Testemunhar em uma sociedade secularizada
LOSSKY Nicolas
Contacts XXXVIII année – nº136 /
4e trimestre 1986
tradução de monja Rebeca
(Pereira)
A Igreja Ortodoxa
conheceu no XX século a confrontação com o mundo secularizado sob diversas
formas. A dispersão dos ortodoxos pelo mundo inteiro, por razões econômicas e
políticas, teve por efeito descobrir culturas de países tradicionalmente
ortodoxos à existência minoritária nos países ocidentais em vias de lenta
secularização – fenômeno iniciado já há algum tempo, mas fortemente acelerado
no XX século.
É
a secularização que conhecemos todos em nossos países industrializados, em
particular da Europa ocidental. Trata-se deste estado da sociedade onde o ser
humano é mais ou menos consciente e implicitamente, definido pelas suas
necessidades de base, econômicas, sexuais, dominantes.
Resultado,
a necessidade de transcendência, a nostalgia de Deus nas sociedades
“tolerantes”, tornou-se uma das múltiplas facetas da existência, reconhecidas
como um dos “direitos” que o ser humano pode reivindicar. Trata-se, cada vez
mais, de um direito “privado” para um ser humano fortemente compartimentado,
sem grande relação com os outros compartimentos que, sobressaem da vida social
e política, únicos aspectos verdadeiramente “sérios” da vida humana.
Conhecemos
todos este tipo de secularização que caracteriza nosso mundo livre, fundada
sobre o bem-estar material e sobre uma concepção implicitamente materialista do
homem, onde a transcendência é uma opção “a mais”. É uma secularização mais ou
menos inconsciente, resultado de certo desenvolvimento cego, em partes, de um
humanismo fechado: o homem é um ser auto-suficiente, fechado em si-mesmo,
divinizado em si-mesmo. Não tem mais lugar ou razão de ser. Ele não serve mais,
ou melhor a rigor, a recobrir o quê ainda permanece, pelo momento, inexplicado
cientificamente.
A
Igreja Ortodoxa, quanto a ela, conheceu ao curso deste século e sempre conheceu
em outros lugares, uma secularização dum outro tipo: uma secularização
totalmente consciente, ideologicamente fundada, um ateísmo ativo cujo objetivo
confessado é a erradicação, a termo, da dimensão religiosa do homem, que é um
ser inteiramente social, sem transcedência alguma. Trata-se de uma
secularização que se torna-se religião de
Estado.
Eu
gostaria de falar, poderíamos melhor compreender, da Igreja Ortodoxa Russa da
qual faço parte. Não é pelo espírito de paróquia que o faço mas antes porque
tenho a convicção de que o quê a Igreja russa vive desde a Revolução
bolchevista de 1917 afetou a Igreja ortodoxa inteiramente, e pode ser por lá: o
quê ela viveu, e o quê ela vive, concerne outros cristãos do mundo e , ainda
mais longe, todos os homens.
Em
efeito, o quê se passou em 1917 na Rússia foi o fim brutal e sangrento de uma
situação multi-secular. Parece-me importante não esquecer que a queda do
Império russo não passou de um acontecimento puramente político. Trata-se da
supressão repentina, e talvez para sempre, duma situação na e da Igreja, vista
por muitos, como quase que perfeita: o império cristão.
Depois
da queda de Constantinopla em 1453, aos olhos de muitos ortodoxos o archote de
Bizâncio foi retomado, pouco tempo depois, pelo que devia vir a ser o Império
da Rússia. Ora, ainda uma vez, aos olhos de muitos ortodoxos, a célebre
“sinfonia” bizantina é a existência ideal para a Igreja daqui de baixo: o
casamento perfeito entre a Igreja e o Império cristão, onde o Imperador,
enquanto primeiro leigo da Igreja (leigo no sentido nobre, ativo), é tão
responsável pela fé e pela vida da Igreja como o patriarca e o episcopado.
Isto
é a tal ponto a convicção íntima de muitos ortodoxos, sobretudo russos, para os
quais o Império é uma realidade perfeitamente recente, que não somente
consideram esta situação político-religiosa como uma imagem do Reino celeste
mas, como sugeria um teólogo ortodoxo falecido recentemente, o Padre Alexandre
Schmemann, eles invertem a proposição e pensam, quase que conscientemente, que
o Reino dos Céus será necessariamente à imagem do Império sinfônico de tipo
bizantino. (A maioria dos ortodoxos que conhecei aqui, não são a este respeito,
representativos).
É
o desabamento repentino desta situação considerada como imutável e
representando com sorte de garantia a perenidade do ideal bizantino, que a
Igreja ortodoxa do mundo inteiro assistiu.
A
Igreja ortodoxa russa, de sua parte, se encontrava repentinamente desapossada
de uma situação que havia tendência a se instalar desde um pouco mais de 200
anos: Igreja do Estado mais ou menos funcionalizada, seu Santo Sínodo
tornara-se um ministério do Estado dentre os outros, com um ministro leigo na
maior parte do tempo. O clero é uma classe social à parte (é-se geralmente
padre de pai a filho); devemos ser membros nominalmente da Igreja (com
obrigação pelos funcionários de realizar um mínimo de dever religioso). Em
outros termos, presidíamos a uma situação mais ou menos secularizada no sentido
da secularização lenta, questionada mais acima.
Com
certeza, só evoco aqui aspectos negativos de uma situação da Igreja russa que
tinha outras coisas a dizer. O período dito “sinodal” da Igreja russa viu
outras coisas positivas: o resplandecer de um São Serafim de Sarov, o
renascimento de pensamento religioso e dos estudos patrísticos, a Filocalia, o
concílio de 1917, a vinda ao cristianismo de socialistas marxistas ou
marxizantes – Serguei Bulgakov, Nicolas Berdiaev, Georges Fedotov – que
trouxeram com eles, do socialismo, a preocupação social e então política.
De
um dia ou outro, a Igreja se encontrou privada de todos os seus privilégios e,
sobretudo confrontada a uma questão crucial: a Igreja está ligada até a
identificação com o Estado “cristão” que vinha de desaparecer? Se sim, ela não
pode mais existir sob o novo regime ateu e perseguidor. (Alguns o pensaram e
continuam ainda a pensar).
Todavia,
dentre os responsáveis da Igreja russa que sobreviveram às execuções, aos
emprisionamentos e à deportação, muitos compreenderam que não somente a Igreja
da Rússia não estava identificada ao Império, o quanto cristão que ele fosse,
mas se lembraram e descobriram que a Igreja, em todos os tempos e em todos os
lugares não pode se identificar com nenhum regime sócio-político, porque ela
não é deste mundo. Em contrapartida, compreenderam que ela pode e deve existir
sob não importa qual regime sócio-político (que seja até anticristão) porque
ela é chamada a existir para a salvação do mundo, e não para o seu
bem-estar interno.
A
respeito disto, é interessante constatar que um dos bispos que tomaram em mãos
os afazeres da Igreja após a morte do Patriarca Tikon, o futuro Patriarca
Sérgio, havia dito a seus estudantes desde 1905 que a Igreja não podia em caso
algum se identificar a uma situação sócio-política qualquer e, por conseguinte, “se instalar” nela.
É ele também que diz com nitidez, pouco depois de 1925, que o marxismo e o
cristianismo eram filosoficamente incompatíveis
(antropologia), mas que um cristão podia ser um cidadão leal de seu próprio
país, sendo este ou marxista ou ateu.
Em
seguida, a Igreja na Rússia estava ao preço de sangue dos mártires e também, é
necessário dizer, ao preço dos compromissos da parte dos responsáveis
(geralmente contrários e forçados a discursarem mentiras). E portanto esta
Igreja reduzida ao silêncio por um regime que prega uma sociedade totalmente
secularizada, encontra (em seu silêncio) um papel profético no seio desta
sociedade. O admirável trabalho que fazem um grandíssimo número de pastores
(bispos e padres) por detrás das cortinas da
mentira traz frutos: cada vez mais as gentes vêem pedir o batismo nesta Igreja,
numa idade onde nos perguntamos acerca da morte e do verdadeiro sentido da
vida. A educação recebida, o marxismo-leninismo não tem nada a oferecer.
A
partir do exemplo da Igreja russa, os outros ortodoxos quase todos tiraram uma
lição vital: o lembrete, sem dúvida, quisto por Deus, que a Igreja não é
identificável a nenhuma situação sócio-política e que ela é, por conseguinte,
chamada a esclarecer todas as
situações sócio-políticas: que o esclarecimento, ou o testemunho pode ter
formas diversas, segundo as
situações sócio-políticas (e segundo também a vocação de cada um) indo da
predicação sobre os tetos, ao silêncio onde somente o comportamento testemunha
de Cristo.
No
que concerne aos ortodoxos vivendo em minoria, geralmente enfermos, em países
onde, com os outros cristãos, são confrontados à sociedade que se seculariza de
maneira menos militante que nos países do Leste, foram eles também obrigados a
tomarem algumas lições de história. Desraigados de partida, minoritários em
seguida, tiveram a escolha entre a vida fechada em um gueto bem protegido no
meio de um mundo no qual participamos (ou recusamos participar) “por outro
lugar” (quer dizer, fora de seu cristianismo ortodoxo) e o encontro com os
outros cristãos (e os não cristãos), o que implica a questão fundamental: o que
faz a própria essência íntima do cristianismo ortodoxo?
Se
a resposta é uma identificação nostálgica deste cristianismo com uma situação
geográfica, política, étnica e cultural, então não há verdadeiro encontro:
existe somente uma confrontação comparativa. Se a resposta não é esta
identificação, então ela conduz à necessidade de distinguir o secundário do
fundamental. Ela leva a uma redescoberta, por um processo de humildade, de
despojamento, de kenosis da Igreja a partir de sua natureza mais profunda: o
anúncio da Boa Nova do Cristo morto e ressuscitado que oferece a todos os
homens a participação à vida nova. A Igreja, o Corpo de Cristo, é o local (não
geográfico) onde esta participação já é possível. Consequentemente, seu lugar
no mundo é aquele do coração desta vida nova já invisivelmente e
misteriosamente presente. Seu papel é o de descobrir no senso profundo do “uncover”, de
desvendar, em todas as situações, em todos os sofrimentos humanos o esclarecer
divino.
O
papel profético da Igreja não é o de predizer o porvir (prometendo um mundo
melhor para amanhã). Um bispo da Igreja da Inglaterra do XVII século, Lancelot
Andrewes, grande pregador, dizia que no Antigo Testamento, quando o Espírito
Santo falava aos profetas, Ele anunciava o Cristo; no Novo Testamento, a
profecia, é o Espírito Santo que fala pelos predicadores (todos aqueles
que de uma maneira ou de outra anunciam a Boa Nova) e não é
mais a predicação do porvir, mas a abertura, a descoberta, de cada situação em
sua dimensão divina, em seu esclarecimento divino. Pois que toda situação é
susceptível de ser transfigurada quando nós (a Igreja) nos lembramos pelas
nossas palavras e pela nossa vida (por vezes pelo preço de
nossa vida) que o homem é à imagem de Deus e que por conseqüência, ele responde,
a cada instante, enquanto sacerdote e rei, a tudo o que Deus criou. Em primeiro
lugar, pelos homens, nossos contemporâneos.
Nosso
papel na sociedade secularizada, não é antes de tudo o de mudar as estruturas
para que elas mudem o homem. Nosso papel é o de buscar deixar Deus
falar a cada ser humano que encontramos para que em sua situação, em
seu sofrimento, em sua alegria, ele descubra que ele é à imagem de Deus e amado
de Deus, e que se ponha também a difundir o resplendor desta descoberta em
torno de si. Assim então as estruturas podem, elas também, melhorar, em conseqüência de
uma maior consciência dos seres humanos.
Quanto
as nossas estruturas na Igreja, no estado atual do mundo secularizado,
tenderiam pela fraqueza humana a se secularizarem, elas também, e a tornarem-se
por ai mais um objeto de escândalo do que um instrumento de salvação. A nós
cabe-nos lembrar-se, com uma memória ativa, que nossas estruturas devem
refletir a natureza profunda da Igreja, Corpo de Cristo, imagem do Pai e
portadora do Espírito Santo. Consequentemente, não podem elas ser carismáticas
e jamais políticas. Não são estruturas de poder. Hierarquia não é dominação. Se
na humildade, na kenosis, nossas estruturas de Igreja não deixam de
tornar-se carismáticas, no próprio sentido, quer dizer, vividas como o
exercício em Igreja dos dons do Espírito Santo, podem tornar-se um sinal
profético para o mundo que crê.
Eu
gostaria de acrescentar que para nós ortodoxos, a este respeito, o
desafio ecumênico é particularmente precioso. Ele deveria nos
forçar a nos recordarmos de maneira permanente e sempre renovada da verdadeira
natureza da Ortodoxia, aquela que subsiste no melhor de nosso ensinamento e é
nada além do que a fidelidade à fé católica e apostólica. Ele deveria, então,
nos forçar a nos reconverteremos perpetuamente à pureza da Ortodoxia, em nossa existência histórica tanto
quanto em nosso ensinamento.
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