criador e a criação, mas ele rejeitava uma interpretação da Transfiguração que pudesse fazer da deificação nada mais que um evento simbólico promissor de alguma glória futura. Para Gregório, assim como para Simeão, contemplar a Luz é contemplar o Divino. Não é simbólico no sentido comum - como quando se diz que a vida Cristã individual é um símbolo do Cristo crucificado; nem é mesmo um símbolo no sentido mais profundo do termo como usado por Máximo o Confessor, quando disse que Cristo na cruz é um símbolo do corpo humano. Ver a Luz é uma experiência direta da união mística: o ser humano deificado entra na Presença Divina agora nesta vida, não apenas em algum período pós-morte.

Para Gregório, a teologia apofática - discutir Deus através da negação - havia franqueado a si mesma para a acusação de contradição feita por Barlaão, porque era insuficientemente vigorosa. De fato a Deidade transcende a afirmação, mas transcende igualmente a negação. Barlaão via no conhecimento de Deus revelado pela graça meramente uma tentativa de garantir o conhecimento como aquele provido pelos sentidos mas inacessível a eles. O conhecimento divino não é, de acordo com Gregório, meramente uma outra ciência com critérios especiais de acessibilidade - não é 'gnose', conhecimento, mas 'enose', união ou assimilação. A alegada contradição entre a transcendência da Deidade e a deificação do ser humano é de fato uma verdade dialética, cujas duas metades devem ser entendidas simultaneamente.

"Deus se rejubila por toda a eternidade na sublimidade de Sua glória... Deus vive nesta glória que é Sua própria, intrínseca a Ele, em felicidade perfeita acima de toda glória, não necessitando de testemunhas, incapaz de formular nenhuma divisão... Mas Ele invoca Suas infinitas perfeições e as revela em Suas criaturas. Sua glória é resplandecente nos poderes celestes, refletidos no homem, revestindo o mundo visível com um traje de magnificência".

Gragório ensinava que a Deidade é completamente incognoscível em sua essência, 'ousia', mas cognoscível em sua atividade divina, 'energeiai'. Embora o indivíduo comum testemunhe a bondade, a sabedoria, a majestade e a Providência, a atividade divina não é subdividida de qualquer modo, pois a Deidade está completamente presente em cada ação.

Nenhuma distinção filosófica pode capturar esta realidade dialética, pois um mundo embebido de ação divina está além de qualquer compreensão baseada nos sentidos. Quando o corpo é purificado, a mente focalizada e a alma cheia de amor, todo o indivíduo é tornado um com a ação divina e conhece a deidade super-racionalmente. Isto é possível porque "a essência da mente é uma coisa e sua atividade é outra... A mente não é como o olho, que vê todas as coisas visíveis mas não vê a si mesmo". A mente pode ver a si mesma, e quando se sintoniza completamente com a Deidade, se torna a divina 'energeiai' e a sustenta como Luz dentro de si mesma. Este é o motivo de Gregório preferir a injunção Mosaica "Entra em ti mesmo" do que a Délfica "Conhece a ti mesmo". O que permanece como um paradoxo filosófico insolúvel é uma realidade existencial para aquele que se preparou para a deificação. A graça divina não é mera salvação de um futuro inimaginavelmente miserável, mas a solução deste paradoxo.

Gregório refutou com sucesso o ponto de vista de Barlaão porque amava sua tradição religiosa o bastante para alinhar-se ao seu lado mesmo com grande risco para si mesmo e, mais ainda, porque ele amava tanto a verdade que enfrentou destemidamente os problemas latentes em suas formulações. O monge que preferira o eremitério à vida pública descobriu a si mesmo centro de grandes controvérsias. Ao resolvê-las através da fria argumentação do ponto de vista hesicasta, ele trouxe uma nova claridade e foco para os traços distintivos do Cristianismo oriental, que duram até hoje.

"Em uma palavra, devemos procurar um Deus em quem possamos participar de um modo ou de outro, de modo que participando, cada um de nós, do modo próprio a cada um e pela analogia da participação, possamos receber existência, vida e deificação".

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