Por meio do jejum, percebemos que pertencemos ao corpo de Cristo - parte 1

LIMASSOL Atanasios, Metropolita
tradução de monja Rebeca (Pereira)




Assim como qualquer trabalho espiritual, jejuamos para nós próprios, e não por Deus — no sentido de que Deus não precisa disso; é o homem que é curado, porque não é Deus quem está doente, mas o homem enfermo. O homem enfermo é aquele que está atento à cura, na medida em que se reconhece enfermo em virtude de suas próprias paixões e pecados.

Os Padres dizem que o primeiro mandamento que Deus deu ao homem foi um mandamento para jejuar. Quando Deus disse a Adão e Eva que poderiam comer de todas as árvores do Paraíso, exceto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, isso não era nada mais do que uma ordem para jejuar. Em outras palavras, Deus não permitiu que o homem comesse de uma árvore específica — ele deveria se abster dela para observar o mandamento de Deus.

A essência da violação do mandamento, pelo menos em sua forma prática, é a violação do jejum que Deus impôs ao homem. Portanto, no tropário cantamos que, ao comer do fruto proibido, o diabo conduziu o homem para fora do Paraíso, enquanto Cristo o conduz novamente ao Paraíso através da Árvore da Cruz.1 O próprio Cristo, ao tornar-Se Homem por nós, também nos dá um exemplo, jejuando quarenta dias e noites no Deserto do Jordão, para onde o Espírito Santo O havia conduzido. Nessa atmosfera desolada, em silêncio, em jejum e labores, o Senhor derrota o diabo que a Ele se dirige por meio de três grandes tentações.
Portanto, vemos que, em sua forma prática, o jejum é um mandamento divino, e o primeiro mandamento de Deus. Sua violação levou à expulsão do homem do Paraíso, mas Cristo, o Novo Adão, inicia Seus ensinamentos, Sua pregação e ministério público com o jejum — deixando assim, Seu próprio exemplo.

Deixe-me contar uma história engraçada. Certo dia, vários padres da Santa Montanha e eu estávamos viajando de ônibus  desde Ouranoupoli até Thessaloniki. Dois padres do Skete de Kavsokalyvia  estavam sentados na minha frente; um era um pouco mais moderno, digamos, enquanto o outro não saía da Montanha Sagrada há muitos anos. Ambos eram pessoas tradicionais e simples, aderindo ao velho calendário de uma forma bastante fanática. A viagem já durava três ou quatro horas, e um ofereceu ao outro alguns doces. Um perguntou ao outro:

“Não leva laticínios?”

“Pegue, abençoado! Laticínios? Que laticínios? Coma, não tem nada aqui.”

Para o pesar do outro monge, ele pega e lê os ingredientes. Haviam vários ingredientes ali, e dizia que o doce continha 0,01% de subprodutos lácteos — algo assim. A atmosfera no ônibus tomou novos contornos: gritos, berros, discussões, um escândalo - alguém quebrou o jejum por causa de um centésimo de um por cento de subprodutos lácteos...

Muitas pessoas se aprofundam demais nessa questão, e se ela vem de um bom pensamento sobre akrivia (isto é, de um desejo de rigor) - isto é bom. Mas não devemos ser excessivamente escolásticos, porque não devemos dar às pessoas de fora da Igreja a impressão de que a coisa mais importante que nos preocupa é se há uma gota de óleo vegetal, em vez de olhar realisticamente para a essência e o significado do jejum.

E o que é importante é que, por meio do jejum, o homem recebe a consciência de que pertence ao Corpo da Igreja. A Igreja, como um corpo, como um todo dos fiéis reunidos, jejua neste período e desta forma. Isso nos dá a sensação de que pertencemos ao Corpo da Igreja, obedecendo a este mandamento da Igreja. Se pertencemos ao Corpo da Igreja, significa que já somos membros deste Corpo, e o que todo o Corpo faz, nós também fazemos.

Houve muitos na Igreja que morreram enquanto mártires, isto é, suportaram tormentos terríveis e morreram porque se recusaram a violar o jejum, e nem sequer foram obrigados a renunciar a Deus, mas apenas a desistir do jejum, a quebrar o Jejum. Houve também casos em que Deus salvou milagrosamente Igrejas inteiras, cidades, etc., quando os pagãos que governavam naquela época queriam profanar de qualquer forma o povo de Deus que estava jejuando. Assim, no primeiro sábado da Grande Quaresma, celebramos o milagre de São Teodoro de Tiron, que milagrosamente interveio e protegeu o povo de Deus (os cristãos) da profanação de alimentos que o imperador queria cometer, a fim de dar um golpe em sua consciência e bons costumes.

Veja, muitas vezes o critério de muitas coisas na Igreja não é tanto se algo está ou não de acordo com as regras da Igreja. É muito mais importante se o resto das Igrejas Ortodoxas reconhecem ou não essa ação. Em outras palavras, é importante para nós que, por exemplo, tenhamos comunhão com todas as Igrejas Ortodoxas. É isso que os pobres Velhos Calendaristas não entendem — que é importante pertencer ao Corpo da Igreja, e não proteger, por assim dizer, certas regras que considera estar de acordo com sua vida.

Mas cismáticos, como os velhos calendaristas, embora não tenham dogmas incorretos, pelo menos na teoria de suas vidas, não concelebrarão; eles não serão recebidos por outras igrejas que aderem ao calendário antigo, como a igreja em Jerusalém, na Santa Montanha, na Rússia, e assim por diante, que não concelebram com os antigos calendaristas da Grécia e do Chipre. Em teoria, essas pessoas têm a mesma fé, mas na prática elas se separaram do Corpo da Igreja; elas a rejeitaram como hereges e criaram sua própria igreja que acredita no mesmo que nós. Eles querem parecer mais rigorosos e tradicionais do que nós, mesmo nos detalhes, mas, apesar disso, eles não têm comunhão com o resto da Igreja. Portanto, sua situação, bem como sua salvação, é muito problemática.

O que significa renunciar à vontade? Entre outras coisas, significa que se renunciares à sua vontade nesta questão simples, e neste caso específico, aceitar a vontade da Igreja, então ainda mais aprenderás a renunciar à sua vontade diante de seu irmão, diante de seu cônjuge, seu filho, e ainda mais diante da vontade de Deus. Quando nossa vontade, tendo amor-próprio e muitas outras coisas nela, colide com a vontade de Deus, então, naturalmente, deve ser exterminada; ela deve recuar para que possamos aceitar a vontade de Deus, que é expressa nos mandamentos de Deus.

Alguns podem dizer: "Mas eu não entendo por que é pecado". Eles não entendem. De fato, como você sabe, existem alguns atos que são pecado para a Igreja, mas é difícil para alguém entender por que exatamente eles são pecaminosos; qual, em outras palavras, é a essência do pecado neste ato específico? Como ainda são espiritualmente imaturos e não têm muito discernimento, essas pessoas devem aceitar que é o suficiente para elas se Deus definir algo como pecado. Quando Deus diz: "Não minta, não roube, não cometa adultério, não cobice a propriedade do seu próximo, não tome o Nome de Deus em vão, honre seus pais", então, mesmo que ainda não entenda a essência do pecado, deve pelo menos tomá-lo como dado a princípio: se Deus diz e define como pecado, então é um pecado, uma queda e uma ruptura na conexão com Deus.

“Mas por que é pecado se eu não perturbo ninguém, se tenho efeito em alguém, se gosto e não incomodo ninguém?”

E, de fato, deves responder-lhe sobre a essência do pecado neste determinado ato, mas como alguém que acabou de entrar na Igreja pode entender isso?

Para entender isso, deves entender certas coisas primeiro. Assim, comecemos pelo fato de  Deus ter dito: Este ato é um pecado, e Ele não o abençoa. Siga o que foi dito e verás aonde isso o leva, a que conexão com Deus isso o levará. E então, se cometeres este ato e quebrares tua conexão com Deus, entenderás experimentalmente a essência do pecado que o afasta de Deus por meio deste ato, e quão prejudicial ele é.

O jejum que a Igreja nos oferece não é a perfeição das virtudes, mas apenas o primeiro passo; uma grande luta é necessária para que um homem alcance a perfeição. Este é o primeiro: renunciar à vontade própria em relação a essas coisas. O que significa "não quero comer esta comida, quero comer outra coisa"? Queira ou não, não vais comer a outra comida. Não podes comê-la, meu caro. Tens ai a oportunidade de renunciar à vontade própria, o que naturalmente o ajuda em seu relacionamento com Deus e com os outros, e ao mesmo tempo desenvolve a humildade. Quando um homem renuncia à sua vontade própria, ele se humilha na prática, ele recua e então começa a lutar, para entender o quão grande é ser humilde e aceitar a vontade do outro em sua vida, e ainda mais a vontade de Deus.





Comentários