A salvação pessoal e a salvação do mundo
LARCHET Jean-Claude
tradução de monja
Rebeca (Pereira)
1. A salvação pessoal
é indissociável da salvação do mundo e, de certa maneira, a pressupõe
Ao que parece, a salvação pessoal é indissociável da salvação dos outros
e parece mesmo condicionada por ela: não podemos, nós próprios, sermos salvos
se não contribuirmos na salvação do próximo. São João Crisóstomo é um dos
Padres que mais insiste neste ponto. Ele mesmo afirma sem contornos: “Não posso
crer que possamos nos salvar sem trabalhar na salvação de nossos irmãos”, e
acrescenta ainda neste aspecto: “Sei que não serve de nada ao coitado que
falamos do Evangelho, de ter conservado todo seu talento outrora lhe confiado,
mas por fim perdê-lo por não tê-lo feito frutificar, ele não o fez render dois
por um (cf. Mt. 25, 24)”. 1 Tomando
esta parábola e fazendo apelo a outras comparações semelhantes, São João
Crisóstomo denuncia, em outro lugar, a esterilidade e a inutilidade da vida
daquele que não age em vista da salvação de seus irmãos, e chega mesmo a
afirmar que tal homem não merece o nome de cristão: Assim era aquele que
enterrava o talento: sua vida era sem reprovações mas inútil. Como que, eu vos
pergunto, tal homem pode ser chamado cristão? Respondei-me: se o fermento
misturado à farinha não transforma toda a massa, é ele verdadeiramente dizendo,
um fermento? E ainda, se um perfume não embalsama aqueles que se aproximam,
podemos chamá-lo de perfume? Não dizeis vós que é impossível agir nos outros;
se sois cristãos, o impossível seria o não agir.” 2 Afirmava ainda, um pouco antes: “Não há nada de mais frio do que
um cristão que não salva os seus irmãos”. 3
Para São João Crisóstomo, todo cristão tem o dever de trabalhar na
salvação não somente daqueles que ignoram a Deus e estão afastados d´Ele, mas
ainda dos “pequenos” (Cf. Mt. 18, 10), - daqueles que são fracos na fé e correm
o risco de ceder no combate espiritual: convém sentir-se solidário a eles e os
sustentar tanto quanto possível, à imagem do Cristo que aceita sofrer e morrer
neste objetivo: “Imitemos este grande modelo, e não recusemos jamais nada do
que compete o serviço e o bem destes pequeninos. Que nada nos pareça muito
baixo ou muito difícil quando se trata em ajudá-los, [...] que tudo nos pareça
leve quando se trata da salvação de nosso irmão. Sua alma é tão preciosa aos olhos
de Deus, que para salvá-la, Ele não poupa Seu Filho Único. Eis porque vos
conjuro que no porvir, quando sairdes pela manhã, não tenhais nada além deste
objetivo e este desejo durante todo o dia, o de encontrar a ocasião de tirar o
vosso irmão do perigo. Não falo somente dos perigos do corpo [...] mas sim de
outros perigos muito mais intensos, onde as tentações do demônio tomam as
almas”. 4 Em seguida, São João
Crisóstomo reafirma o que procuramos dizer precedentemente: em não procurar
salvar os outros, colocamos em perigo a nossa própria salvação: “Como podemos
ser tão relaxados ao ponto de não contentarmos de os salvar sós, pois que
arriscamos nossa própria salvação, se não temos o mínimo cuidado daquela dos
outros? É assim em um combate, aquele que pensa em se salvar fugindo, perde-se
ele mesmo antes de perder os seus; mas aquele que combate arduamente para tirar
seus companheiros do perigo, salva-se ele-próprio, salvando-os. Posto que esta
vida é uma guerra contínua, e que estamos sempre em presença dos inimigos,
combatemos como nosso Rei e nosso Chefe nos ordena. [...] Compreendamos todos
para nos defender e nos salvar juntos (...). Nada nos dá tanta confiança junto
de Deus, nada nos torna mais agradáveis a Seus olhos, do que o não buscar em
nada os nossos interesses próprios. De onde vem, pensai vós, que sejamos tão
fracos, e que sucumbamos tão facilmente sob os esforços dos homens ou dos
demônios, senão do fato de estarmos presos só a nós próprios, e não
trabalharmos em nada na defesa e no socorrer uns aos outros?” 5
A idéia expressa no início deste texto, de que agir para salvar os
outros, de imitar a Cristo, é fortemente sublinhada em outra obra do mesmo
Santo: “Posto que temos um Mestre tão pleno de misericórdia, de bondade e de
doçura, trabalhemos (obremos) em salvar nossa alma e aquela de nossos irmãos;
pois uma via fácil e segura de salvação é a de não concentrar de todo em
si-mesmo, e de estender aos irmãos, de sorte que lhes seja útil e que os
conduzamos nas sendas da Verdade. Mas quereis conhecer o quanto nos é vantajoso
salvar os irmãos, salvando-nos a nós próprios? Ouvi as palavras que vos dirijo
em Nome do Senhor: “Se tu voltares então te trarei, e estarás diante da minha
face, e se apartares o precioso do vil, serás como a minha boca; tornem-se eles
para ti, mas não voltes tu para eles” – é como se Deus dissesse: “Aquele que
faz conhecer a verdade ao seu próximo, ou que o (re)conduz do vício à virtude,
imita-Me tanto quanto isto é possível à natureza humana”. Em efeito, o Verbo eterno,
todo Deus que Ele é, tomou a nossa natureza e Se fez homem para nos salvar; mas
não seria suficiente dizer que Ele tomou nossa natureza e Se submeteu à todas
as enfermidades de nossa condição, posto que Ele sofreu até o suplício da Cruz,
a fim de nos redimir da maldição do pecado (Cf. Ga. 3, 13) (...) Ora, se um
Deus, como que impassível em Sua essência, não desprezou, em Sua bondade
inefável, tanto sofreu pela nossa salvação, o quê devemos fazer a respeito
daqueles que são nossos irmãos e nossos membros, a fim de os arrancar da goela
do demônio e os reconduzir à via da virtude? Pois eis que a alma é bem superior
ao corpo, a esmola corporal, que distribui nossas riquezas aos pobres, é menos
excelente que a esmola espiritual que, por salutares avisos e contínuas
exortações, repõe no bom caminho as almas mornas e preguiçosas, fazendo-lhes
conhecer a deformidade do vício e a admirável beleza da virtude”. 6 Santo Isaac o Sírio nos propõe, de
sua parte, a seguirmos a Cristo, afligindo-nos pela salvação dos outros homens:
“No dia em que se afligirdes por alguém que está doente no corpo ou em
espírito, considere que neste dia lá tu és um mártir, pois sofreste por Cristo,
foste digno de confessá-Lo. Lembra-te em efeito que Cristo morreu pelos
pecadores e não pelos justos. Vê quanto isto é grandioso – o afligir-se por
aqueles a quem o mal toca, e de fazer bem mais aos pecadores do que aos
justos”. 7
Querer a salvação dos outros e trabalhar nela é, segundo São João
Crisóstomo, uma forma de caridade para com o próximo, que Cristo nos deu como o
segundo Mandamento, depois de Deus; o que Ele faz uma condição essencial para
que sejamos Seu discípulo; e porque o princípio da caridade é fazer passar a
salvação do próximo antes da sua: “Eis o quê de principal, de capital, em nossa
conduta: não considerar somente nossos interesses, mas antes corrigir e
fortificar aqueles membros dentre os quais vemos estarem pervertidos. 8 Eis, então, a marca mais esplendorosa
de nossa fé; nisto, como nos diz o Evangelho, todos conhecerão que sois Meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo. 13, 35). 9 A sincera caridade não se declara pela comunhão a uma mesma mesa;
por uma curta palavra; ou por lisonjas palavras; o que prova é o zelo que
considera o amor do próximo, que levanta aquele que sofreu uma queda; que
estende a mão àquele que está por terra, sem mais pensar em sua própria
salvação; que busca, antes de seu próprio bem, o bem de outrem. Eis a
verdadeira caridade: pois aquele que possui a caridade não olha seu interesse
próprio, ele considera antes de tudo o interesse do próximo e, através do
interesse de outrem, ele assegura o seu próprio interesse (I Cor. 13, 5). 10
O desejo de que o próximo seja salvo procede então naturalmente da
caridade; e especialmente desta forma de caridade que é a compaixão. Em virtude
da caridade, desejamos o quê de melhor se realize para com o próximo; ora o quê
tem de melhor para ele é que seja salvo, conhecendo a Deus e participando à
vida divina. A compaixão nos faz sofrer à simples idéia de que o nosso próximo
não seja salvo e não possa receber uma parcela sequer do gozo dos bens divinos.
Junto d´Aquele que possui plenamente a virtude da caridade, esta compaixão
estende-se ao mundo inteiro, à semelhança do amor de Deus por todos os seres de
Sua criação. É desta maneira que Santo Isaac emite o seguinte voto: “Que em ti
o peso da compaixão faça inclinar a balança até que sintas em teu coração que
piedade dispõe pelo mundo. Que seja o teu espelho: ver em ti-mesmo a semelhança
e a verdadeira figura da natureza e do ser em Deus”. 11
“O que é um coração compassivo? É
um coração que arde por toda a criação, pelos homens, pelos pássaros, pelas
feras, pelos demônios, por toda criatura. Ao pensar neles, e quando os vê, seus
olhos deitam lágrimas. Tão forte e tão violenta é a sua compaixão, e tão grande
é a sua constância, que seu coração se aperta e não pode suportar de esperar ou
ver o mínimo mal ou a mínima tristeza no seio da criação. Eis porque ele deita
lágrimas a toda hora pelos animais irracionais, pelos inimigos da Verdade, e
por todos aqueles que o prejudicam, a fim de que sejam guardados e sejam
perdoados [...] Tal é o sinal que nos faz reconhecer aqueles que atingiram a
perfeição: se entregariam dez vezes por dia ao fogo, por amor pelos homens, não
estando ainda satisfeitos. É isto que fala Moisés a Deus: “Ora, este povo pecou
pecado grande. Agora, pois, perdoa o seu pecado; senão, risca-me, peço-Te, do
Teu livro que tens escrito” (Ex. 32, 31-32). O que também diz o bem-aventurado
Paulo: “Porque eu mesmo poderia desejar ser separado de Cristo por amor de meus
irmãos” (Rm. 9, 3). E ainda; “Regozijo-me, agora, no que padeço por vós e na
minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo Seu Corpo que é a Igreja”
(Cl. 1, 24). 12
Muitos Padres justificam esta compaixão e mais amplamente o amor pelo
próximo, pela solidariedade objetiva que une todos os homens do fato de que
tenham todos uma mesma natureza proveniente de seu antepassado comum – Adão. Que
sejam todos feitos à imagem de Deus, que sejam todos filhos de um mesmo Pai
Celeste, e que para lá mesmo da Igreja, sejam todos eles membros uns dos
outros. “Nós somos todos de uma única (só) e mesma essência, membros uns dos
outros”, escreve Santo Antônio o Grande. 13
São Máximo o Confessor, concordando neste sentido, nota que “a caridade
perfeita só admite que entre todos os homens haja uma mesma natureza; distinção
alguma baseada na diferença de caracteres. Ela sempre vê esta única natureza.
Ela ama todos os homens igualmente”. 14
“Aquele que possui a caridade perfeita, escreve ele ainda, não faz mais
diferença entre si e o próximo (...). Ele não vê nos homens nada mais do que
sua única natureza: todos, ele os vê em um plano de igualdade, por todos ele
sente o mesmo coração”. 15 Ele cita,
em guisa de exemplo, Abraão – que pela sua caridade foi elevado a Deus
“abandonando a particularização do ser, deixando de tomar homem algum além de
si-próprio, antes considerando um como todos e todos como um”. 16 Este exemplo nos é, aliás, dado por
todos os Santos que, tal como remarca São João Crisóstomo, “agem como que se o
gênero humano não passasse de uma única pessoa”. 17 Eis ai um ideal para o monge: “É monge, escreve Evágrio, aquele
que se estima um com todos pelo hábito de se ver a si-mesmo em cada um”. 18 É lá também o ideal para todo
cristão. É desta maneira que aconselha São Simeão o Novo Teoólogo: “Todos os
fiéis devem ser considerados por nós, fiéis, como um único ser”. 19
O sentimento desta solidariedade fundamental acrescido à compaixão,
conduz a se rejubilar com aqueles que rejubilam, mas também a chorar com
aqueles que choram, a sofrer com aqueles que sofrem, a se sentir co-responsável
por seus pecados, a fazer penitência com eles ou por eles, em breve, “fazer-se
tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns”. (Cf. I Cor.
9, 22), a desejar a salvação de todos como que se tratasse de sua própria
salvação, e a não dissociar sua salvação da deles. “Eu vi um homem - relata São
Simeão o Novo Teólogo - que diante daqueles que sucumbiram tanto em palavras
como em atos e se obstinavam ao mal, entristecer-se e lamentar-se, como que se
fosse ele que buscassem; a fim de dar contas, no lugar de todos, e de se
entregar ao castigo. E vi outro que queria, com tal zelo, a salvação de seus
irmãos, que implorava, por tantas vezes, de toda a sua alma, com lágrimas
ardentes, ao Deus Amigo dos homens, quer de os salvar com ele, quer de o
condenar com eles; recusando absolutamente, em uma atitude que imita a Deus,
aquela mesma de Moisés, a ser salvo todo só: pois ligado espiritualmente a eles
pela caridade santa no Espírito Santo, não quis ele-mesmo entrar no Reino dos Céus
estando deles separado”. 20
2. A busca da
salvação dos outros pressupõe a busca da salvação própria
Ao afirmar que o cristão realizado busca a salvação de todos os homens,
os Padres ensinam, todavia, de uma maneira geral, que a tarefa primordial do
cristão é “obrar à sua salvação própria”, o que apresenta, então, algumas
nuances as considerações precedentes.
Muitos dentre os Padres afirmam, de início, que a busca da salvação
própria, quando ela é radical, supõe a fuga dente os homens. Encontramos um
exemplo significativo deste leitmotiv da literatura ascética, no seguinte
apoftegma relativo a Santo Arsênio – o quê demonstra o quanto esta atividade
responde à vontade de Deus: “Aba Arsênio, estando ainda no palácio, orava a
Deus por meio destas palavras: Senhor, conduz-me de maneira que seja salvo!”.
Eis que uma voz se lhe dirige e diz: “Arsênio, foge dos homens e tu serás
salvo”. 21 A fuga dentre os homens é
tão fundamental que pode ela mesma definir a condição monástica. 22 Deixar a solidão para ir salvar os
homens no mundo é uma sugestão que o diabo faz ordinariamente aos monges, mesmo
àqueles avançados na vida espiritual, como o faz remarcar São João Clímaco:
“Quando ele se apercebe que um monge atingiu algum estado de paz, seja ele o
pouco que seja, [o demônio da vanglória] o leva imediatamente a deixar o
deserto pelo mundo: vai salvar as almas que se perdem”, lhe diz ele 23.
Permanecer longe dos homens é sempre para o monge um princípio a
respeitar. Conhecemos muito exemplos de monges que mudam de lugar de residência
para evitar os visitantes que se tornam numerosos, mesmo que busquem conselhos
espirituais. 24 O monge, escreve
Santo Isaac o Sírio, “não deve ser conhecido ou remarcado pelos homens. Ele não
deve se ligar a grupo algum, nem a se unir a ninguém; guardar calmo o lugar de
sua morada; fugir sempre os homens”. 25
“Ó quão grande mal é para os hesicastas a sede de ver os homens e “comerciar”
com eles. Ela lhes é mais prejudicial em verdade àqueles que abandonaram a
hesíquia. Pois tal como o rigor do gelo quando cai repentino sobre o fruto das
plantas os resseca e os faz perecer, assim é o freqüentar dos homens, por tão
breve que ele seja, e até mesmo se parecer conduzir ao bem, resseca as flores
das virtudes [...] E tal como o rigor da geada desce nas jovens plantas e as
queima, assim também o freqüentar dos homens queima a raiz do espírito, tendo
ela acabado de trazer a verdura das virtudes”. 26
O dever de buscar a sua própria salvação antes de buscar aquela dos
outros é exprimido de uma maneira radical nos seguintes conselhos que Santo
Isaac o Sírio nos dirige: “Ame desligar-se da criação na hesíquia, mais do que
saciar aqueles que têm fome no mundo e de fazer retornar nações numerosas à
adoração de Deus. Melhor é para ti, liberar-se dos laços do pecado do que
liberar escravos de sua escravatura. É melhor para ti, ter a alma em paz (...)
do que apaziguar pelo teu ensinamento aqueles que se consomem. [...] É melhor
falar pouco e ter verdadeiramente o conhecimento e a experiência do que deixar
correr com toda a força de teu espírito o teu ensinamento, como uma torrente. É
mais importante para ti aplicar-te portando os teus pensamentos as coisas de
Deus À elevação de uma alma caída pelas paixões, do que ressuscitar os mortos”.
27 Outras afirmações bem conhecidas
do mesmo Santo seguem o mesmo sentido: “Aquele que (re) conhece seus pecados
quando permanece no meio de muitos outros, é maior do que aquele que ressuscita
os mortos pela sua oração. Aquele que geme uma hora pela sua alma é maior do
que aquele que serve o mundo inteiro pela sua contemplação. [...] Aquele que
segue a Cristo no luto solitário é maior do que aquele que O louva nas
assembléias”. 28
Muitos Padres sublinham os riscos espirituais que correm aqueles que
buscam a salvação dos outros antes de buscar a sua própria salvação. Alguns se
referem à esta palavra de Cristo: “Pois que não aproveita ao homem ganhar o
mundo inteiro, se perder a sua alma? (Mt. 16, 26) 29 ou a estas outras parábolas: “Ora, se um cego guiar cego, ambos
cairão na cova” (Mt. 15, 14. Cf .Lc. 6, 39). São Macário do Egito aconselha
laconicamente: “Não vai te perder a ti-mesmo, pelo pretexto de salvar os
outros”. 30 E ainda São Simeão o
Novo Teólogo: “Não destrua a tua casa por querer edificar aquela do vizinho”. 31
Vir em ajuda a alguém que se perde supõe que estejamos, então, em medida
de fazê-lo, senão riscamos de nos perdermos com ele. 32 Na seguinte maneira certo Ancião ensina: “Se vês que alguém cair
na água e que podes socorrê-lo, estende-lhe o teu bastão e tira-o. mas se não
podes tirá-lo, deixe-lhe então o teu bastão. Se lhe deres a mão e não possas
tirá-lo, então ele te puxará ao fundo e vós morrereis todos os dois”.33
Santo Isaac insiste, em particular, acerca do perigo que lá existe em
pretender curar os outros de suas doenças espirituais enquanto estamos doentes;
em querer libertar os outros enquanto que nós próprios ainda estamos longe da
salvação: “Muitos obraram com poder, ressuscitando os mortos, esforçaram-se
para fazer retornar os dispersos, realizaram grandes milagres. Em suas mãos
conduziram muitos ao conhecimento de Deus. Mas depois de terem dado a vida a
outros caíram nas mais impuras paixões, conduzindo-se ele - próprios à morte, e
pelos seus atos foram um escândalo para todos. Pois suas almas estavam ainda
sujeitas à doença; não tomaram cuidado de sua saúde. Lançaram-se no mar
(agitado) deste mundo para salvar as almas dos outros, enquanto que eles - próprios
estavam ainda doentes”. 34
“Um primeiro princípio a respeitar é então de que só devemos ajudar os
outros quando isto não vier a prejudicar a nossa alma”. 35
Outro princípio é o de que só devemos ajudar os outros quando estivermos
certos de que não o prejudicamos. Não possuindo em si-próprio um comportamento
suficientemente digno, riscamos, em efeito, de escandalizarmos os outros, de
lhes fazermos mais mal do que bem. São João Crisóstomo é ele-próprio tomado por
este temor quando lhe é proposto de se tornar sacerdote, e é em nome deste
princípio que ele recusa, antes de tudo, esta função: “Eu espero incorrer uma
menor punição se for condenado por não ter salvado ninguém do que estiver lá
por ter perdido outros comigo (...). A tal ponto que, o quê agora sou, tenho a
confiança de sofrer somente o castigo rigorosamente exigido pela gravidade dos
meus pecados, enquanto que ao aceitar o sacerdócio, me exporia a um suplício, o
que não digo duas ou três vezes, antes mil vezes mais rigoroso, em virtude dos
escândalos dado aos homens e ofensas feitas a Deus”. 36
O desejo de ensinar o de aconselhar os outros aparece sempre suspeito
pelos Padres e é geralmente situado por estes dentre as paixões. 37 O risco da vanglória ligado a esta
prática, mesmo por aquele a quem é solicitado, é sublinhado por muitos dentre
eles, notoriamente por São Macário do Egito: “Àquele a quem é pedido de falar e
obrigado a anunciar a palavra deve ai se entristecer, fugir então como que do
fogo, repugnando o pensamento, a fim de escapar e não cair na vanglória em
virtude de sua palavra. E, em efeito, quando Moisés, o servidor de Deus, foi
obrigado a falar e a anunciar a palavra à Israel, se escusa, dizendo: “Eu não
sou capaz de falar” (Ex. 4, 10). O mesmo acontece quando Jeremias foi obrigado
a falar, seu coração se inflama tal como o fogo, e ele se escusa por meio
destas palavras: “Eu sou uma criança e não o posso fazer” (Jr. 1, 6), isto a
fim de não retinir glória em honra da função profética. E Paulo lhe diz também:
“Se o faço de boa mente, terei prêmio; mas, se de má vontade, apenas uma
dispensação me é confiada” (I Cor. 9, 17).
Ocupar-se da salvação dos outros, notoriamente, aconselhando-os ou ensinando-os,
supõe então que sejamos nós-mesmos liberados das paixões, fortemente ancorado
nas virtudes e, por conseguinte suficientemente forte espiritualmente; é a
condição indispensável para que não prejudiquemos nem os outros e nem a
si-mesmo. “Bom é, escreve Santo Isaac, ensinar aos homens o bem de Deus, de
conduzi-los a permanecerem em Sua Providência, de trazê-los do erro ao
conhecimento da Verdade”. 38 Eis
então o que fez Cristo e os Apóstolos. Esta via é altíssima. Todavia, se diante
de tal conduta e tal comunhão contínua um homem sente que sua consciência é
muito fraca para alcançar a contemplação, que a sua paz interior é perturbada e
sua consciência escurecida (...), que ele perde sua própria saúde por querer
salvar os outros, enfim que ele saia da liberdade de seu próprio querer e
confunda seu espírito, que tal homem se lembre da palavra do Apóstolo que
exorta e que diz: “O sólido alimento é aquele dos perfeitos”. Que ele retorne
atrás, a fim de não ouvir Cristo lhe dizer em guisa de exemplo: “Médico,
cura-te a ti-mesmo”! Que ele se condene. Que ele guarde a sua própria força.
Que ele sirva menos pela expressão de sua palavra que pela bondade de sua vida,
e que ele ensine menos pelo que diz no que pelo que faz. Enfim, quando ele
conhecer que sua alma está sã, que ele sirva também os outros, e que ele os
cure pela sua própria saúde. Em efeito, é quando se encontra longe dos homens
que ele pode lhes fazer bem mais pelo fervor de boas ações do que por palavras,
pois ele é doente, ele também, tendo necessidade, por sua vez, de ser curado.
“Se um cego conduz outro cego, os dois cairão na fossa (Mt. 15, 14)” 39. São Macário do Egito dedica
particular atenção contra as palavras visando a edificar os outros se elas não
são fundamentadas sobre uma experiência espiritual suficiente,e assinala a
ilusão e o risco do orgulho que podem comportar. 40 Àqueles que pretendem seguir o exemplo dos Apóstolos, ele faz
recordar as palavras de São Paulo: “A minha palavra, e a minha pregação não
consistiu em discursos persuasivos de sabedoria humana, mas em demonstração de
espírito e de poder” (I Cor. 2, 4).
Àqueles que pretendem agir pela caridade, São Macário recorda que a
verdadeira caridade procede de um coração puro (Cf. I Tm. 1, 5). 41 Em efeito, “um é o amor natural da
alma, outro aquele que vem do Espírito Santo”. 42 O primeiro pode ser uma fonte de ilusão: o segundo decorre da
purificação das paixões 43 (que é
proporcional à prática dos Mandamentos), e é ele que nos dá acesso ao
conhecimento autêntico de Deus e das realidades espirituais. 44
Acerca daquilo que deve ser o fundamento de um ensinamento que visa a
edificação do próximo, São Simeão o Novo Teólogo escreve na mesma perspectiva:
“O Senhor não abençoa aqueles que se contentam em ensinar, mas antes aqueles que
pela prática anterior dos Mandamentos, mereceram ver e contemplaram
neles-próprios a luz resplandecente e cintilante do Espírito, e que nesta
visão, neste conhecimento e energia, conheceram pelo Espírito o quê devem falar
e o quê devem ensinar aos outros. É necessário, então desde o início, que
aqueles que se põem a ensinar estejam bem elevados, pois que falando de coisas
que não conhecem não se percam e nem percam com eles aqueles que a eles se
confiam”. 45
Conhecemos o célebre conselho de São Serafim de Sarov: “Adquire a paz
interior e milhares em torno de ti encontrarão a salvação”. Ora, a paz
interior, segundo a tradição ascética, é em primeiro lugar a impassibilidade, o
estado espiritual que decorre da vitória sobre as paixões, e que abre o acesso
ao amor verdadeiro e ao verdadeiro conhecimento de Deus.
Santo Isaac faz remarcar que São Basílio de Cesaréia e São Gregório de
Nissa, antes de serem chamados a tornarem-se Pastores da Igreja e a vir em
ajuda a muitos homens vivendo no mundo, viveram primeiramente na solidão do
deserto praticando os Mandamentos, até que suas almas fossem purificadas e
dignas da contemplação do Espírito. 46
O próprio São Serafim de Sarov viveu mais de trinta anos na solidão antes de
aceitar a receber, aconselhar e conduzir na via da salvação aqueles que a ele
afluíam. E muitos outros Santos fizeram o mesmo.
NOTAS:
1. Tratado do Sacerdócio, VI, 10.
2. Homilias sobre os Atos dos Apóstolos, XX, 4.
3. Ibid.
4. Comentário sobre São Mateus, LIX, 5.
5. Ibid.
6. Homilias sobre o Gênesis, III, 4.
7. Discursos Ascéticos, 58.
8. Homilias sobre os Atos dos Apóstolos, XX, 4.
9. Homilias sobre a Epístola aos Romanos, XVII, 3.
10. Discursos sobre o Gênesis, IX, 2.
11. Discursos Ascéticos, 34.
12. Ibid, 81.
13. Cartas, IV, 9.
14. Centúrias sobre a caridade, I, 71. Cf. Cartas, 2.
15. Centúrias sobre a caridade, II, 30.
16. Cartas, 2.
17. Comentário do Salmo 9,8.
18. Tratado da oração, 125.
19. Centúrias teológicas, gnósticas e práticas, III, 3.
20. Catequeses, VIII, 49-67.
21. Apoftegmas, série alfabética, Arsênio 1.
22. C.f. João Clímaco, A Escada XXVII, 29.
23. Ibid, XXI, 20.
24. ver por exemplo Atanásio de Alexandria, vida de Antônio, XLIX.
25. Discursos ascéticos, 10.
26. Ibid, 13.
27. Ibid, 23.
28. Ibid, 34.
29. Cf. João Clímaco, A Escad, XXI, 34.
30. Apoftegmas, série alfabética, Macário 17.
31. Centúrias teológicas, gnósticas e práticas, I, 83.
32. ver João de Gaza, Cartas 733.
33. Apoftegmas, série dos anônimos, N472.
34. Discursos ascéticos, 23.
35. ver João de Gaza, Cartas 732.
36. Tratado do sacerdócio, VI, 10.
37. ver por exemplo Apoftegmas, XI, 20; Eth. Coll. 13, 2.
38. Homilias (Coll. II), LV, 2. texto paralelo em Homilias (Coll. III), X,
2, 1-2.
39. Discursos ascéticos, 56.
40. Homilias (Coll.II) XXVII, 12.
41. Ibid.
42. Diadoco de Foticéia, cem capítulos gnósticos, XXXIV.
43. Cf. Evágrio o Pôntico, Tratado prático, 8;81. Máximo o Confessor,
Centúrias acerca da caridade, IV, 91.
44. São Máximo o Confessor, Centúrias acerca da caridade IV, 58. João
Clímaco, A Escada, XXX, 21. Nicetas Stethatos, centúrias, I, 1. Gregório
PAlamas, Tríades, II, 2, 19.
45. Centúrias teológicas, gnósticas e práticas, I, 4.
46. Cartas, 4.
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