Os fundamentos teológicos da ética cristã
BRECK John
tradução de monja Rebeca (Pereira)
(...) Deus é o Alfa e o Ômega da vida humana, O
Criador, o Redentor e a Realização última de toda existência pessoal. Toda
pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus (Gn.1,26-27). Toda pessoa sem exceção é apta à santidade e
à theosis ou deificação: uma plena e eterna participação às energias divinas ou
atributos divinos. É por esta razão que a Tradição Cristã põe tão fortemente o
acento sobre o caráter sagrado da vida humana. Este caráter sagrado, uma vez
ainda, tem sua origem em Deus e é concedido como uma pura expressão de Seu Amor
(...) é Dom: o Dom da Vida própria de Deus e de Sua Santidade, que nos foi
conferida independentemente de todo o mérito, valor ou realização pessoal.
Isolada deste Dom, a vida é absurda, sem sentido algum (...)
A Vida Moral: Liberdade de Espírito
O
reconhecimento e a celebração de Deus como Mestre de nossa vida é o fundamento
sobre o qual edificamos a compreensão e a esperança que levam à uma conduta
cristã, uma conduta que se conforma à vontade divina e manifesta os atributos
divinos: Justiça e Amor. A confissão de Deus como Senhor e Sua celebração na
Liturgia da Igreja são, por esta razão, o fundamento da teologia moral cristã.
A
problemática da teologia moral, que cria dilemas éticos em nossa vida
cotidiana, provém do conflito existente entre a nossa confissão de fé e nossas
“paixões”, os “impulsos da carne” que conduzem ao pecado e à separação com
Deus, que é a fonte e a plenitude da existência humana. Sem esse conflito, nós
conheceríamos pela nossa própria natureza a vontade de Deus e conformaríamos
nossas atitudes e nossas ações à esta vontade. O pecado, portanto, resulta da
autonomia humana conduzida ao absurdo que corrompeu nossa natureza criada e a
capacidade natural de todos, em virtude da divina imagem na qual ela é
investida, de conhecer, de amar Deus e de , então, obedecê-Lo acima de tudo.
“Todos pecaram e
destituídos estão da Glória de Deus” (Rm.3,23). Cada um de nós sofre os
efeitos do nosso próprio estado de pecado. É por este fato mesmo que os mais
santos dentre nós devem afrontar este conflito entre a razão e as paixões.
Atingir as
qualidades de bondade, de amor, de misericórdia e de justiça requer uma
disciplina – uma ascese ou um combate – de arrependimento contínuo. O movimento
de “retorno” implicado pela metanóia ou
arrependimento não pode, todavia, ser um retorno a nós próprios, à nossa
própria natureza caída e corrompida; mas sim um retorno a Deus. A conduta ética
cristã não pode ser pregada a partir de idéias ou objetivos humanos; suas
condições e suas metas, tal como a própria vida humana, devem estar ancorados
em Deus, o único que determina aquilo que é bom, justo e reto, e que nos revela
esta determinação pela Escritura, a oração e outros aspectos da experiência da
vida em Igreja.
O Amor Trinitário
Eis porque a
ética cristã deve fundamentar-se sobre a Revelação. Se
devemos empreender um combate para conformar nossa vontade, nossos
desejos e nossas ações à vontade de Deus, devemos então saber o que a vontade
divina exige. De fato, como é que Deus gostaria que nós nos conduzíssemos? Se
procurarmos a resposta nas Escrituras e no ensinamento – A Tradição – da
Igreja, algumas indicações emergem. Uma dentre elas se destaca particularmente: “Deus é Amor”, como
nos diz o apóstolo João (I Jo.4,7-12). Em
conseqüência, nossas atitudes e nossas ações vão refletir o amor oblativo,
sacrifical que resplandeceu de forma particular na crucifixão de Jesus Cristo,
o Filho Bem-Amado do Pai.
Esse amor
revelado é essencialmente trinitário, é uma comunhão de Dom dividida de maneira
igual entre as Três Pessoas Divinas. Desta forma, ele é sempre “dirigido aos
autores”, ele consiste de dom de si, oferecido livre e jubilosamente ao outro e
para o outro. Nossa resposta a este amor é também uma resposta em comunidade.
Ao saber que somos objetos da profunda e tenra afeição de Deus, oferecemos a
Ele, de nossa parte, o nosso amor, pela nossa oração e nossa fidelidade aos
Seus mandamentos. Ao mesmo tempo nós estendemos nosso amor ao outro (próximo),
a todo “outro” que tal como nós mesmos traz nos recônditos da alma a imagem da
divina beleza e da vida divina. Não há limites nem qualificações para tal amor.
Ele deve estender-se igualmente e plenamente ao amigo e ao inimigo, ao ortodoxo
e ao não ortodoxo, qualquer que seja sua identidade étnica, sua classe social,
sua raça, sua religião ou seu sexo. Deus revelou-nos o Seu amor sem medidas; e
este amor confere à cada ser humano um valor e uma dignidade infinitas. Todo
“outro” é então digno do nosso amor, ele requer, mesmo, nosso amor. Olivier
Clément o exprime de uma maneira simples, mas profunda ao dizer que “todo homem
tem direito a uma compaixão infinita” (...)
A revelação
da vontade do Pai no e pelo Filho e o Espírito é raramente específica no ponto
de vista das ações particulares que devem ser levadas em certas situações
concretas. À nossa época, onde inquietudes avançadas têm lugar na tecnologia
biomédica, somos geralmente confrontados a decisões pelas quais parece-nos não
ter diretrizes confiáveis nas fontes da revelação, compreendidas nas Sagradas
Escrituras. Os Dez Mandamentos (ex. 20; Dt.5),
as Bem-Aventuranças (Mt.5; Lc.6) e
outras regras de vida similares (cf: Ef.5; Cl.3) assim
como os ensinamentos específicos de Jesus, de Paulo e de outros autores
apostólicos (como por exemplo a respeito do casamento e divórcio: Mt. 19, 3-12;
ICo. 7, 10-16; ou sobre a Ressurreição e o Julgamento: Mt. 25, 31-46; Jo. 5,
19-29; ICo 15, 34-58) nos fornecem condutas preciosas apesar de seu pequeno
número, para tomadas de decisões éticas. Elas “condenam” certas atividades
(tais como a idolatria, o matar, o furto, o adultério) e nos prescrevem outras
atividades (a pureza, de coração, a reconciliação, a caridade).
A reflexão ética deve proceder da Fé
Cristã
Ao proceder
desta maneira, deveríamos ser capazes de indicar como a tradição bíblica e
patrística podem exprimir-se diretamente e com força acerca das questões de
ética que aparecem tão complexas aos dias de hoje. A questão fundamental a
guardar o espírito é esta: de que maneira princípios teológicos abstratos podem
ser aplicados com benefícios em “momentos éticos” específicos, sobretudo quando
decisões de vida e de morte devem ser tomadas? De outra forma perguntamos: como
que os princípios de nossa fé podem nos ajudar a discernir a vontade de Deus em
situações concretas, e a empreender ações que se conformam à esta vontade
divina, para o nosso próprio bem-estar e o daquele por quem somos responsáveis?
(...)
A pessoa humana: Da imagem à
semelhança
Se somos, de
fato, obrigados, como o afirma Yannaras, a prestar contas na vida moral da “aventura existencial
de nossa liberdade”, é porque a queda (compreendida individualmente e
coletivamente) nos força, de forma permanente, à uma situação de escolha.
Pertence à nós a livre decisão de nos rebelarmos contra a vontade de Deus, que
nos exilou do paraíso. A criatura humana, segundo São Basílio “é um animal que
recebeu a ordem de tornar-se deus” (citado por São Gregório de Nazianzo, In
Oratio 43). Todavia ao sucumbirmos à tentação, alienamo-nos de Deus e
traímos nossa vocação por excelência. Em Cristo, temos a possibilidade de
progredir de “glória
e glória” (II Co. 3,18) à uma plena e perfeita comunhão com a vida
divina que aporta à humanidade (a personalidade autêntica) seu fundamento
indispensável. No entanto a necessidade constante de escolher entre a luz e a
verdade de uma parte, as trevas e o engano de outra, nos põe em um combate
interior incessante contra as tentações demoníacas e nossa tendência a auto
idolatria. A ascese autêntica é então essencial para nosso crescimento na via
da salvação.
Isto quer
dizer que a iniciativa de Deus deve encontrar a resposta do homem, pelo
exercício da vontade humana – pelo arrependimento, a oração e as obras de
caridade – que nos tornam aptos, enquanto portadores da divina imagem, a
progredir através de um processo de purificação e de santificação interior, ao
atingir da divina semelhança. São Diádoco exprime tal resposta ascética baseada
sobre o amor, por meio de sua eloqüência costumeira: “Nós todos, os
homens, todos nós somos feitos à imagem de Deus; mas ser à semelhança de Deus é
próprio somente àqueles que, por muito amor, subjugaram a Deus sua liberdade.
Quando, em efeito, nós não somos mais nós mesmos, eis que então
somos semelhantes àquele que nos reconciliou com Ele pelo amor” (Discursos Ascéticos) (...)
A consciência e o discernimento
São Máximo
descreve a consciência como uma amiga íntima, uma amiga que nos aconselha em
fazer o melhor, nos revela a vontade de Deus, nos protege e nos liberta da
influência corruptora de nossas próprias razões e de nossos sentimentos ou
“paixões”. Mais comovente ainda São Máximo descreve a consciência como uma
mediadora que toma a nossa defesa e que nos protege antes que venha o
julgamento de Deus. Ao mesmo tempo, ela põe o fundamento de nossa comunhão
eterna com Deus na medida onde ela nos guia para tornarmo-nos “perfeitos” como
nosso Pai Celeste é perfeito (...)
Muitas
questões nas quais somos confrontados no domínio da bioética, ou não admitem
solução alguma específica ou não receberam da parte dos teólogos e de outras
pessoas com autoridade na Igreja a atenção necessária para fornecer as
respostas claras e definitivas que nós buscamos. Mesmo as tentativas mais
sinceras para analisar tal ou tal questão em termos de prescrições
eclesiásticas nos deixam um sentimento de frustração impotente. Uma decisão,
pode ser critica, pode ser uma questão de vida ou morte, deve ser tomada e nós
não temos recursos para decidir de uma maneira que “pareça justa” ou que se
conforme manifestamente àquilo que nós sabemos ser a vontade de Deus. Geralmente,
de fato, a vontade de Deus não é totalmente clara e a tentação pode ser
simplesmente deixar cair os braços em sinal de desespero.
Uma consciência conforme ao Espírito
da Igreja
Isto quer
dizer, igualmente, que as decisões críticas que talvez venhamos a tomar devem
ser, de fato, tomadas ao interior da comunidade que é a Igreja. É a comunidade
dos vivos e dos mortos, dos “santos” de todos os tempos que conosco estão no
corpo de Cristo universal. De uma parte, nos dirigimos a eles para pedirmos
conselho pelo diálogo pessoal ou pelos escritos que eles deixaram. Quantos
dentre nós, nos dias de hoje, encontraram uma inspiração nova e cheia de Graça
ao ler textos deixados por Nicolau Motovilov (que transcreveu suas conversações
com São Serafim de Sarov sobre a aquisição do Espírito Santo), o Padre
Alexandre Eltchaninov (presbítero da emigração russa, morto em 1934, autor de
um Jornal Espiritual), ou ainda São Siluan o Athonita (monge russo da Santa
Montanha, que repousa em 1938, sendo canonizado em 1988). De outra
parte, pedimos a oração dos santos, sua intercessão por nós, a fim
de sermos guiados como convêm. Pedimos para sermos guiados pela inspiração da
Graça e pelo poder do Espírito Santo, a fim de agirmos conforme à vontade de
Deus para nós próprios e para todas as outras pessoas concernentes.
Através de nosso Batismo nos
tornamos
“membros uns dos outros”
Temos toda a
necessidade, sendo clérigos ou leigos, de construirmos para nós-próprios “fontes de sustento” pessoais
compostas de experientes e confiáveis amigos próximos que podem nos aconselhar
e nos avisar quando temos que tomar decisões capitais. Isto quer dizer também
que devemos, enquanto membros da Igreja, reconhecer e aceitar nossa
responsabilidade de uns para com os outros, a fim de assegurar a assistência, o
conselho e a intercessão necessários. Quando a morte ameaça, ou uma doença
crônica leva um de nós à depressão e ao desespero, ou quando um casal de amigos
toma o caminho do divórcio, muito geralmente temos a tendência a ignorar o
problema. Nós não “queremos nos intrometer”. É a mesma atitude de autoproteção,
transposta no contexto paroquial, que nos faz recuar, quando vemos alguém
deitado sob o leito do desespero. Desde então, não nos admiremos que os
especialistas ortodoxos da teologia moral sintam-se obrigados a desenvolverem
uma ética fundada sobre o imperativo do Dom de si e do amor sacrifical.
No fim das
contas, há uma única razão pela qual os cristãos aceitam a “via estreita” que
implica o fato de viver segundo as regras de uma moral. Se escolhermos o amor
oblativo no lugar do hedonismo, Deus no lugar de Manon, é porque somos
fundamentalmente convencidos – sobre a base de nossa própria experiência assim
como a partir do testemunho dos outros que Deus, Ele próprio, é Amor, que Ele é
em verdade o Autor e o Fim de nossa vida, que somente Ele confere o sentido
desta vida, objetivo e valor. Ele está, então, intimamente presente em cada
crise que passamos e em cada escolha que fazemos. Tais crises e tais escolhas
são o nosso lote cotidiano. Elas não podem ser evitadas, pois recusar
decidi-las é então recusar agir, o que é em si uma falta moral.
Quando
acontece, o que é freqüente, de não podermos discernir a vontade de Deus em
dada situação, então nos lembramos que Satanás o tentador, trabalha mais
eficazmente através de nossa confusão, nossa frustração, nosso desespero.
Quando nos sentimos obrigados a tomar uma decisão que tem conseqüências sérias,
mas os elementos necessários para discernir a vontade de Deus nos faltam, então
devemos recuar e recordar que isto é realmente um jogo. Devemos encontrar a
intuição dos grandes ascetas da Igreja: momentos assim críticos em nossas vidas
são campos de batalha, arenas do Espírito nas quais a mais importante decisão
que possamos tomar é de nos remetermos nós próprios e os outros, também
participantes, entre as mãos de Deus que é bom e misericordioso.
Confiar toda nossa vida a Cristo
nosso Deus
Este ato de
total submissão é necessário, que nos sintamos, ou não, conscientes de
partilhar o espírito do Cristo e de aí conformar todas nossas decisões e nossas
ações. Isto requer um profundo ato de fé e uma grande dose de humildade para
admitir nossos próprios limites quando realizamos escolhas morais e remetemos
este processo de tomada de decisões em boas mãos. É necessário humildade e
confiança para dirigir-se ao próximo e lhe suplicar de nos acompanhar e
assistir com seu amor e intercessão. É isto precisamente o que nos é pedido
enquanto membros de um corpo e membros uns dos outros. A primeira e a última
decisão que temos de tomar é, então, a decisão de submeter nossas deliberações
morais àquele que é a cabeça deste corpo, com firme propósito de que todas as
ações que nós realizamos em toda situação dada são para a Sua Glória, para a
salvação daqueles que Ele confiou aos nossos cuidados. (...)
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