SOBRE A TEOLOGIA DO ÍCONE

 CLEMENT Olivier
tradução de monja Rebeca (Pereira)



«O ensaio sobre a Teologia do ĺcone na Igreja Ortodoxa» de Léonide Ouspensky (livro Ι, Paris l960) é um livro que marca uma data. Sobre um assunto apaixonante e essencial, pois a arte torna–se para muitos de nossos contemporâneos uma busca do absoluto, já que a arte cristã, consequentemente, coloca diretamente em questão nossa capacidade de confessar e viver a nossa fé, isto é um dos primeiros esforços de síntese nem estético, ou filosófico, mas antes fundamentalmente teológico, no pleno sentido da palavra, implicando e exigindo uma contemplação. E ainda mais; é obra não de um teórico, mas sim de um dos melhores iconográficos de nosso tempo, que, em colaboração com o Padre Grigory Grug acaba de pintar importantes afrescos, em pleno Paris na nova igreja dos Três Santos Hierarcas. (1) Quero simplesmente a partir desse trabalho, mostrar alguns temas fundamentais da teologia do ícone. 

O autor sublinha, de início, que a veneração das santas imagens, os ícones do Cristo, da Mãe de Deus, dos Anjos e dos Santos é dogma da fé cristã, formulado pelo Sétimo Concilio Ecumênico. O ícone não é então um elemento decorativo nem tãο pouco uma simples ilustração da Escritura. Ele faz parte integrante da Liturgia e constitui um “modo de conhecer Deus e unir–se a Ele“. Sabe–se que a celebração de uma festa exige que seja exposto no meio da nave o ícone (móvel) que revela, com a evidência imediata da visão, o sentido do evento que está comemorado. De modo mais amplo, a igreja inteira, com a sua arquitetura e seus afrescos (ou mosaicos) representam no espaço o que o desenvolvimento litúrgico representa no tempo; o reflexo da gloria divina, a antecipação do Reino messiânico. A palavra litúrgica e a imagem litúrgica formam um todo indissociável, ambiente de eco, essa “pneuma – esfera” por assim dizer pela qual a Tradição torna atual e viva a Boa Nova.  Assim, o ícone corresponde à Escritura não como sua ilustração, mas do mesmo modo que lhe correspondem os textos litúrgicos; “esses textos não se limitam à reprodução da Escritura como tal; eles são como que tecidos por ela, fazendo alternar e confrontar suas partes,  revelam o sentido, nos indicando o meio de viver a pregação evangélica. O ícone representando diversos momentos da história sagrada, transmite de modo visível o seu sentido e significado vital. Assim, pela liturgia e pelo ícone, a Escritura vive na Igreja e em cada um de seus membros (pp. l64-l65).

A veneração dos ícones é então um aspecto essencial da experiência litúrgica, ou seja, da contemplação do Reino via as ações do Rei. “Veladamente” é claro e pela fé, essa contemplação é vivida pelo ser humano total, tendo o caráter imediato da sensação, ou “sensação das coisas divinas” realizadas nesse homem total. A concepção ortodoxa da Liturgia aparece assim inseparável das grandes certezas da ascese oriental sobre a transfiguração do corpo esboçada já aqui na terra, sobre a percepção da luz “tabórica” pelos sentidos corporais espiritualizados, ou seja, não “desmaterializados”, mas penetrados e metamorfoseados pelo Espírito Santo. A Liturgia, de fato, santificando todas as faculdades do homem inicia a transfiguração dos sentidos, tornando–lhes aptos a entrever o invisível pelo visível, o Reino no meio do mistério. O ícone, sublinha Léonide Ouspensky, santifica a visão e já a transforma em sentido da visão; pois Deus não Se fez somente ouvir, Ele Se fez ver; a glória da Trindade revelou–se pela a carne do Filho do Homem. Se pensamos na importância do sentido da visão no ser humano moderno, até que ponto este se encontra esquartejado, possuído, erotizado pelos olhos, até que ponto o fluxo das imagens nas cidades grandes torna-o descontinuo, faz dele um “homem do nada”, compreende–se a importância do ícone, pois este sistematicamente liberado de toda sensualidade (diferentemente de tantas obras, aliás admiráveis, da arte religiosa ocidental), tem como objetivo exorcizar, pacificar, iluminar nossa visão, permitindo-nos “jejuar pelos olhos” segundo a expressão de São Doroteu. (cfr. p.210) 

Em nossa civilização de possessão pela imagem, escrevia-me um amigo protestante, o ícone se torna uma emergência para a cura das almas. Tanto que foi na crise iconoclasta, nos séculos VIII e IX que a Igreja teve que dar precisões sobre o significado do ícone e hoje o trabalho de Léonide Ouspensky está repleto dos textos doutrinais e conciliares dessa época. Ouspensky consagra ao iconoclasmo um capítulo que tem por mérito colocar à luz as motivações religiosas dos antagonistas. De fato, o iconoclasmo parece explicar–se em profundidade por um violento ressurgimento de transcendentalismo semítico, por influências judaicas e muçulmanas que consideravam como supremacia, na tradição ortodoxa, o sentido da incognoscibilidade divina ao detrimento do sentido da “Filantropia” e da “Encarnação.” O argumento dos iconoclastas a respeito da impossibilidade de representar o Cristo era um patético laço com o inefável...(p.152). Mas, o iconoclasmo também foi uma reação contra um culto as vezes idolátrico das imagens, contra a contaminação desse culto pela noção mágica ou teurgica (no sentido neoplatoniciano da palavra) que queria que a imagem fosse mais ou menos consubstancial ao seu modelo; chegava–se  assim em confundir o ícone e a eucaristia, e alguns sacerdotes juntavam aos santos Dons parcelas retiradas de ícones particularmente venerados. Assim, opôs–se na Igreja as duas grandes concepções não cristãs do divino que só podem ser reconciliadas no dogma da Calcedônia; de um lado o Deus do Antigo Testamento estático que não seria “preparação evangélica”, um Deus pessoal mas fechado em Sua Mônade transcendente, um Deus que não pode ser representado, pois não se pode participar de Sua santidade; do outro lado, o divino como natureza sagrada, ou melhor, como sacralidade da natureza, a onipresença da qual participa toda forma.

A Ortodoxia ultrapassou essas duas tentativas opostas confirmando o fundamento cristológico da imagem e seu valor estritamente pessoal (e não substancial).

A Igreja mostrou primeiramente que a imagem por excelência é o próprio Cristo. No Antigo Testamento, Deus revelava–Se pela palavra; não era possível então sem blasfêmia representá-Lo. Mas a proibição do Êxodo (20, 4) e do Deuteronômio (5, 12-19) constitui como que uma prefiguração “de fundo” da “Encarnação”; ela afasta o ídolo para dar lugar ao rosto do Deus feito homem. Pois a Palavra irrepresentável fez–Se carne; “quando o Invisível, escreve São João Damasceno, tendo revestindo–Se da carne, apareceu visivelmente, Ele representa a semelhança d’ Aquele que Se mostrou”. (pg.94, 1239). O Cristo não é apenas o Verbo de Deus mas Ele também é a Sua imagem. A Encarnação fundamenta o ícone e o ícone reencontra a prova da Encarnação. Para a Igreja Ortodoxa o primeiro e fundamental ícone é o do rosto de Cristo. Então como o sugere L. Ouspensky, o Cristo é por excelência a Imagem (arquétipo), não feita por mão de homem; tal é o sentido profundo da Tradição retomado na liturgia, segundo a qual o Senhor imprimiu sobre um tecido a Santíssima Face.

L. Ouspensky interpreta de modo literal os textos litúrgicos contando o envio ao Rei de uma carta e de um tecido (Mandilion) sobre o qual teria sido impresso Seu rosto. Não seria melhor, já que a carta é visivelmente falsa, retirar (fazer aparecer) o sentido simbólico desse episódio, como a Igreja soube, por exemplo, autentificar o testemunho, mas não a historicidade, dos escritos do Aeropagita? Vamos dizer então que a lembrança histórica do rosto de Cristo foi preciosamente conservada pela Igreja, primeiramente, justamente na Terra Santa e nos países semíticos que a cercam. E um fato que todos os ícones de Cristo dão a impressão de uma semelhança fundamental. Não uma semelhança fotográfica, mas presença da mesma Pessoa, e de uma Pessoa divina que Se revela a cada um de uma maneira única (certos sacerdotes gregos, partindo dos escritos evangélicos sobre as aparições do Ressuscitado, sublinham essa pluralidade, na unidade, dos aspectos do Cristo glorioso). Aqui a semelhança é inseparável de um encontro, de uma comunhão; apenas tem uma única Santa Face da qual a Igreja conservou a memória histórica (renovada de geração em geração, pela visão dos grandes espirituais) e tantas Santas Faces quanto iconográfos (a ver, tantas quantas, de momentos na vida mística dos iconográfos). E o rosto humano de Deus, inesgotável, guardando para nós, como foi sublinhado por Dinis, um caráter apofático; rosto dos rostos e rosto do Inacessível...

L. Ouspensky sublinha, multiplicando lindíssimas reproduções, que a imagem existe desde os primeiros tempos do Cristianismo, e que a arte das catacumbas, que é uma arte do sinal, e oferece às vezes, paralelamente a puros símbolos e representações alegóricas, uma incontestável preocupação de semelhança pessoal. Porém, a santidade encontra–se então designada mais por uma linguagem convencional que simbolizada pela expressão artística em si–mesma; foi no século III que se iniciou esta incorporação do conteúdo na forma, característica da arte propriamente iconográfica.           

Seria interessante, para uma história dos significados, estudar em que medida essa evolução da arte cristã coincide com a transformação da arte helênica em “arte do eterno” no sentido que Malraux dá a essa expressão, e em que medida disso é distinta, pois que a arte do eterno impersonaliza enquanto o ícone personaliza... Se então a imagem pertence à própria natureza do Cristianismo, e se o ícone por excelência é o do Cristo Imagem do Pai, este, abismo inacessível, não pode ser diretamente representado; “aquele que Me viu, viu o Pai” dizia Jesus (João 14,9). O Sétimo Concilio Ecumênico e o Grande Concílio de Moscou (1666-1667) proibiram formalmente representar Deus–Pai. Quanto ao Espírito Santo, Ele mostrou–Se na forma de uma pomba e de línguas de fogo e é assim que será pintado.  Não poderíamos dizer também que o Espírito Santo é simbolizado pela luz mesma de todo ícone? Lembremos–nos enfim, se bem que não falado por L. Ouspensky, reservando de repente esse  tema para o seu segundo livro, que o “ritmo”  da Trindade,  sua diversidade una, são expressadas na Hospitalidade de Abraão recebendo os três Anjos, esses três que Rublev conseguiu pintar com cores que parecem como nacarado da eternidade, o misterioso movimento de amor que os identifica sem os confundir…           

Se a proibição do Antigo Testamento foi levantada por e para o Cristo, ela também o foi para a Sua Mãe e para os Seus amigos, para os membros de Seu Corpo, para todos aqueles que, no Espírito Santo, participam de Sua carne deificada.           

Porém, e para cortar logo as acusações e confusões dos Iconoclastas, assim como para cortar os abusos de alguns ortodoxos, a Igreja sublinhou com vigor que o ícone não é consubstancial ao seu protótipo;  o ícone de Cristo não faz duplo uso da Eucaristia, mas sim inaugura a visão “face à face”. Representando a humanidade deificada de seu protótipo é uma pessoa, não uma substância que o ícone faz assim surgir. Numa perspectiva escatológica, o ícone sugere o verdadeiro rosto do homem, seu semblante de eternidade, esse rosto secreto que Deus contempla em nós e que a nossa vocação consiste em realizar.  

Se for possível ao ser humano sugerir a carne santificada do Cristo é que a própria matéria utilizada pelo iconográfo foi secretamente santificada pela Encarnação. A arte dos ícones usa e, de certa maneira, manifesta essa santificação da matéria. “Eu não adoro a matéria, dizia São João Damasceno, mas o Criador da matéria que Se tornou matéria por minha causa… e que , pela matéria, realizou a minha salvação.” (pg. 94, 1245).

Evidentemente, porém a representação da luz incriada que transfigura um rosto não pode ser apenas simbólica. Mas é a originalidade irredutível da arte cristã que o símbolo esteja ali a serviço do rosto humano e serve para expressar a plenitude da existência pessoal.

A mandala hindu ou tibetana, para usar um tema posto à moda pela psicologia das profundezas, é o símbolo geométrico de uma absorção no centro. O que poderia chamar–se de mandala ortodoxa, por exemplo - uma nave quadrada dominada por uma abóbada - , tem por centro o Pantocrator, e nos une a uma presença pessoal.

Também não há como ser exagerado no louvor de L. Ouspensky que dá valor às decisões iconográficas do Concílio Quinisexto (692) o qual ordena trocar os símbolos da arte cristã arcaica - particularmente o Cordeiro - pela representação direta do que esses símbolos prefiguravam; o rosto humano transfigurado pela energia divina, e primeiramente o rosto de Cristo. O Concílio Quinisexto põe um ponto final e triunfal à pré-história da arte cristã, pré-história que revelou o sentido crístico de todos os símbolos sagrados da humanidade, “figuras e sombras, esboços dados em vista da Igreja”. O verdadeiro simbolismo da arte cristã aparece agora como o modo de representar a pessoa humana na perspectiva do Reino. Eis porque como o mostra, textos em mãos, L. Ouspensky, o simbolismo do ícone fundamenta–se sobre a experiência da mística ortodoxa, como “apropriação” pessoal do Corpo glorioso (apropriação por graça antecipada, ou seja desapropriação de todo egocentrismo). Os olhos imensos, de uma doçura sem brilho, os ouvidos reduzidos, como que interiorizados, os lábios finos e puros, a sabedoria da testa dilatada, tudo isso indicando um ser pacificado, iluminado pela graça. Assinalamos nesse propósito um texto de Palamas, recentemente traduzido por Jean Meyendorff. L. Ouspensky não o cita, mas ele poderia acrescentar esse texto à sua obra de citações ascéticas; é preciso então oferecer a Deus a parte apaixonada da alma, vivente e operante, para que ela seja um sacrifício vivo; o Apóstolo disse a mesma coisa a respeito de nossos corpos; eu exorto–vos, disse ele de fato, pela misericórdia divina, a oferecer vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (Rom. 12, 1).

Como nosso corpo vivo poderia ser oferecido como sacrifício agradável a Deus? Quando nossos olhos têm um olhar doce, segundo o que está escrito;  Aquele que tem o olhar doce será agraciado (Prov. 12. 13), quando eles atraiam e transmitem–nos a misericórdia do Alto, quando os ouvidos estão atentos aos ensinamentos divinos, não apenas para escutar esses, mas, como o diz o profeta David, “para lembrar–se dos Mandamentos de Deus e cumpri-los” (Sl.103,18), quando nossa língua, nossas mãos e os nossos pés estão a serviço da vontade divina. (Triades Louvain 1959, pg. 364.) Seria particularmente importante comparar essa expressão iconográfica da transfiguração dos sentidos com os «lakshanas» da arte budista, que também designam por uma deformação dos órgãos sensoriais o estado de “libertação”. Uma análise das semelhanças e das diferenças seria significativa. Limitemos–nos a algumas sugestões; no ícone, o símbolo está a serviço do rosto, expressando a realização do rosto humano pelo encontro e comunhão, sugerindo uma interioridade na qual a transcendência oferece–se, mas sem deixar de ser inacessível. Na arte budista o rosto identifica–se com o símbolo, ele se anula enquanto rosto humano, tornando–se símbolo de uma interioridade onde não há mais nem o Outro, senão o nada indizível. Nos dois casos, o rosto é aureolado; mas o rosto cristão está na luz como o ferro no fogo, o rosto budista vira esfera, dilata–se, identifica–se à esfera luminosa que o nimbo simboliza. No ícone, o tratamento dos sentidos sugere a sua transfiguração pela graça. Os lakshanas, ao contrário, simbolizam os poderes de clarividência e de clariaudiência pelo acréscimo desmedido dos órgãos dos sentidos, os ouvidos, por exemplo. Enfim, o rosto cristão olha e acolhe, enquanto no rosto budista, os olhos cerrados, se recolhe.

Essa preocupação cristã de acolhida, de comunhão explica porque os Santos, nos ícones, são representados de face, abertos para aquele que os olha, dirigindo-os à oração, pois que eles mesmos são oração, e é isso que mostra o ícone. A luz e a paz penetram e ordenam as suas atitudes, as suas vestes, e o ambiente que os cercam. Ao redor deles, os animais, as plantas, os rochedos são estilizados segundo a sua essência paradisíaca. As arquiteturas tornam–se uma brincadeira surrealista, desafio evangélico a seriedade pesada desse mundo, a falsa segurança das arquiteturas da terra...

A palavra abstração nunca se encontra sob o “lápis” de L. Ouspensky, mas não se pode deixar de pensar nela quando fala do simbolismo ou da estilização. Existe no ícone uma abstração que leva a uma figura mais alta, uma abstração que é morte a esse mundo e que permite uma entre–visão do mundo que há de vir. O ícone abstrato segundo o Logos criador e re–criador do universo e não apenas o logos individual, decaído, finalmente destruidor... A abstração do ícone é a cruz de nosso olhar carnal. O seu realismo é tabórico e escatológico; ele anuncia e manifesta já a única realidade definitiva, aquela do Reino.

A luz do ícone simboliza a luz divina e a teologia do ícone aparece inseparável da distinção em Deus da essência e das energias; é a energia divina, a luz incriada que o ícone sugere. Num ícone, a luz não provém de um foco preciso, pois a Jerusalém Celeste, diz o Apocalipse, “não precisa do sol e da lua, pois é a gloria de Deus que a ilumina (Apoc. 21,23). Ela está em todo canto, em tudo, sem projetar sombra; ela nos mostra que no Reino o próprio Deus faz–Se luz para nós. De fato, anota L. Ouspensky,  é o próprio fundo do ícone que os iconográfos chamam de “luz”.

O autor escreve linhas notórias sobre a “perspectiva invertida” ou “oposta”; na maioria dos ícones, as linhas não convergem para um “ponto de fuga”, sinal do espaço decaído que separa e aprisiona, antes se dilatam na luz  “de glória em glória”. Não poderíamos falar justamente aqui de épectase iconográfica, designando assim mesmo em São Gregório de Nissa, essa dilatação infinita na luz do Reino? Entendemos que o exercício de tal arte constitui um ministério carismático.

A Igreja Ortodoxa venera “santos iconográfos” que L.Ouspensky religa aos “homens apostólicos” dos quais São Simeão o Novo Teólogo permanece o principal porta–voz. O homem apostólico é aquele que recebe graças pessoais prometidas por Cristo aos Apóstolos; não apenas cura as almas e os corpos e discerne os espíritos, mas, como São Paulo, ouve palavras inefáveis, como São João tem por missão de dizer o que ele viu (Apocalipse ou Livro da Revelação).

Da mesma forma, o “santo iconográfo” entrevê realmente o Reino e pinta o que entreviu. Cada iconográfo que pinta “segundo a Tradição” participa dessa contemplação excepcional, ao mesmo tempo pela experiência litúrgica e pela comunhão dos Santos. Eis porque o pintor de ícone não pinta de modo subjetivo, individual psicológico, mas segundo a Tradição e a visão. A pintura é para ele inseparável da fé, da vida na Igreja, de um esforço acético pessoal.

Os Santos Padres insistiram muito sobre o valor pedagógico do ícone. De fato, como mostra L. Ouspensky, toda a historia do dogma inscreve-se na iconografia.

Porém, o valor do ícone não é apenas pedagógico e sim de mistérios. A graça divina repousa no ícone. Isso é o ponto essencial, o mais misterioso também de sua teologia; a “semelhança“ com o protótipo e seu nome fazem a santidade objetiva da imagem.

“O ícone, escreve São João Damasceno, é santificado pelo nome de Deus e pelos nomes dos amigos de Deus, ou seja, dos Santos, e eis porque o ícone recebe a graça do Espírito divino” (pg. 94, 1300).

L. Ouspensky limita–se a colocar essa afirmação essencial e não busca inclusive - pelo menos ainda não - os fundamentos. Aqui, deveria-se levar em conta uma sugestão de M. Edvokimov de que toda a concepção bíblica do Nome como presença pessoal é concebida como subentendendo também a invocação hesicasta do nome de Jesus (lembrando-se aqui do poder desse Nome no Livro dos Atos.)    

O ícone nomeia pela forma e pelas cores. Ele é o nome representado; eis porque torna presente um protótipo cuja santidade é comunhão, ou seja, presença oferecida, que intercede... Como o Nome, o ícone é um meio de encontro que nos faz participar da santidade d’ Aquele que nós encontramos, ou seja, a santidade do “Único  Santo.”

L. Ouspensky nos oferece também um importante capítulo sobre o “simbolismo da igreja”. Uma igreja inteirinha, de fato, deve constituir um ícone do Reino. Segundo as antigas Instituições apostólicas, ela deve ser orientada (pois o Oriente simboliza o levantar do dia eterno e o cristão, diz São Basílio, sempre deve orar voltado para o oriente), deve evocar uma barca (pois ela é, sobre as águas da morte deste mundo, a Arca da Ressurreição) ela deve ter três portas para sugerir a Trindade, princípio de toda a sua vida. O altar encontra–se na abside oriental, levemente elevado - símbolo da Montanha santa - e nomeado por excelência “o santuário”. O altar figura o próprio Cristo (Dinis o Aeropagita), o próprio coração do Cristo cuja igreja representa o corpo (Nicolas Cabasilas). Talvez seja lamentável, nesse caso, que L. Ouspensky não tenha utilizado para estudar o simbolismo do santuário a “Vida em Cristo” de Cabasilas, e os estudos correspondentes de Madame Lot - Borodine...   

O altar é o coração de todo o edifício, que ele atrái e santifica; O “santuário” que o cerca e reservado ao clero, as vezes é assimilado ao “santo dos Santos”, ao tabernáculo e do Templo da Antiga Aliança. E o “céu dos céus” (São Simeão de Tessalônica), o lugar onde Cristo, Rei de todas as coisas, Se assenta com os Apóstolos. (São Germano de Constantinopla). Como à sua imagem, o Bispo e o seu “presbiterium”.     

Barca escatológico, a “nave”, freqüentemente dominada por uma abóbada, representa a nova criação, o universo unido ao Cristo seu Criador, como a nave une–se a o santuário. “O santuário, escreve São Máximo o Confessor, ilumina e re-dirige a nave e esta se torna assim sua expressão visível. Tal relação restaura a ordem normal do universo, derrubado pela queda do homem; a nave restabelece o que estava no Paraíso e estará no Reino de Deus.” (P.G. 91-872). Poderíamos nos perguntar se a união da abóbada e do quadrado não toma novamente, de modo vertical, essa descida do céu até a terra, mistério teândrico (divino-humano) da Igreja.        

L. Ouspensky não fala do problema da iconostase, sem dúvida querendo reservar uma maneira de enfrentar o assunto talvez na segunda parte ainda não publicada do livro. Sabemos que o santuário apenas foi separado da nave. Sabe–se que o santuário apenas era separado da nave até o fim da idade média por um chancelo muito baixo, tipo de divisória  no meio da qual erguia–se , antes do altar, o arco triunfal, verdadeira porta da vida diante da qual os fiéis recebiam a comunhão (Portas reais de nossos dias). Mas a partir dos séculos XV e XVI, e na medida em que a Ortodoxia, num mundo secularizado, refugia–se dentro do seu sentido do mistério, a divisória  foi trocada por uma alta parede coberta de ícones; a iconostase. As pinturas da iconostase  representam a Igreja total, uma no meio dos tempos como no meio dos espaços espirituais. Os Anjos, os Apóstolos, os Mártires, os Padres e todos os Santos ordenam–se de uma parte e outra de uma composição central que domina as Portas reais, a Deisis (Intercessão) representando a Virgem e o Batista intercedendo de ambas as do Cristo em majestade.         

Afrescos e mosaicos cobram normalmente quase todo o interior da igreja. Se L. Ouspensky não fala da iconostase, ele nos enumera  os temas principais dessa decoração mural. Mostra–se nisso toda a profundidade teológica que dá um caráter orgânico ao simbolismo global do edifício. No abside do santuário, é todo o mistério da Eucaristia, “sacramento dos sacramentos”; embaixo, a comunhão dos apóstolos que evoca o memorial; na abóboda o Pentecostes evoca a resposta divina à epiclese; entre os dois, a Virgem em orante, figura da Igreja (os seus braços estão levantados como os braços do sacerdote) designando o Cristo, nosso próprio Supremo Sacerdote sendo sacrifício e sacrificador ... A decoração da nave recapitula a unidade teândrica da Igreja; no centro da abóbada, o Pantocrator, fonte do céu de glória que desce para cercar tudo, abençoar tudo, e transfigurar. Ele é cercado pelos Profetas, e pelos Apóstolos. Nos quatro ângulos do quadrado sustentando a abóbada, os quatro Evangelistas. Nas colunas, os homens – colunas; mártires, santos bispos, “homens apostólicos”. Nas paredes, os grandes momentos do Evangelho. 

A Iconografia Ortodoxa conheceu uma tardia e profunda decadência, na Rússia desde século XVII, na Grécia no século XIX. L. Ouspensky vitupera, com uma violência purificadora, o monte de imagens medíocres que freqüentemente entopem as igrejas ortodoxas e cuja a maioria constitue, sob a etiqueta de ícones, o “gosto italiano”, tristes sub-produtos de mais contestável na arte religiosa do Ocidente moderno.   

Certamente, não é uma abordagem válida para avaliar de um ponto de vista ortodoxo a arte ocidental, sacra ou “profana”, avaliação urgente e que precisa ser feita. Não há duvida de que não é uma questão de gosto, mas sim de fé. Eis porque, temos que agradecer L. Ouspensky por ter tão vigorosamente acertado os fundamentos teológicos e litúrgicos do ícone ortodoxo. Esse artigo não pretende ser nada além de um testemunho de gratidão e antes de tudo um convite ao leitor. Quem ama os ícones não como esteta mas antes como homem de oração, deve ler esse livro,  um grande livro.

 Exposto acerca do livro de Léonide Ouspenski “La théologie de l'icône”

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