SIGNIFICADO DA GRANDE QUARESMA - PARTE II

                             Extraído do Livro “The Lenten Triodion”, 
                   pelo arquimandrita Kallistos WARE e Madre Mary, 
Faber and Faber, Londres, 1978 


2. Desenvolvimento histórico da Grande Quaresma1

A Quaresma, como existe hoje na Igreja Ortodoxa, é o resultado de um longo desenvolvimento histórico, do qual não mais que um breve sumário pode ser oferecido aqui2. A porção do ano litúrgico coberta pelo Triódio de Quaresma cai em três períodos:

Período pré-quaresmal: três domingos preparatórios (Domingo do Fariseu e do Publicano; Domingo do Filho Pródigo; Domingo do Julgamento Final), seguidos por uma semana de jejum parcial, terminando com o Domingo do Perdão.

Os 40 dias da Grande Quaresma, começando na segunda-feira da primeira semana (ou, mais exatamente, nas Vésperas de Domingo à noite), e acabando na Nona Hora de sexta-feira da sexta semana.

Semana Santa, precedida pelo Sábado de Lázaro e do Domingo de Ramos.

O terceiro destes três períodos, o jejum Pascal da Semana Santa é o mais antigo, pois já existia durante o segundo e terceiro séculos. O jejum de quarenta dias é mencionado em fontes da primeira metade do quarto século em diante. O período pré-quaresmal foi o desenvolvido mais tardiamente de todos: as primeiras referências a uma semana preliminar de jejum parcial estão no sexto e sétimo séculos, mas a observância dos três outros Domingos Preparatórios não se tornaram universais no Oriente até o décimo ou décimo primeiro século.

(1) O jejum Pascal no segundo e terceiro séculos. No segundo século era costume dos cristãos tanto do oriente como do ocidente observar, imediatamente antes do Domingo de Páscoa, um curto período de um ou dois dias de jejum, ou no sábado apenas ou na sexta-feira e sábado juntos3. Isto era especificamente um jejum Pascal de preparação para a noite de Páscoa. Era um jejum de pesar pela ausência do Noivo, em cumprimento às próprias palavras de Cristo: “Dias virão, porém, em que o noivo lhes será tirado; e então jejuarão naquele dia” (Mc 2, 20). O jejum, se de um ou de dois dias, era em princípio total, sem qualquer comida ou bebida tomada.

Pela metade do terceiro século, este jejum Pascal foi, em muitos lugares, estendido para abarcar a semana inteira de segunda a sábado. Não havia, entretanto, nenhuma uniformidade de prática, e alguns cristãos jejuavam mais que os seis dias inteiros. Apenas alguns poucos conseguiam manter um jejum total durante o período inteiro. Em alguns lugares, era a prática comer pão e sal, com água, na nona hora (15:00 h) nos quatro primeiros dias de segunda à quinta, e então, manter, se possível, um jejum total na sexta e no sábado; mas, nem todos os fiéis eram tão rigorosos assim. Os seis dias do jejum Pascal podem ser vistos como as distantes origens da Semana Santa; mas, o ritual desenvolvido ao qual estamos acostumados, com comemorações especiais para cada dia da semana, não é encontrado senão pelo fim do século IV4. Durante o período pré-Niceno parece ter havido uma celebração única da morte e Ressurreição de Cristo, considerada como um mistério único, a vigília Pascal durando de sábado à noite até a manhã do Domingo de Páscoa. A sexta-feira era mantida como um dia de jejum de preparação para esta vigília, mas ela ainda não havia se tornado uma comemoração da Crucifixão, específica e distinta; a Cruz e a Ressurreição eram comemoradas juntas durante a noite de Páscoa.

(2) Os 40 dias de jejum. Não havia nenhuma evidência de um período de 40 dias de jejum na época pré-Nicena. A primeira referência explícita a este período de jejum está no Cânon 5 do Concílio de Nicéia (325), onde é tratado como algo familiar e estabelecido, e não como uma inovação da parte do Concílio5. No final do século IV a observância do jejum de 40 dias parece ter sido a prática padrão na maior parte da Cristandade, mas em algumas partes – possivelmente incluindo Roma – um jejum mais curto pode ter sido mantido.

Este jejum de 40 dias, encontrado como evidência do século IV em diante difere um pouco em teor e caráter do jejum de uma semana do período pré-Niceno, e a relação precisa entre os dois não é fácil determinar. Tem sido sugerido que o jejum de 40 dias estava ligado com a Epifania ao invés de com a Páscoa; mas, a evidência para isso parece ser inconclusiva. É claro, entretanto, que enquanto o jejum pré-Niceno era especificamente uma observância Pascal de preparação para a Páscoa, o jejum de 40 dias estava relacionado mais particularmente com a preparação final dos catecúmenos para o sacramento do Batismo ou ‘iluminação’. Nas semanas anteriores aos seus batismos os candidatos passavam por um período intensivo de treinamento, com instruções diárias, serviços especiais e jejum. Os membros da comunidade da igreja eram encorajados a compartilhar com os catecúmenos as orações e o jejum, renovando, assim, ano após ano sua dedicação batismal a Cristo. Então, os 40 dias de jejum vieram envolver o corpo de fiéis como um todo, e não apenas aqueles que estavam se preparando para o Batismo.

A Quaresma, como nós a conhecemos, é, assim, o resultado de uma convergência entre estes dois elementos – os seis dias de jejum do período pré-Niceno, que era diretamente uma preparação para a Páscoa, e os 40 dias de jejum pós-Nicéia, que era, originalmente, uma antiga parte do treinamento dos candidatos ao Batismo. Era natural que estes dois elementos se fundissem em uma única observância, pois ambos possuem o mesmo ponto final – a noite do Sábado Santo. A vigília Pascal nesta noite, em celebração da morte, sepultamento e Ressurreição de Cristo era, por razões óbvias, escolhida como ocasião para a administração do Batismo; por ser este sacramento, precisamente, uma iniciação à Cruz do Senhor e à Sua Ressurreição (ver Rm 6, 3-4).

Hoje na maior parte das Igrejas não há um catecumenato organizado, e é costume administrar o Batismo em muitas outras ocasiões além da noite do Santo Sábado; ainda que o significado batismal da Quaresma ainda possua uma importância vital. Para todo membro da comunidade cristã, a Quaresma é um tempo de treinamento espiritual e de renovada iluminação. É um tempo para compreender mais uma vez que, pela virtude de nossa iniciação batismal, nós fomos crucificados, enterrados e ressuscitados com Cristo; é um tempo de reaplicar a nós mesmos as palavras de São Paulo, “Já não sou que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). É um tempo para nós ouvirmos mais intimamente a voz do Espírito com o qual nós fomos selados em nosso Crisma, imediatamente após nosso ‘enterro’ nas águas batismais.

A escolha do número 40 para os dias da Quaresma tem precedentes bíblicos óbvios. O povo de Israel passou 40 anos no deserto (Ex 16, 35); Moisés permaneceu jejuando 40 dias no Monte Sinai (Ex 34, 28); Elias absteve-se de toda comida por 40 dias em sua jornada para o Monte Horeb (3 Rs 19, 8). O mais importante de todos, o jejum de Cristo por 40 dias e 40 noites no deserto, tentado pelo demônio (Mt 4, 1).

Mas como são os 40 dias computados? Nos séculos IV e V, a maneira de contar variava. Alguns mantinham um jejum de seis semanas, alguns de sete ou mesmo de oito6. Três questões surgem:

A Semana Santa está incluída nos 40 dias, ou era tratada como período distinto e adicional?
O Sábado é considerado um dia de jejum?

Os 40 dias estão contados seqüencialmente, incluídos os sábados e domingos? Ou o domingo é excluído da contagem, e o sábado também, se não é considerado um dia de jejum?

Divergentes respostas a estas três questões são consideradas para as atuais diferenças entre a Quaresma ocidental e a Ortodoxa. A Semana Santa em Roma era incluída como parte dos quarenta dias, o sábado era considerado como um dia de jejum7, mas no cálculo do número 40 todos os domingos foram excluídos da contagem. Isto produzia um jejum de seis semanas de seis dias em cada semana, constituindo um total de 36 dias. Para complementar o total de 40 dias, quatro dias adicionais eram, então, adicionados ao começo, resultando na Quaresma no ocidente começando numa quarta-feira8.

Em Constantinopla, por outro lado, a Semana Santa – junto com o Sábado de Lázaro e o Domingo de Ramos – não eram considerados como parte dos 40 dias de jejum no sentido estrito. Nas Vésperas de sexta-feira à noite na sexta semana, imediatamente precedendo ao Sábado de Lázaro, a distinção entre os 40 dias e a Semana Santa é muito claramente marcada no seguinte texto do Triódio:

Tendo completado os 40 dias que trazem benefício à nossa alma
Nós imploramos a Ti, em Teu amor pelo homem:
Concede-nos, também, cumprir a Semana Santa da Tua Paixão...

Em Constantinopla e no Oriente em geral, os sábados, com a única exceção do Sábado Santo, não eram considerados dias de jejum. Mas, na contagem do número 40 era costume contar continuamente, incluindo os sábados e os domingos no cálculo. Assim, os 40 dias começam na primeira segunda-feira da Quaresma e terminam na sexta-feira da sexta semana; então, vem o Sábado de Lázaro, o Domingo de Ramos e a Semana Santa, que, enquanto distinta dos 40 dias era tratada como parte da Grande Quaresma num sentido mais amplo. Desta maneira, os 40 dias e a Semana Santa juntos constituem um jejum de sete semanas. Deste modo a Quaresma começa na Quarta-Feira de Cinzas na cristandade ocidental, enquanto começa dois dias mais cedo no Oriente, na segunda-feira.

Os cristãos no Oriente grego, entretanto, como regra de contagem dos 40 dias, têm, às vezes, escolhido excluir os sábado e os domingos dos cálculos, resultando nisso em sete semanas de cinco dias cada, totalizando 35 dias. Mas, uma vez que o Sábado Santo é um dia de jejum, sendo também incluído, totalizando 36 dias. Como vimos, o Ocidente antes da adição dos quatro dias preliminares, de igual modo, possuíam 36 dias de jejum, embora computados de uma maneira um pouco diferente. Tanto no Ocidente como no Oriente a este número de 36 dias tem sido dado um significado simbólico. Como os israelitas dedicavam a Deus um dízimo ou um décimo de sua produção, os cristãos dedicam o período de Quaresma a Deus como dízimo ou um décimo do ano. Esta parte é oferecida como um símbolo do todo: em retribuição a Deus de um décimo daquilo que Ele nos dá, nós invocamos a Sua benção sobre o restante do ano e reconhecemos que todas as coisas materiais e todos os momentos da vida são uma dádiva de Sua mão. Esta noção de Quaresma, como um dízimo dos primeiros frutos do ano, não é muito enfatizada em textos existentes do Triódio, mas é mencionada no Sinaxário para o Domingo do Perdão9.

(3) A complementação da configuração. Em Constantinopla do século sexto ou sétimo em diante, surgiu a prática de acrescentar, antes das sete semanas de jejum, uma oitava semana ou uma semana preliminar de jejum modificado. Em nossa tradução do Triódio, nós denominamos esta semana de ‘Semana antes da Quaresma’; ela é freqüentemente chamada de ‘Semana do queijo’ ou ‘Semana sem carne’, por que durante estes dias a carne é proibida, mas queijo e outros laticínios são permitidos. Esta semana preliminar foi acrescentada, entre outras razões, pelo mesmo motivo que levou à adição de quatro dias extras ao começo da Quaresma no Ocidente: totalizar os 40 dias. No Ocidente, um jejum de seis semanas de seis dias em cada deixava faltando 4 dias do total requisitado. Em Constantinopla, por outro lado, os dias da Quaresma eram contados (como vimos) continuamente, e, então, não havia necessidade de um período preliminar para formar o total de 40 dias. Mas, os cristãos da Palestina calculavam em termos de oito semanas, com cinco dias de jejum cada (sem levar em consideração o Sábado Santo para propósito de contagem); e, então, eles necessitavam de uma semana adicional no começo da Quaresma. A observância da ‘Semana do queijo’ no Triódio existente representa um compromisso entre a prática de Constantinopla e a da Palestina: pois a ‘Semana do Queijo’ deve ser considerada parte do jejum, ainda que não esteja completamente dentro da Quaresma10.

Durante os séculos sexto ao décimo-primeiro, o período de preparação pré-quaresmal foi gradualmente expandido para incluir três outros domingos preliminares: o Domingo do Fariseu e do Publicano, dez semanas antes da Páscoa; seguindo-o, o Domingo do Filho Pródigo; e, então, o Domingo do Julgamento Final, imediatamente antes do começo da ‘Semana do queijo’. Junto com o Domingo do Perdão ao final da ‘Semana do queijo’, formam quatro domingos ao todo. Desta maneira a configuração total do período de Quaresma está completa. O Triódio, como o temos agora, inicia-se com o último domingo acrescentado, a saber, o Domingo do Fariseu e do Publicano.

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1 O termo ‘Grande Quaresma’ serve para distinguir este período de outros três períodos de jejum no Calendário Ortodoxo: a Quaresma de Natal, a Quaresma dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e a Quaresma da Dormição da Santíssima Virgem Maria.
2 A história da Quaresma é discutida concisamente por Alexander Schememann em ‘Great Lent’ (St. Vladimir’s Seminary Press, Crestwood, 1969). Este livro é a melhor introdução ao assunto, como um todo, em língua inglesa por um autor ortodoxo.
3 Ver Ireneu, citado por Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, V, xxiv, 12; Tertuliano, Sobre as Quaresmas, 2, 13-14 (PL ii, 956A, 971B-974A); Hipólito, Tradição Apostólica, 20 (ed. Botte, p. 42).
4 Nada é dito sobre estas comemorações diárias nas ‘Homilias Catequéticas’ de São Cirilo de Jerusalém, editada em c. 350, mas elas são descritas em detalhe pela peregrina Egeria, que esteve em Jerusalém para a Quaresma e Semana Santa em c. 381-4; ver sua ‘Travels’.
5 Para referências ao jejum de 40 dias no período imediatamente seguinte ao Concílio de Nicéia, ver Atanásio, Festal Letters para os anos de 330-41, e Eusébio de Cesaréia, On the Feast of Pascha, 4-5 (PG, xxiv, 697C-770C), datado de c. 329.
6 Ver Sócrates, História Eclesiástica, V, 22 (PG xvii, 632B-633B); Sozomen, História Eclesiástica, VII, xix, 7 (ed. Bidez, p.331); Egeria, Travels, & 27 (tr. Wilkinson, p. 128). N.T. Existe um livro publicado pela Editora Vozes, chamado ‘A Peregrinação de Etéria’, que acredito tratar-se do mesmo livro (Egeria, Travels) pelo autor deste texto.
7 Para o costume latino de jejum aos sábados, ver Papa Inocêncio I, Letter to Decentius, 4 (PL 1vi, 516A); Augustine, Letter xxxvi, To Casulanus , 4 & 2 (PL xxxiii, I36); João Cassiano, Institutes, iii, 9-10. A prática latina é condenada pelo Concílio in Trullo (A.D. 692), cânon 55, que proíbe jejum aos sábados com a única exceção do Sábado Santo (confirmando, assim, a regra do Cânon Apostólico 66 [64]).
8 O mais antigo testemunho da adição destes 4 dias é o Gelasian Sacramentary (começo do século VIII), mas há indícios da adição em fontes alcançando o século V (ver MacArthur, The Evolution of the Year Christian, p.137)
9 Para a Quaresma como um dízimo do ano, ver João Cassiano, Conferences, xxi, 24-5; Dorotheus, Teachings, 15 (PG 1xxxviii, I788BC); Gregório, o Grande, Homilies on the Gospel, xvi, 5 (PL 1xxvi, II37C). Mas o simbolismo do dízimo é rejeitado por João Damasceno, On the Holy Fasts, 3 (PG xcv, 68C). Para a oferta israelita do dízimo, ver Lv 27, 30-32 e Dt 14, 22-24.
10 Dorotheus, escrevendo na Palestina c. 540-580, faz uma clara referência a esta oitava semana preliminar em Teachings, 15 (PG 1xxxviii, I788C). Uma obscura passagem em Theophanes, Chronographia for the year 6038, i.e. A.D. 546 (ed. Boor, vol. I, p.225), pode ser interpretada como significando que a semana preliminar era observada em Constantinopla já no tempo do reinado de Justiniano (525-565). Mas, o Sinaxário para o Sábado na Semana antes da Quaresma conecta a introdução da ‘Semana do queijo” com as vitórias do imperador Heráclio sobre os persas Chosroes em 629 ou nos anos imediatamente seguintes. No tempo de João de Damasco (primeira metade do século oitavo), a observância desta semana preliminar não era, como ainda não é, de modo algum universal no Oriente cristão: ver, On the Holy Fasts (PG xcv, 64-77).

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