A TRANSFIGURAÇÃO NA SOMBRA

PAGEAU Jonathan 
tradução de monja Rebeca (Pereira)



No ano passado, uma cliente me pediu para esculpir um grande ícone da Transfiguração. Ela disse: "Estou curiosa para ver como você fará isso". Entendi imediatamente o que ela queria dizer, e seu comentário, para mim, tocou no cerne do que a escultura de ícones tenta abordar. Grande parte da teologia ortodoxa, especialmente desde São Gregório de Palamas, tem sido uma teologia da luz, a questão da luz incriada. A transfiguração, tanto como um evento nas escrituras ou na escritura do ícone, estava profundamente envolvida para São Gregório e o debate da época. Com a vitória dos hesicastas, vemos uma nova ênfase na transfiguração, especialmente no desenvolvimento de mandorlas complexas.

E nesse sentido, muitas das convenções do ícone, como ouro, auréolas e realces em figuras, passaram a ser compreendidas cada vez mais explicitamente no contexto da luz incriada. Não dizemos, no uso comum, que os ícones são janelas para o céu, teologia em cores?

Ora, a escultura não é uma arte da luz. Em vez disso, é uma arte da sombra. A escultura usa o contraste da forma para criar sombras através das quais a imagem aparece. Então, talvez possamos pensar que algumas das críticas enfrentadas aos ícones esculpidos na tradição ortodoxa têm uma raiz nisso. Uma das minhas alunas ouviu do seu padre que ela não deveria frequentar a minha oficina de escultura de ícones porque a escultura de ícones não era ortodoxa; em vez disso - ele prossegue - deveria aprender vitral... Estou segurando minha inteligência com as duas mãos neste momento, garanto a vocês.

Mas o que é fascinante nessa questão é que, na Bíblia, existem realmente dois aspectos da Glória de Deus: um lado luminoso e um lado obscuro. O Padre Andreas Andreopoulos, em seu livro Metamorfose: A Transfiguração na Teologia e Iconografia Bizantinas, é o primeiro, até onde sei, a lidar diretamente com a questão de dois aspectos da glória de Deus. Entre outras coisas, ele fala sobre como alguns estudiosos separam a noção de glória em dois aspectos, que ele enquadra como luz e espaço. Esses dois aspectos, é claro, surgem da observação de como a glória (kabod) aparece especialmente no Antigo Testamento, como às vezes é apresentada como luz, enquanto outras vezes (e talvez até na maioria das vezes) é apresentada como uma nuvem escura, um peso, uma sombra que encobre. O exemplo mais óbvio é quando Salomão dedicou o Templo. 

E aconteceu que, ao saírem os sacerdotes do lugar santo, a nuvem encheu a casa do Senhor, de modo que os sacerdotes não podiam ficar de pé para ministrar por causa da nuvem, porque a glória do Senhor havia enchido a casa do Senhor. Então Salomão falou: O Senhor disse que habitaria nas trevas. 1 Reis 8-12

Isto também é verdade no Novo Testamento; observe, por exemplo, como quando o Arcanjo anuncia à Mãe de Deus, ele exclama: "O poder de Deus Te cobrirá com a Sua sombra" (Lucas 1:35), literalmente para lançar uma sombra sobre você, ou figurativamente para envolver, cobrir você. Às vezes, essa noção de glória pode ser "luz/imaterial" e "escura/densa" ao mesmo tempo; o exemplo mais interessante está relacionado à história de quando Moisés desceu do Monte Sinai e seu rosto foi transformado. A tradução mais comum hoje é que "Moisés não sabia que a pele do seu rosto brilhava enquanto falava com Ele". Mas São Jerônimo, em sua Vulgata, em vez de traduzir a palavra hebraica QRN (קָרַ֛ן) para brilhante, ele a traduz para a palavra latina para "chifrudo". Isso deu origem a algumas imagens surpreendentes na iconografia ocidental, onde Moisés é representado com chifres na cabeça.

Muitos criticaram essa tradução, mas o hebraico QRN de fato denota chifres, por exemplo, nos quatro cantos do altar, e parece ser um cognato e compartilhar a mesma raiz até mesmo para a palavra inglesa "horn" (compare o latim "cornu", o francês "corne" e o grego "karnon"). Mas QRN também pode denotar raios que saem de algo e é por isso que tem sido frequentemente traduzido como radiância. Então, qual é? A glória de Deus é luz/raio/imaterial ou escura/densa/espacial? Claro que a resposta é ambos e nenhum, mas isso é um paradoxo, uma aporia que visa apontar para a qualidade inefável, mas também imediata, de tudo o que é Divino.

Na narrativa da Transfiguração, os dois aspectos da glória são colocados um ao lado do outro. Em todos os três relatos, há duas etapas na manifestação da glória. Primeiro, o rosto de Cristo brilha com luz e Suas vestes se tornam brancas. Segundo, surge uma nuvem que cobre e encobre os presentes. Essa dupla manifestação aparece especialmente no Evangelho de Mateus, onde o paradoxo é aproximado. Depois de dizer: "Ele foi transfigurado diante deles; e Seu rosto brilhou como o sol, e Suas vestes tornaram-se brancas como a luz", prossegue dizendo: "Enquanto ele (Pedro) ainda falava, uma nuvem luminosa os cobriu".

O uso da palavra "brilhante" em contraste imediato com a palavra "cobrir" une os dois aspectos da glória em uma experiência plena e total da Divindade encarnada.
Mas como representamos isso em imagens? Em seu livro sobre a Transfiguração, o Padre Andreas faz um bom trabalho ao expor a questão básica da glória e como a tradição desenvolveu diferentes formas de mandorlas por diferentes razões. Recomendo seu livro a qualquer pessoa interessada, mas, ao enquadrar os dois aspectos da glória como simplesmente luz versus espaço, creio que ele perde grande parte da profundidade dessa questão. A melhor maneira, em minha opinião, de enquadrar os dois aspectos da glória de Deus é mostrar e ocultar – luz e escuridão – dois lados do paradoxo contido em "revelar". Embora em nosso discurso teológico falemos principalmente de luz incriada, em nossa prática litúrgica ainda temos a tendência de cobrir, envolver, velar as coisas sagradas. Acredito que isso tenha a ver com a inevitável aporia de tudo o que manifesta Deus. Há muitos anos acredito que isso esteja relacionado à escultura de ícones, não apenas à escultura de ícones, mas à arte em geral, e muitos dos meus artigos anteriores testemunham isso em minha discussão constante sobre as vestimentas de pele como uma "cobertura" suplementar.

Parece-me claro que na arte cristã primitiva há um forte senso dessa dualidade de glória, e isso transparece em algumas distinções visíveis entre a imagem bidimensional e a imagem em relevo. Na arte pré-iconoclasta que temos, vemos que em muitas das imagens esculpidas, em vez de uma aureóla, imagens esculpidas de Cristo ou dos santos são representadas com uma concha de vieira sobre ou atrás da cabeça.

Assim como a auréola, a concha é um antigo motivo pagão convertido pelos cristãos, mas para entender completamente o uso da concha, temos que compreender sua função arquitetônica, que está relacionada à abside ou nicho, e veremos a concha esculpida ou às vezes pintada com uma vieira no formato de meia cúpula de um nicho.

O uso da concha sugere um simbolismo muito poderoso que não poderíamos esgotar em um post de blog, mas basta dizer que a concha é uma cobertura rígida que protege e oculta a vida (ou a pérola) em seu interior. A vieira, em particular, também é composta de "raios" que se movem do centro interno para a periferia externa, sendo, portanto, uma imagem particularmente apropriada para manifestação. No nosso caso, o mais interessante é como a concha, diferentemente da aureóla, que é um círculo de luz, aparece muito mais como uma cobertura que existe no espaço e, portanto, se relaciona com a escultura e a arquitetura (mesmo quando pintada).

O uso da concha encontraria uma vida mais longa no Ocidente, onde o uso básico de raios recortados aparece em muitas esculturas carolíngias em marfim e na cruz de Gero. Aqui, o interessante é como o motivo da vieira foi abstraído e unido ao círculo da auréola pintada. Nisso, torna-se uma imagem muito potente.

O motivo da vieira se tornaria mais raro à medida que a Idade Média avançava, mas reapareceria na arte católica mais tarde como um motivo arquitetônico novamente.
Há um uso bizantino interessante e eficaz dessas formas: a famosa igreja de Cristo Salvador em Chora, onde as cúpulas têm raios recortados que sugerem esse antigo simbolismo.

Assim, ao refletir sobre uma Transfiguração esculpida, pareceu-me natural integrar esse simbolismo antigo para enfatizar a própria escultura e sua realidade densa/sombria. Mas a referência à vieira na glória que desenvolvi é estilizada e abstrata, muito parecida com as auréolas esculpidas ocidentais posteriores que examinamos. Nas estruturas, também me refiro simultaneamente a outros aspectos da mandorla, como os diferentes passos da manifestação que levam a um centro escuro, representado na escultura como um círculo arredondado sem os raios da vieira, sugerindo, em vez disso, a própria pérola. Também adicionei raios dourados para criar uma roda de 8 raios (com a cabeça de Cristo como o 8º raio, referindo-se ao 8º dia).

Gostaria de sugerir uma última reflexão. Sabemos que é por uma boa razão que a teologia ortodoxa se preocupa principalmente com a questão da luz. Esperamos, porém, que a escultura de ícones, as relíquias, os véus, as rizas e outras manifestações do outro lado da revelação ajudem todos nós a participar mais plenamente da aporia do infinito no finito, que é o mistério do próprio Cristianismo.


 

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