Ícone: Veículo de Missão

PEREIRA monja Rebeca


O ícone é o instrumento sagrado da experiência com Deus através da oração, quer pessoal ou comunitária, ver litúrgica.

Ele nasce em Bizâncio. Seu cenário é a viva Tradição transmitida pela dinâmica da Igreja Ortodoxa.

“A Igreja Ortodoxa guardou intacta uma riqueza imensa no domínio da Liturgia e do pensamento  patrístico, mas também naquele da arte sacra. Sabemos que a veneração dos ícones ai ocupa um lugar muito importante: ensinar que o ícone não é uma simples imagem, nem uma decoração, nem mesmo, somente uma ilustração da Escritura Sagrada. Ele é algo a mais, equivalendo à mensagem evangélica, um objeto cultual que faz parte integrante da vida litúrgica. Isto explica a importância que a Igreja atribui à imagem; não à uma representação qualquer, mas à imagem específica que ela própria elaborou no curso de sua história, em sua luta contra o paganismo e as heresias, à imagem que ela pagou com o sangue de um grande número de mártires e confessores durante o período iconoclasta: o ícone ortodoxo.

No ícone, a Igreja vê não um dos aspectos do ensinamento ortodoxo, mas a expressão da Ortodoxia em seu todo, da Ortodoxia como tal. O ícone, imagem sagrada, é uma das manifestações da Tradição da Igreja com o mesmo título que a tradição escrita e a tradição oral. A veneração dos ícones de Cristo, da Deípara (ou Mãe de Deus), dos Anjos e dos Santos é um dogma da fé, formulado no VII Concílio Ecumênico, que decorre do dogma fundamental da Igreja: sua Confissão do Deus tornado Homem. A imagem d´Ele é um testemunho de Sua Encarnação verdadeira e não ilusória. Assim, é com razão que o ícone é geralmente chamdao “Teologia em Imagem” – o que a Igreja exprime em sua Liturgia.

Os sticheras e os cânones das Festas de diversos ícones, por exemplo aquele da Santa Face aos 16 de agosto e particularmente o serviço litúrgico do Triunfo da Ortodoxia, revelando o sentido da imagem em toda sua profundidade. Logo, é compreensível que seu conteúdo e seu sentido façam parte do estudo da teologia, com o mesmo título que o estudo da Santa Escritura.

A Igreja Ortodoxa sempre lutou para defender sua arte sacra contra a laicização. Pela voz de seus Concílios, de seus Hierarcas, de seus fiéis, ela falava pela pureza da imagem sagrada, contra a penetração de elementos estrangeiros, próprios à arte profana. Não esqueçamos que assim como o pensamento no domínio da religião não esteve sempre à altura da teologia assim também a criação artística não esteve sempre à altura da Iconografia autêntica. Eis porque não podemos considerar cada imagem, mesmo antiga e bela, como uma autoridade infalível, e isto muito menos se ela foi feita numa época de decadência como a nossa: tal imagem pode corresponder ao ensinamento da Igreja ou não, ela pode enganar no lugar de ensinar.

Em poucas palavras, o ensinamento da Igreja pode ser distorcido tanto pela imagem como pela palavra. Eis porque a Igreja sempre lutou não pela qualidade artística de sua arte, mas por sua autenticidade, não por sua beleza, mas por sua verdade”.

As palavras acima são parte da Introdução de uma das melhores obras em Iconografia & Iconologia de nossos tempos – o livro “A Teologia do Ícone” de Léonide Ouspensky. Russo emigrante em França após a Revolução de Outubro, ateu convertido, iconógrafo e teólogo, este gênio soube sintetizar o cerne da transmissão e frutificar apostolica e tradicionalmente sua vocação missionária.

Como se sabe, o Grande Império Romano se divide em dada altura da história. Este marco que se concretiza em 1054 só delimita a fronteira há tempos estabelecida e existente: a identidade oriental e ocidental, o próprio ethos do homem do Oriente e aquele do Ocidente.

Consequências deste cisma e “afastamento” natural conduziram ao panorama cristão atual. Se dizemos que o Patriarca Abraão foi o pai de três confissões: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, podemos dizer que o Cristianismo conta com a Igreja Ortodoxa, as Igrejas Ortodoxas do Oriente (coptas, etíopes, armênios e sírio-jacobitas), a Igreja Católico-Romana e a Igreja Protestante.

O que reúne (não no sentido ecumênico errôneo atual) estas Igrejas é justamente a fé na pessoa de Jesus Cristo. E justamente a Cristologia e as heresias do período cristológico que as separa. A Encarnação de Cristo foi a maior revolução que a humanidade sofreu. O ícone é todo ele fundamentado neste dogma.

Já no século IV, Ario, com sua ideia de uma Cristologia manchada pela herança helenística, conduz inevitavelmente ao conflito entre o simbolismo origenista e o historismo evangélico. Ele é anatemizado no ano de 325, pelo I Concílio Ecumênico, em Niceia – este Concílio define a Santíssima Trindade.

No século seguinte, o herético Nestório, Patriarca de Constantinopla, defende uma ‘doutrina’ que por enfatizar a natureza humana de Cristo, dizia que o Logos somente habitava em Cristo como um Templo. No caso, Ele era apenas um Theoporos (portador de Deus) e consequentemente Maria deveria ser chamada de Christotokos (Aquela que dá à luz a Cristo) e não Theotokos (Aquela que dá à luz a Deus). O III Concílio Ecumênico, reunido em Éfeso, declara que Cristo é uma única Pessoa, e não duas ‘pessoas’ separadas: plenamente Deus e plenamente homem, com uma alma racional e corpo. Maria é a Deípara (Theotokos) pelo fato de ter dado à luz não a um simples homem, antes ao Deus-Homem. A união das duas naturezas em Cristo se faz de maneira que uma não interfira na outra.

O IV Concílio Ecumênico, reunido no século V na Calcedônia justamente se desenrola sobre a problemática do Monofisismo – posição cristológica defendendo que após a união do divino e o humano na Encarnação, Jesus Cristo tinha apenas uma “natureza”, quer divina quer uma síntese do divino e do humano. O Concílio afirma que Jesus Cristo, Deus-Homem, é uma Pessoa com duas naturezas - divina e humana.

As Igrejas acima citadas respeitam, em harmonia e comunhão, alguns destes Concílios. É justamente estes Concílios que marcam a ruptura entre elas. As Igrejas Ortodoxas do Oriente não aceitam o Concílio de Calcedônia, este também é o último concílio que muitos anglicanos e a maioria dos protestantes consideram como ecumênico.

Mais tarde, o VII Concílio Ecumênico restaura o uso e a veneração das santas imagens outrora abolida por enérgicas medidas imperiais. Depois de sangrentos combates e querelas, o Ícone, enfim, sêla o Triunfo da Ortodoxia (a verdadeira glorificação: ortho + doxia)

A Pessoa de Cristo está em foque no contexto da fé cristã; esta Pessoa é o Ícone de Deus, ou melhor, o Ícone par excellence – a Face divina encarnada na matéria. Eis o nosso Salvador: Cristo, Deus-Homem.

A concepção de Cristo é logo diversificada em cada uma destas comunidades cristãs, mediante o diálogo, a relação de fé e a própria aliança que elas vivem com Deus, através de Seu Logos (Palavra) Encarnado.

Vemos que a Igreja Ortodoxa é a guardiã do legado desta Revelação da Imagem de Cristo – o Ícone.

As Igrejas Ortodoxas Orientais também guardaram a representação pictória dos primeiros tempos do Cristianismo. No entanto, as diferenças são notórias... a Arte Iconográfica etíope ou copta, por exemplo, são bem mais ilustrativas que a Iconografia Bizantina, conservando, por um lado, sua origem semita.

A Igreja Católico-Romana, por se ver afastada da realidade de Confissão do Ícone (período Iconoclasta), perde o fator principal: o legado da Tradição. Sua arte pictória se seculariza em pouco tempo. O realismo ganha espaço... o corpo, a carne, são bem retratados. A matéria pesa sobre o espírito. É uma arte sacra sim, mas que sempre muda... que sempre precisa se inovar e responder à efemeridade do tempo corruptor. Ela cansa, se cansa, se carrega. Surgem as estátuas. Retorno à uma realidade (pagã) estática, sem vida, quase morta... que geralmente retrata o suplício, o sofrimento. Parece querer dizer que a santidade se mede por esforços humanos. Esta arte perde o sentido do mistério, da presença do divino, enfim, da ação do Espírito Santo que deifica a matéria.

A posição dos Protestantes face as imagens é bem restrita e clara. A palavra reina sobre a imagem. A Palavra (Logos de Deus) parece não Se encarnar, não tomar corpo, não tomar vida, não agir, obrar, transfigurar a matéria, a criação e as criaturas, por fim.

“Se tentássemos fazer uma imagem do Deus Invisível, isso seria de fato pecaminoso. É impossível retratar aquilo que não tem corpo por ser invisível, inscircunscrito e sem forma. Igualmente, se fizermos imagens de homens, crendo que são deuses, e as adorássemos como se fossem Deus, seríamos verdadeiros ímpios. Não estamos fazendo nenhuma destas coisas. Mas, não estamos nos enganando se fizermos uma imagem do Deus encarnado, que foi visto sobre a Terra na carne, associado aos homens e em Sua bondade indizível assumiu a natureza, os sentimentos, a forma e a cor de nossa carne. Pois nós queremos ver como Ele viu, como o Apóstolo diz: “Agora, nós vemos como por um espelho em enigmas” (I Cor. 13:12). Eis que o ícone é semelhantemente uma espécie de espelho, moldado às limitações de nossa natureza física, visto mesmo que nossa mente conquistando o grau próximo de abstração, nunca poderá descartar sua natureza corpórea” (Sobre as Santas Imagens – São João Damasceno).

O ícone, no entanto, chega ao Ocidente. Sua presença acalma, encanta, conquista... ortodoxos convertidos, católicos, protestantes, ateus, homens, enfim, ocidentais e ocidentalizados. Homens modulados por um ethos que questiona, que apura a racionalidade em sua busca de ver, nem que seja inconscientemente, a Face de Deus. Homens que concebem a fé de uma maneira mais escolástica, característica ao Ocidente.

O ícone se faz deles também. Eis a alvorada de um convite à Tradição da Iconografia Ortodoxa. Como veicular sua riqueza a um público não acostumado organicamente à plenitude desta arte?

"Cristãos do Ocidente se interessam pelo ícone, bem como pela Liturgia e a espiritualidade ortodoxa. Tal curiosidade parte de diversas necessidades, o relax esotérico, a emoção estética, a simpatia religiosa e as percepções de carências na Tradição Romana."

Quando se pensa em ícone enquanto veículo de missão concretiza-se a ideia da presença do mistério bem como a imagem da Palavra.

Iconografia não é só técnica. É uma arte que reúne técnica, teologia e espiritualidade. A grande propensão a que o Ocidente tende é justamente uma superficialidade “emotiva” que pára na riqueza (e beleza estética também) da técnica tradicional da Iconografia. Isto, em virtude talvez de ainda receber (de fora para dentro) e não conceber (de dentro para fora) a Arte iconográfica. O ícone é orgânico ao Oriente pelo fato da Igreja Ortodoxa estar presente geograficamente por lá. Ele é orgânico à espiritualidade e teologia, ao ethos enfim, mas não à geografia.

"O ícone só pode ser bem compreendido se bem situado teologicamente. Mesmo se não estamos por dentro dos Grandes Concílios que os protegeram dos assaltos de seus adversários judaizantes e racionalistas, faz-se indispensável perceber que o ícone foi concebido à luz do mistério de que Deus faz-Se homem para que o homem se torne deus."

As querelas cristológicas são afazeres humanos... consequências de divergências da natureza decaída. Cristo vem restaurar esta realidade. E que o ícone também o faça!

O retorno as origens é a única maneira de tornar sempre dinâmica a essência da Tradição.

O primeiro ícone foi aquele da Santa Face, não feito por mão de homem. Um simples tecido que Cristo, Ele-Próprio, enxuga Seu rosto deixando imprimir Sua imagem - Seu Ícone vivo. Ele o envia ao Rei de Edessa, Abgar, que se encontrava enfermo.

Ser enviado em grego é ser Apóstolo...

Que o Ícone seja, então, uma imagem viva de cura e apostolado. Amém!

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