O VERDADEIRO VALOR DO HOMEM
BLOOM Metropolita Anthony de Sourozh
Duas noções
colocam-se em evidência, depois de uma guerra, talvez mais do que nos anos que
a precedem, a noção da grandeza do homem, da sua significância tanto para os
homens quanto para Deus; e a noção da solidariedade humana. E estes são dois
pontos sobre os quais eu gostaria de dizer poucas palavras. E fazendo isto nós
temos que medir quão longe nós ousamos na valorização da significância dos
homens, e quão longe nós ousamos ir em nossa solidariedade; isto é, quão grande
nossa coragem pode ser ou também quais são seus limites
Por séculos, como nos parece, dentro da Igreja nós temos tentado fazer
nosso Deus tão grande quanto podemos fazendo o homem pequeno. Isto pode ser
visto até em trabalhos de arte nos quais o Senhor Jesus Cristo é representado
grande e suas criaturas realmente muito pequenas a Seus pés. A intenção era
mostrar quão grande Deus era, mas isto resultou na falsa, enganada, quase blasfema
visão de que o homem é pequeno, e numa negação desse Deus que trata os homens
como se eles não tivessem nenhum valor.
Estas duas reações são igualmente erradas. Uma pertence às pessoas que
defendem que os filhos de Deus, os escolhidos de Deus, refere-se a Igreja. Eles
fazem isto de tal forma a sê-lo tão pequeno quanto a imagem que eles têm dos
homens, é a mesma falta de perspectiva e grandeza em relação as suas pequenas
comunidades e as partes que a constituem. A outra atitude nós a encontramos
fora da Igreja, entre os agnósticos, os racionalistas e ateus. Nós somos responsáveis
por estas duas atitudes e nós seremos responsáveis por ambas tanto na história
quanto no dia do Julgamento. Mas esta não é a visão de Deus sobre o homem.
Quando nós
buscamos entender o valor que Deus dá pelo homem nós vemos que nós fomos
comprados por um preço muito alto, que o valor que Deus dá pelo homem é toda a
vida e toda a morte, a trágica morte, de seu Unigênito Filho sobre a Cruz. Isto
é o que Deus pensa do homem, do seu amigo, criado por Ele com o propósito de
estar em Sua companhia por toda a Eternidade.
Novamente,
quando nós abrimos o Evangelho na Parábola do Filho Pródigo, nós vemos este
homem que tendo deixado a grandeza de sua filiação, de sua vocação, depois
volta para seu pai. No caminho ele prepara a sua confissão. Ele está pronto a admitir
que ele pecou contra o céu e contra seu pai. Ele está preparado a reconhecer
que ele não é digno de ser chamado de filho. Mas, quando ele encontra seu pai,
seu pai só lhe permite fazer metade de sua confissão, reconhecer que ele não é
digno, que ele é um pecador, que ele pecou contra o céu e contra ele; mas lhe
permitir um lugar no Reino em termos mais baixos daqueles de filiação,
“deixe-me ser como um dos seus servos assalariados”, isto Ele não permite. Ele
o interrompe no momento que o jovem rapaz reconhece sua indignidade, indigno da
primitiva, original e eterna relação para a qual ele foi chamado. Ele pode ser
um filho indigno; ele pode ser um filho arrependido; ele pode voltar à casa do
pai, mas sempre como seu filho. Ele até pode ser indigno enquanto filho, mas
ele jamais poderá tornar-se um assalariado digno.
E esta é a forma pela qual Deus olha para o homem: em termos da filiação
oferecida a nós pela Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo, implicada tanto
no ato da Criação quanto no nosso chamado a tornarmo-nos participantes da
natureza divina, a tornarmo-nos filhos por adoção do Unigênito Filho; a
tornarmo-nos, nas próprias palavras de Santo Irineu de Lyon, o filho unigênito
no Cristo total.
Esta é a
nossa vocação. É para isto que somos chamados. E nada menos do que isto é
aceitável para o Senhor. Vejam, esta visão do homem é algo que é incompatível
com a pequena visão que nós muito freqüentemente adquirimos de falsos
ensinamentos: a servil aproximação ao Senhor. Este é o motivo pelo qual o mundo
de fora não pode receber nossa mensagem: esta mensagem tornou-se falsa, ninguém
que conheça o espírito do homem dentro de si mesmo estará preparado para ser
tratado como se ele fosse menos do que ele sabe que é.
O homem é o
ponto de encontro entre o crente e o não crente, entre o fiel e o homem que
está sem Deus, reintegrados, nós estamos preparados para um encontro e para um
único pensamento. Você se lembra da passagem no Livro dos Atos no qual São
Paulo nos fala da descoberta em Atenas de um altar dedicado ao deus
desconhecido? Não é este deus desconhecido um homem? Nos nossos dias ele parece
sê-lo mais do que nunca. Aqueles que repudiaram Deus e rejeitaram Cristo
fizeram do homem seu deus, a medida de todas as coisas. E na verdade,
convictos, eles estão indo de encontro à imagem falsificada que através dos
tempos lhes é oferecida. Eles fizeram do homem o seu deus e eles o colocaram no
altar; mas este homem que eles transformaram em seu deus, na verdade, é um
ídolo. Ele é um homem bi-dimensional, um prisioneiro das duas dimensões de
tempo e espaço.
Este homem,
transformado em deus, não é um homem com profundidade. É um homem como nós o
vemos na prática, comum, é empírica vida antes de nós descobrirmos que o homem
tem uma profundidade.
Ele está
dimensionado nestas duas coordenadas, ele tem volume, ele ocupa espaço, ele tem
forma; ele é tangível e visível, mas ele não tem conteúdo. De certa forma
alguém pode dizer que ele pertence ao mundo da geometria na qual pode-se falar
de volumes, mas estes volumes são vazios; não há nada a dizer sobre o que há
dentro destes volumes. O homem considerado somente em termos de espaço e tempo,
neste sistema bi-dimensional, aparece para nós apenas como uma concha, uma
forma exterior. Ele é uma presença e nós nos relacionamos com sua presença. Sua
presença pode ser agradável ou desagradável. Não há profundidade para sondar,
não há profundidade que nós possamos investigar ou mesmo perceber, porque a
profundidade do homem é nada dentro do tempo e do espaço; ela não pode ser encontrada
lá.
Quando as Escrituras nos dizem que o coração do homem é profundo elas
falam daquela profundidade que escapa à geometria, é uma terceira dimensão, de
eternidade e imensidão – aquela dimensão que é própria da dimensão de Deus. Mas
quando o homem é colocado no altar para ser venerado, será apenas como um
evento histórico desenvolvido no tempo e no espaço, no entanto não há nada a
ser venerado nele. Ele pode ser grande; ele pode expandir sua estatura. Ele
pode tornar-se um daqueles muito vistosos ídolos das antigas civilizações, mas
ele nunca terá grandeza, porque grandeza não reside em tamanho. Somente se o
homem tiver esta terceira dimensão, invisível, intangível, a dimensão de
profundidade e de conteúdo, esta dimensão do Infinito e da Eternidade, que está
mais no homem que o visível, então, mesmo na humilhação, o homem torna-se
grande. Mesmo derrotado ele pode ser maior do que aquele que aparentemente o
derrotou.
A revelação de Deus em Cristo, ou a dimensão absoluta da eternidade e
imensidade em Cristo, está unida com a revelação da derrota e da humilhação.
Para aqueles que, no mundo pagão ou mesmo na tradição Hebraica, pensam
em Deus como revestido de toda a imaginável grandiosidade do homem, que vêem em
Deus a soma total de todas as suas aspirações, de todos os seus objetivos,
aquilo tudo que eles admiram na criatura, a revelação de Deus em Cristo foi um
insulto e uma blasfêmia, algo que eles não podiam suportar porque o grande,
transcendental e vitorioso Deus que eles imaginavam e que lhes era descrito,
por exemplo, com tamanha beleza e poder pelos amigos de Job, aquele Cristo
aparece a eles como um Deus indefeso, desprotegido, vulnerável, derrotado e,
por conseguinte, desprezível.
Mas, nEle nós achamos a decisiva grandeza porque em tudo isto, nesta
aparente derrota, nós vemos a vitória do amor, um amor que investe até as
últimas conseqüências, até a última possibilidade, talvez além das
possibilidades, se nós pensarmos em nossos termos de referência, mas que
permanece invencível e vitorioso. Ninguém, diz Cristo, tira a minha vida de
mim. Eu a dou livremente. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida
por seus amigos. Aparente derrota, perfeita vitória do amor testado até o
último limite.
Este homem, Jesus Cristo, nós também colocamos sobre o altar. Ele é
também a medida de todas as coisas para nós. Porque Ele tem uma qualidade muito
diferente daquele pobre ídolo ao qual nós somos chamados a adorar, ao qual nós
somos chamados a sacrificar, a nós mesmos e aos outros, por um mundo sem Deus.
Todavia nós Cristãos podemos encontrar nos infiéis, nós podemos encontrar
naqueles que procuram ou naqueles que ainda não procuram, a imagem do homem.
Mas para isso nós precisamos estar preparados para afirmar que o homem é maior
do que a mais selvagem imaginação do infiel. Nossa consciência do homem é maior
que o orgulho daqueles que querem criar um homem tão grande quanto possível no
mundo exterior, bidimensional, do qual Deus está excluído. É ainda nesta
questão, na visão do homem, que nós podemos encontrar todos aqueles que afirmam
que o homem tem o direito de ser grande e de ser venerado, porque nós veneramos
um Deus que é homem; nós nos prostramos perante Ele; Ele é nosso Deus.
E agora eu vou ao segundo ponto da nossa meditação. O quão longe nós
podemos sentir a total e definitiva solidariedade por aqueles que negam a
existência da própria possibilidade desta dimensão de grandeza e profundidade?
São Paulo, em seu tempo, referindo-se aos judeus, estava preparado até para ser
excluído da presença de Deus, se somente isso tornasse possível para o povo de
Deus ser salvo em sua totalidade. Podemos nós ir tão longe, podemos nós juntos
com Cristo e não contra Ele, juntos com Deus e não contra Ele, dizer: “deixe
nossa vida ser o resgate da vida do mundo”?. E quando eu digo “a vida” não
quero dizer a existência temporária, mas todo o destino da humanidade. Podemos
nós estar preparados a correr o risco final da solidariedade, a salvação juntos
ou mesmo a perdição juntos? Um cristão não pode ter uma atitude com as coisas
diferente daquela do próprio Cristo: do Deus revelado em Cristo dentro da
história humana, dentro da tragédia e da glória do destino da humanidade. Vamos
então lançar um olhar no tipo de solidariedade que Deus, em Cristo, oferece aos
homens.
A solidariedade começa no momento da criação quando o Verbo de Deus
chama todas as coisas a ser, e quando o homem é chamado, não à uma transitória
e efêmera existência, não à uma experiência, ele é chamado a ser, e ser para
sempre, o companheiro na eternidade do Deus vivo. Este é o momento quando Deus
e o homem acham-se unidos, e se eu posso dizer esta palavra, pelo e no mesmo risco,
porque é na criação que Deus toma sobre Ele não somente as conseqüências de ter
criado o homem, mas também as conseqüências do que o homem fará do tempo e da
eternidade. Em toda as Sagradas Escrituras nós vemos o modo como Deus nunca
renuncia da responsabilidade nem da solidariedade para com o homem; como Ele
suporta as várias situações que o homem cria, uma após outra; como Ele se ajusta
a eles no propósito de prover a nossa salvação, que é a realização final da
vocação do homem.
Mas o evento essencial, o ato essencial de solidariedade é a encarnação
do Verbo de Deus. Deus torna-se homem. Ele entra na história. Pode-se dizer,
Ele adquire um destino temporal; Ele se torna parte e parcela de um
desenvolvimento.
Mas quão longe esta solidariedade vai? Habitualmente em nossos sermões
nós sublinhamos, e também ouvimos as pessoas dizerem, Ele se torna participante
de tudo que era a condição do homem exceto o pecado. E se nós perguntarmos o
que são estas coisas das quais Ele torna-se participante, nos dirão que são as
limitações do tempo e do espaço e as condições da vida humana, cansaço, fome,
sede, sofrimento, isolamento, solidão, ódio, perseguição e no final morte na
cruz. Mas quando nós dizemos isto nós contemplamos alguma coisa que é
subjacente a tudo isso, algo que a mim parece mais importante que todas estas
coisas. Sim, Cristo aceita, no fim de tudo, não somente a vida humana, mas
também a morte humana. Mas em que isso implica? Quão longe esta solidariedade
vai?
Se você voltar às Escrituras você verá que morte e pecado, isto é morte
e separação de Deus, morte e perda de Deus (o que podemos chamar
etimologicamente de ateísmo), estão inseparavelmente unidos.
O fato de recusar Deus está na raiz da morte. São Máximo, o Confessor em
um dos seus escritos, traz isso à tona da forma mais admirável; falando da
Encarnação, ele diz que no próprio momento da concepção de Cristo, mesmo na sua
humanidade Cristo era imortal, porque ninguém pode nascer de uma carne humana
unida com a Divindade e ser suscetível à morte. E mais, quando nós falamos da
crucifixão nós estamos cientes do fato de que a morte de Cristo na Cruz era um
impossível rompimento entre uma alma imortal e um corpo imortal; não era o
definhar da vida; era um dramático, um impossível evento imposto, pela vontade
de Deus, a um que era, igualmente e perfeitamente, ambos, Deus e homem.
Sendo assim as palavras de Cristo sobre a Cruz adquire uma significância
que é mais profunda e mais apavorante que qualquer pensamento que possamos
fazer delas.
Quando o Senhor diz: “Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?”, é o
momento no qual, metafisicamente, de um modo indizível, de um modo que nós não
podemos calcular (porque nós não podemos calcular nada no mistério de Cristo),
Jesus pregado na Cruz perde a consciência da Sua união com Deus. Ele pode
morrer, porque Ele, livre de pecado, torna-se naquele momento totalmente
participante da vocação do homem, Ele também é deixado sem Deus, e não tendo
Deus Ele morre. Isto é o que significa no Credo Apostólico quando diz: “Ele
desceu aos infernos”. Inferno na tradição Hebraica era o lugar onde Deus não
estava; Ele foi fundo na ausência de Deus e Ele morreu. Aqui está a medida da
divina solidariedade conosco, não somente o derramamento de sangue, não somente
a morte na Cruz, mas a própria condição dessa morte na Cruz, dessa morte
conjunta com a perda de Deus.
E aqui nós vemos que não há um só ateu no mundo, quer ideológico ou, se
podemos colocar dessa forma, gástrico – se você pegar as palavras de São Paulo
que alguns fizeram do seu estômago o seu Deus – nenhum ateu nunca foi tão fundo
no ateísmo, na perda de Deus, do modo como foi em Cristo, como experimentou e morreu
disto – Ele, imortal em Sua humanidade tanto quanto em Sua divindade.
Isto está muito mais além de qualquer outra forma de solidariedade. Isto
é a medida cheia do “Amor de Cristo e de Deus pelo homem o qual Deus está
preparado a fazer, e a medida de quão longe Ele está preparado a ir em Sua
unidade conosco”. Mas quando novamente pensamos no homem, naqueles homens que
não são da Igreja, naqueles homens que estão fora dela, que se voltaram contra
ela por nossa causa, porque o nome de Deus foi blasfemado entre as nações por
nossa causa, então nós podemos ver quão longe nós temos coragem de ir, e quão
grande nossa coragem precisa ser.
Nossa solidariedade precisa ser primeiro com Cristo, e Nele, com todos
os homens, até o fim, à inteira medida da vida e morte. Somente então, se nós
aceitarmos isto, nós podemos, cada um de nós, e a congregação de todo o povo
fiel, o povo de Deus, crescendo dentro daquilo que estava em Cristo e dentro
daquilo que estava nos Apóstolos, dentro de um grupo de pessoas cuja visão era
maior que a visão do mundo, cujo objetivo era maior que o objetivo do mundo,
realmente a Igreja no começo podia conter tudo isso, podia ser participante de
todas aquelas coisas que são as condições do homem, e, portanto, podia conduzir
a humanidade à salvação. Mas este não é o estado no qual nós estamos.
Nós crescemos pouco porque nós transformamos nosso Deus em um ídolo e
nós mesmos em escravos. Nós temos que reconquistar o senso de grandeza que Deus
revelou em Cristo e a grandeza do homem revelado por Ele. E então o mundo pode
começar a acreditar e nós podemos nos tornar cooperadores de Deus para a
salvação de todas as coisas. Amém.
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