ORTODOXIA E PLURALISMO RELIGIOSO
LAHAM M. Albert
tradução de monja Rebeca (Pereira)
Vivemos
uma época de grande confusão religiosa. A secularização da sociedade relegou
Deus na esfera privada da consciência. A interpretação livre e crítica da
Escritura enfraquece junto de muitos cristãos a inteligência do mistério da fé
que ai é revelado. A mundialização, as mudanças na demografia do mundo, a
emergência do islão, do hinduísmo e do budismo, como fatores influentes na
sociedade internacional, e mesmo européia, colocam na consciência de muitos
cristãos, qualquer que seja a sua confissão, o problema do sentido se sua fé em
relação à fé dos não-cristãos, bem como o sentido e o valor das religiões não
cristãs em relação à fé cristã.
O
problema assim colocado ultrapassa o estudo comparativo das religiões, ainda
que suponha um conhecimento exato, um sério estudo e uma escuta sincera das
religiões, das disposições que, infelizmente, são pouco espalhadas em nossos
dias. Adicionemos a tudo isto que o problema é posto no contexto das predições
pessimistas quanto ao afrontamento inelutável das civilizações e das religiões,
enquanto a história guarda viva a lembrança das guerras conduzidas em nome de
um exclusivismo religioso ou de um colonialismo cultural.
Uma teologia do
pluralismo religioso?
A
teologia das religiões ou o pluralismo religioso é relativamente recente e busca
ainda sua via. Certos teólogos protestantes reagem contra o exclusivismo da
teologia de Karl Barth ou contra os fundamentalistas que predestinam ao inferno
todos os não-cristãos, propondo uma relativização da Bíblia como revelação de
Deus, ou mesmo uma distinção entre o Jesus histórico, o homem de Nazaré, e o
Cristo da fé que teria emergido como Verbo Eterno da contemplação e da
experiência espiritual dos primeiros cristãos. Isto permitiria a seus olhos
antes um Cristianismo centrado sobre Deus e seu Reino que há-de-vir, do que
sobre a Pessoa de Jesus, e que seria o fundamento de uma leitura das religiões.
Compreendeis
que tal abordagem não é aceitável para os ortodoxos. Podeis, para ler tal
abordagem, vos referir em guisa de exemplo ao livro A Bíblia e Os fiéis de outras
confissões, publicado pelas edições do Conselho Ecumênico das Igrejas,
escrito por Wesley Ariarajah. Na Igreja Católico-Romana, o Segundo Concílio do
Vaticano, e ainda as encíclicas de Paulo VI e de João Paulo II, fixaram o
quadro oficial de uma abordagem do pluralismo e do diálogo inter-religioso. A
Igreja Ortodoxa não se pronunciou mediante tal projeto.
Por
não ser teólogo, não pretendo vos apresentar uma construção teológica do
problema à luz da fé ortodoxa. Eu me contentarei no curso de uma primeira parte
de meu exposto de evocar alguns aspectos da doutrina ortodoxa que são
susceptíveis à construção de uma semelhante teologia. Numa segunda parte, darei
uma idéia geral dos textos bíblicos que poderiam ajudar a compreender o
problema do pluralismo religioso. Em seguida, uma breve olhadela na abordagem
do problema pelos primeiros Padres da Igreja e enfim por alguns teólogos
ortodoxos contemporâneos.
ALGUNS
PONTOS DO PENSAMENTO TEOLÓGICO ORTODOXO
1.
A Ortodoxia crê que a Bíblia é a expressão da
revelação suprema recebida e vivida no Espírito Santo, na tradição viva da
Igreja e na doxologia litúrgica. Não se faz, então, necessário relativizar a
mensagem.
2.
Para a Ortodoxia, a criação é um ato livre do
Deus Amor, pelo qual a Trindade supra-essencial chama os seres à participação
da glória divina. O Verbo “em Quem está a vida e a luz dos homens” criou o
mundo e permanece em Sua criação. “Ele estava no mundo”, diz São João, mesmo se
o mundo não O conhecesse. Assim, a criação é uma teofania – uma manifestação de
Deus. O Salmo 19 diz: “Os céus narram a glória de Deus e o firmamento anuncia a
obra de Suas mãos; um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria
a outra noite” (Sl. 19, 1-2).
3.
O homem é criado “à imagem e semelhança” de
Deus. A teologia ortodoxa distingue a imagem e a semelhança. A imagem de Deus
no homem implica que ele esteja ordenado ao seu Criador. A semelhança é a
perfeição da imagem. Ora, a imagem perfeita do Deus invisível é Seu Filho. A
vocação do homem, imagem de Deus, estava então, na comunhão com Deus e na
obediência, de conduzir toda a criação, da qual ele era o rei e o sacerdote, ao
seu termo – união com Deus no Filho, “por Quem foram criadas todas as coisas” (
I Jo. 1, 3; Col. 1, 16).
4.
Para a Ortodoxia, o pecado do homem não
destruiu nele a imagem de Deus, mas a obscureceu. O homem permanece uma pessoa
livre, mas sua liberdade é desviada. Ele permanece um ser racional, cuja razão,
todavia, é perturbada pelas paixões. Ele ainda domina a criação, mas pode ai se
perder e adorá-la. Sua consciência tornada incerta escusa-o e acusa-o ao mesmo
tempo. A morte é por vezes o salário do pecado e uma misericórdia divina. A
diversidade múltipla que deveria ter sido uma fonte de unidade harmoniosa à
imagem da unitrindade de Deus, torna-se uma fonte de divisões e de conflitos.
5.
O pecado do homem não reduziu ao nada o
desígnio de Deus. O Salmo 33 nos diz que o “conselho do Senhor permanece para
sempre: os intentos de Seu coração de geração em geração” (Sl. 33, 11). A
vocação do primeiro Adão será plena pelo Cristo, segundo Adão. Deus Se faz
homem para que o homem possa tornar-se deus. Tal é o ensinamento unânime dos
Padres da Igreja, tal é o mistério “oculto em mistério, o qual Deus ordenou
antes dos séculos para a nossa glória” (I Co. 1, 7) a fim “de tornar a
congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos,
tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” (Ef. 1, 10).
6.
Em vista de realizar este desígnio, Deus
entra a partir de então sem cessar na história dos homens, para preparar a
vinda de Seu Filho na carne da humanidade e da criação. A história da salvação
é a história deste jogo divino do desígnio de Deus e da liberdade do homem,
história de visitações múltiplas e variadas da humanidade por Deus através dos
tempos e das gerações até a restauração de todas as coisas.
7.
Deus, diz Vladimir Lossky, “coordena Suas
ações com os atos dos seres criados, a fim de governar o universo caído,
realizando Sua vontade sem fazer violência à liberdade das criaturas”; sem
cessar, “Deus desce no mundo pelos atos de Sua providência, pela Sua economia
(o que quer dizer construção ou administração de uma casa) e, na plenitude dos
tempos, o Verbo de Deus, Sabedoria hypostática do Pai, “construirá para Si uma
casa” na carne da humanidade.
8.
Segundo a Igreja Ortodoxa, o Verbo, segunda
Pessoa da Trindade, ao Se encarnar, uniu-Se em Jesus Cristo à uma natureza
humana, ou melhor, dizem os Padres, à natureza humana. Para eles, em efeito,
interpretando e prolongando a Escritura, “dizer que existem muitos homens é um
abuso ordinário da linguagem. Existe, decerto, uma pluralidade que partilha a
mesma natureza humana mas através deles todos, diz Gregório de Nissa, o homem é
um”. Poderíamos dizer que a noção da natureza humana única à qual todos os
homens participam com ele que o Verbo sofreu, Que morreu e ressuscitou, de
sorte que o Apóstolo pode dizer de maneira concreta e muito realista que “Deus
nos fez reviver com o Cristo, erguendo-nos junto com Ele e nos fez assentar com
Ele nas regiões celestes” (Ef. 2, 5-6).
9.
“Em nosso corpo, diz Gregório de Nissa, a
atividade de um único dos membros dispensa uma sensação em todo organismo
ligado a este membro. O mesmo acontece para a humanidade inteira que forma, por
assim dizer, um único ser vivo. A ressurreição de um membro (quer dizer o
Cristo) se estende ao conjunto, e da parte se comunica ao todo, em virtude da
coesão e da unidade da natureza humana.”
Ora, o Cristo não é somente um dos
membros da humanidade. Novo Adão, Ele é a Cabeça (Col. 1, 18). Descendo nas
regiões inferiores da terra, “subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu
dons aos homens” (Ef. 4, 8-10). Não disse: “Quando for levantado da terra, chamarei
tudo a Mim”? Assim, os frutos de Sua Encarnação, de Sua Paixão e de Sua
Ressurreição, se propagam e são sensíveis em toda criação e na humanidade
inteira.
10.
A partir de então o corpo de Cristo
ressuscitado, do qual a Igreja é o Sacramento, está como que escondido na massa
humana, como um fermento e com um gérmen de fogo, trabalhando a história como
do interior e, enquanto seu polo final, chamando-o misteriosamente ao seu
termo: a realização e a recapitulação de todas as coisas em Cristo, no Reino que
Ele entregará ao Seu Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos. A Igreja é o
Sacramento deste Reino já lá, mas ainda não acabado. Ela é suas primícias. Ela
testemunha dele. Ela o antecipa na Eucaristia, oferecendo o Pai pelo Cristo no
Espírito Santo, o universo criado e a humanidade criada: “Relembrando de tudo
realizado por nós: Aquilo que é Teu, recebendo-o de Ti, nós To oferecemos por
todos e por tudo”.
A BÍBLIA E
O PLURALISMO RELIGIOSO
Relembrando
a história santa tal como ela é contada na Bíblia, temos o hábito de passar da
criação de Adão e de Eva ao dilúvio, e diretamente depois do dilúvio, a Abraão,
o que deixa aberta a questão da relação de Deus com todos os homens que viveram
durante dezenas de milhares de anos, antes da eleição de Abraão, e aqueles que
nasceram e nascem fora desta aliança.
Ora,
o Antigo Testamento ergue uma imagem muito sombria da vida religiosa das nações
que cercam Israel. Na Bíblia, em efeito, a humanidade parece dividida em dois
grupos. De uma parte, o povo judeu da aliança e de outra parte, os outros povos
que chamamos de “nações”, os “gentios” ou junto de São Paulo, os “gregos”.
É
verdade que a Bíblia, nos livros do Antigo Testamento, considera, diretamente,
a intervenção divina no único desígnio de Israel. Mas ao revelar o desígnio
eterno da salvação de todas as nações, deixa transparente as visitações
divinas, fontes de fé e de salvação, através dos tempos da humanidade antes da
eleição de Abraão e depois desta. A Epístola aos Hebreus, no capítulo 11,
versículo 4, fala de Abel, o filho de Adão, que “pela fé oferece a Deus um
melhor sacrifício, alcançando testemunho pelo próprio Deus que era justo”.
Hebreus 11, 5 fala de Enoc, o qual “pela fé, foi transladado para não ver a
morte, alcançando testemunho de que agradara a Deus”, tendo andado com Deus
(Gn. 5, 22).
No
versículo 7 do mesmo capítulo, Noé “divinamente avisado das coisas que ainda se
não viam” – o dilúvio, é apresentado como tendo “pela fé, condenado o mundo pecador”
e torna-se “herdeiro da justiça segundo a fé”. Com ele, diz o Gênesis, Deus
concluiu e com sua descendência – quer dizer com toda humanidade – uma aliança
eterna (Gn. 3, 8-12). No capítulo 7 da mesma Epístola, Melquisedec, sacerdote e
rei de Salém – fora da linhagem de Abraão abençoou este último e, “sendo feito
semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb. 7, 3).
Em
Ezequiel no capítulo 14, versículos 14, 18 e 20 Deus, ameaçando destruir
completamente Jerusalém, declara que “se houvesse no meio do país estes três
homens, Noé, Job e Daniel, eles salvariam suas vidas em virtude de sua
justiça”. Ora Noé e Job não são hebreus e Daniel é uma personagem da tradição
cananeana pagã, conhecido pelos escritos do antigo Ugarit. Da mesma maneira, as
gentes de Nínive, pagãos a quem o Profeta Jonas foi enviado “creram em Deus” e
“Deus vê suas obras e Se arrepende do mal que tinha mencionado lhes fazer, e
não o fez” (Jn. 3, 5, 10), provocando a cólera de Jonas. “Eu sabia, diz ele,
que Tu és um Deus compassivo e misericordioso, lento para cólera e rico em
misericórdia”.
No
tempo do Profeta Elias, é uma viúva pagã de Sarepta, no país de Sidon, que
beneficia da graça divina. No tempo de Eliseu, é Naaman o Sirito, ele também
pagão, que agrada a Deus, e a Rainha de Sabá, sendo ela também pagã, “vinda das
extremidades da terra para escutar a sabedoria de Salomão se levantará, diz o
Senhor, no dia do Julgamento e condenará a incredulidade” (Mt. 12, 42) dos
fariseus. No Livro dos Números é mesmo reconhecido em Barlaão uma profecia
entre as nações.
Todos
os santos pagãos do Antigo Testamento e todos os Santos que nossa Igreja
Ortodoxa invoca como sendo “agradáveis a Deus no dealbar dos séculos” (nós
contamos com esta frase em nossas orações diárias) testemunham da misericórdia
de Deus que, segundo a Escritura, preenche toda terra (Sl. 119, 64), e de Sua
compaixão que se estende sobre todas as Suas obras (145, 9), e de Seu Espírito
incorruptível que, segundo o Livro da Sabedoria de Salomão, está em todas as
coisas (Sb. 12, 1).
No
capítulo 7 deste livro da Sabedoria, esta que o Novo Testamento reconhecerá
hypostasida em Cristo, é descrita como “um eflúvio do poder de Deus, uma
emanação puríssima da glória do Onipotente, um espelho nítido da atividade de
Deus e imagem de Sua bondade: tudo renova e, entrando nas almas santas de cada
geração, delas fez amigos de Deus” (Sb.7, 25-27). Ela encontra suas delícias
nos filhos dos homens (Pv. 8, 31) e se deixa encontrar por aqueles que a
procuram (Sb. 6, 12) ou melhor, como é dito no Profeta Isaías: “Fui achado
daqueles que não me buscavam” (Is. 65, 1).
No
Novo Testamento, enquanto Mateus faz remontar a genealogia de Jesus, filho de
David até Abraão, São Lucas remonta até Noé e Adão, mostrando assim que a
história da salvação não corresponde à única história do povo judeu e que
Cristo recapitula todas as alianças com a humanidade. No capítulo 13 de São
Mateus, o Senhor Jesus, ao explicar a parábola do joio do campo do semeador,
indica que o semeador é o Filho do homem e que o campo onde a boa semente da
Palavra é semeada, é o mundo inteiro, confirmando assim a universalidade da
presença ativa de Jesus na história de todos os povos.
De
fato, Cristo, enviado primeiramente para as ovelhas perdidas da casa de Israel
(Mt. 15, 24) Se maravilha da fé do centurião pagão e diz: “Em verdade vos digo
que nem mesmo em Israel encontrei tanta fé” (Mt. 8, 10). Ele louva a fé da
Cananéia pagã (Mt. 15, 28) e do leproso samaritano (Lc. 17, 18) – e sabeis que
os samaritanos eram considerados piores do que os pagãos pelos judeus. Ele
recebe e cura, por meio da fé, os doentes, os possessos e os paralíticos que se
Lhe eram trazidos da Síria (Mt. 4, 24) e dá, ao legista judeu, o bom samaritano
como exemplo de amor pelo próximo: “Vai, e faze da mesma maneira” (Lc. 10, 37).
É também a uma samaritana que Ele revela, em uma de Suas páginas mais sublimes
das Escrituras, a ultrapassagem de Jerusalém e de Garizim pela adoração em
espírito e em verdade (Jo. 4, 21-24). Enfim, é o bom samaritano que os Padres
da Igreja vêem como o tipo de Cristo, cuidando da humanidade rasgada, jogada
sobre os caminhos da história.
Não
está em tudo isto a confirmação da predicação de Pedro em Cesaréia diante de
Cornélio, ele também pagão, mas “homem justo e temente a Deus” (At. 10, 2).:
“Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; mas que Lhe é
agradável aquele que, em qualquer nação, O teme e obra o que é justo” (At. 10,
34-35). “Porque, para com Deus, não há acepção de pessoas”, repete São Paulo,
na Epístola aos Romanos (Rm. 2, 11): “Tribulação e angústia sobre toda a alma
do homem que obra o mal; primeiramente do judeu e também do grego” (Rm. 2,
9-10) pois, diz ele “ quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as
coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais
mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua
consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os quer defendendo-os” (Rm.
2, 14-15).
COMO OS
PRIMEIROS PADRES DA IGREJAS CONSIDERAVAM O PLURALISMO RELIGIOSO?
SÃO
JUSTINO
É
à luz da visão do desdobramento universal da salvação que os primeiros Padres
tentaram decifrar o torto mistério das outras tradições religiosas, no meio dos
quais os cristãos não passavam de um pequeno rebanho do Bom Pastor.
No
meio do II século, São Justino, filósofo e mártir, faz apelo em suas
“Apologias”, as sementes do Verbo inatas na humanidade, como estando na origem
do que é belo, bom e justo nela. “Cristo é o Verbo de Deus, ao Qual todos os
homens participam. Eis o que aprendemos e declaramos...Aqueles que viveram
segundo o Verbo são cristãos, mesmo tendo eles passado por ateus, como junto
dos gregos Sócrates e Heráclito, e seus semelhantes, e também os bárbaros (os
não gregos), Abraão, Elias e tantos outros. Aqueles que viveram e vivem segundo
o Verbo são cristãos...”
“Todo
homem possui uma semente do Logos em sua razão, semente espalhada na humanidade
inteira.”
São Justino adiciona todavia: “Nossos dogmas são mais augustos que toda
doutrina porque temos todo o Verbo em Cristo que apareceu para nós, corpo,
Verbo e alma. Todas as verdades que os filósofos e os legisladores descobriram
e expressaram, devem-nas ao fato de terem encontrado e contemplado parcialmente
no Verbo. Cada um deles, em efeito, viu do Verbo divino disseminado no mundo, o
que estava relacionado com sua natureza, e pode exprimir assim uma verdade
parcial.”
“Mas,
outra coisa é possuir uma semente e uma semelhança proporcionadas as suas
faculdades e ter o objeto cuja participação e a imitação procedem da graça que
vem dele. É pelo fato de não terem conhecido todo o Logos que é o Cristo que
freqüentemente se contradizem eles mesmos”.
SÃO
CLEMENTE DE ALEXANDRIA
São
Clemente de Alexandria fala, ele também, do Logos como fonte de todo
conhecimento divino pois “a obra maior e mais real de Deus é salvar a
humanidade”. Assim, o Verbo é o pedagogo e o pastor: “Ele dá a uns os
Mandamentos (quer dizer a Lei) e a outros a filosofia, pois que por dois
processos diferentes, conduz os gregos e os bárbaros à perfeição que atingimos
pela fé... A filosofia fora dada aos gregos pelo Logos como seu testamento
próprio pois que ela era como que um trampolim para atingir a filosofia segundo
Cristo.”
Para
lá da filosofia, “Deus, diz Clemente, cuida de todos os homens, Ele os converte
à salvação, uns por meio de preceitos, outros por ameaças, outros ainda por
sinais prodigiosos, alguns, enfim, por benevolentes promessas.”
Clemente
de Alexandria define assim o que ele entende por filosofia: “Por filosofia, não
entendo aquela de Platão ou de Epicuro ou ainda de Aristóteles ; tudo o que há
de bom em cada uma destas Escolas e que nos ensina a justiça acompanhada de
piedade, é este todo que eu chamo de filosofia”.
Ele
menciona também, ao lado dos filósofos gregos, os sábios da Índia, tais como os
brahmanas e até mesmo o Buda que, diz ele, “é venerado em virtude de sua
extrema santidade como um deus”, o que equivale a reconhecer às tradições
hindus e budistas, junto de Clemente de Alexandria, uma parte de verdade cristã
e um lugar na história da salvação. Para Clemente, no primeiro capítulo da
Epístola aos Hebreus, o primeiro versículo se refere às múltiplas dispensações
pelas quais o Verbo, seguindo o crescimento e o progresso da humanidade,
anuncia e dispensa, desde o início do mundo, Sua manifestação na carne.
“O
Filho único, mestre de todos os seres criados, formou do alto, desde o início
do mundo os homens, e de muitas maneiras e por diversas vezes, Ele os conduz a
sua perfeição... A via da Verdade é uma, mas ela é como um fluxo inesgotável do
qual desembocam cursos d´água vindos de toda parte.”
Todavia,
agora, diz ele, “o Logos veio até nós, e nós não devemos mais ir à escola humana
alguma, pois que agora Ele nos ensina tudo e pelo Logos, o mundo inteiro
tornou-se uma Atenas e uma Grécia.”
Clemente
se preocupa com a sorte dos judeus e dos pagãos mortos sem conhecer a Cristo.
Ele chama a seu sujeito a descida de Cristo na morada dos mortos segundo a
primeira Epístola de São Pedro (3, 19 e 4, 6) onde está dito que Jesus “foi
pregar mesmo aos espíritos em prisão, que tinham outrora desobedecido” e que “
a boa-nova foi anunciada até aos mortos, a fim de que, julgados na carne,
segundo os homens, eles vivam segundo Deus em espírito”.
A
Igreja Ortodoxa se refere a esta descida libertadora de Cristo na morada dos
mortos em seu ofício de funerais.
SANTO IRINEU DE
LIÃO
Santo
Irineu de Lião esboça uma verdadeira teologia da história da salvação. Deus Pai
revelado desde o princípio pelo Filho, numa série de economias ou de
visitações, como uma melodia bem regrada na massa humana modelada por Ele:
“Desde o princípio, o Filho presente na obra por Ele modelada revela o Pai a
todos aqueles a quem o Pai o quer, quando Ele quer e como Ele quer... Eis
porque o Filho fez-Se dispensador da graça do Pai para o proveito dos homens
para os quais Ele realizou tão grandes economias, mostrando Deus aos homens e
apresentando o homem a Deus... pois a glória de Deus é o homem vivo e a vida do
homem, é a visão de Deus.”
Assim,
“existe um só Deus que, em diversas economias, vem ao auxílio da humanidade”.
Para Santo Irineu, quatro alianças foram dadas à humanidade: a primeira, antes
do dilúvio, no tempo de Adão; a segunda, depois do dilúvio, no tempo de Noé; a
terceira é o dom da Lei a Moisés; a quarta enfim reunindo o homem e
recapitulando tudo nela é aquela que o Evangelho eleva o homem ao Reino
celeste.
“Cristo
não veio somente para aqueles, diz Santo Irineu, que a partir do Imperador
Tibério, creram n´Ele, e o Pai não exerceu Sua Providência a favor somente dos
homens que vivem agora mas a favor de todos os homens sem exceção que, desde o
princípio, segundo suas capacidades e segundo sua época, creram e amaram a
Deus, e que praticaram a bondade e a justiça para com o próximo.”
Retomando
a idéias da descida de Cristo na morada dos motos, Irineu diz: “Eis porque o
Senhor desceu nos lugares inferiores da terra para portar a todos os mortos a
boa-nova de Sua vinda que é a remissão dos pecados para aqueles que crêem
n´Ele.”
Irineu
compreende evidentemente a objeção que podemos lhe levantar: mas então, se é
assim, o que trouxe o Senhor pela Sua Encarnação à humanidade? E ele responde:
“Sabei que Ele trouxe toda novidade aportando em Sua Pessoa anunciada
anteriormente. Se, em efeito, a vinda do Rei é anunciada antes pelos Seus
servidores os quais enviamos a preparar aqueles que acolherão, quando a lei
chega, Seus sujeitos já beneficiaram de Sua vinda, já ouviram Suas palavras e
gozaram de Seus dons e receberam d´Ele a liberdade. E assim não é mais
necessário pôr-se a questão de saber o que o Rei aportou de novo em relação
àqueles que anunciaram a Sua vinda.”
COMO OS
TEÓLOGOS ORTODOXOS CONTEMPORÂNEOS SE APROXIMAM DA PROBLEMATICA DO PLURALISMO ORTODOXO?
As
sementes do Verbo de São Justino, as diversas economias divinas das quais fala
São Clemente de Alexandria e Santo Irineu de Lião não passam de uma preparação
evangélica à Encarnação do Verbo ou continuam a trabalhar a humanidade até que
ela “chegue na plenitude da estatura de Cristo” (Ef. 4, 13), à realização do
mistério do Reino quando Deus será tudo em todos nós (I Cor. 15, 28)?
É
necessário primeiramente reconhecer que os Padres dos três primeiros séculos
que citei insistiram sobre a necessidade para o homem de pertencer à Igreja,
pois “lá onde está a Igreja, lá está o Espírito de Deus”, diz Santo Irineu de
Lião. Orígenes, em suas homilias sobre Josué, diz: “Fora desta casa – quer
dizer fora da Igreja – ninguém será salvo. Se alguém sai, então que se torne
responsável pela sua própria morte.” Tais propósitos encontram-se na carta de
Santo Inácio de Antioquia aos Filipenses. Mas, é necessário remarcar que estes
propostos são dirigidos aos cismas e as heresias que punham em causa a fé
ortodoxa. Era necessário guardar intacta “a fé transmitida pelos Santos uma vez
por todas”. “Se alguém vos anuncia outro Evangelho além daquele que recebestes,
diz São Paulo, que ele seja anátema” (Ga. 1,8).
Todavia,
a luta contra as heresias durante longos séculos endureceu as posições
teológicas. A teologia polêmica e a teologia apologética contra os não-cristãos
estenderam às religiões não cristãs o axioma “Fora da Igreja, nada de
salvação”, que estava originariamente destinado aos cismáticos e aos heréticos.
No
entanto, Sua Exma. Georges Khodr, Metropolita do Monte-Líbano, menciona em seu
estudo O Cristianismo num mundo
pluralista, apresentado no Comitê central do Conselho Ecumênico das Igrejas
em Addis-Abeba (Etiópia), em 1971, que na Igreja nestoriana, cuja atividade
missionária se estendeu na Idade Média até a Índia e à China, encontramos a
abordagem cristã mais corajosa do Islão, chegando até a reconhecer um caráter
profético a Muhamed sobre a base da análise de certos textos de sua mensagem
(Irenikon, 1971 / 2, p. 190-202).
METROPOLITA
GEORGES KHODR
Neste
mesmo estudo, Sua Exma. Georges Khodr sublinha a questão da presença de Cristo
fora da história judeu-cristã. Ele recorda a atitude dos primeiros Padres a
respeito da semente do Logos. Ele cita Gregório de Nazianzo que pensava que
Platão e Aristóteles tinham recebido um raio do Espírito Santo e que a mão de
Deus guia os homens ao verdadeiro Deus através da vida religiosa da humanidade.
Sua
Exma. Georges pensa que a teologia ocidental tradicional das religiões que
consideravam a Igreja institucional como o centro do mundo é como uma expressão
da superioridade cultural do Ocidente.
Para
o Metropolita Georges, a autenticidade da vida espiritual de numerosos
não-cristãos levanta a questão da presença neles de Cristo Jesus: “A Igreja,
por meio do mistério do qual Ela é o sinal, deve ler todos os outros sinais que
o Senhor colocou nos diversos momentos da história. Pouco importa que as
religiões se considerem incompatíveis com o Evangelho. Cristo está presente em
toda parte em Sua kenosis.”
“Toda
leitura das religiões, prossegue ele, é uma leitura de Cristo em Sua visitação
das escrituras brahmanas, budistas, maometanas... Deus, se Ele quiser, pode
suscitar testemunhos àqueles que não viram Sua manifestação gloriosa no rosto
do Cristo que os nossos pecados ensangüentou e na túnica sem-costura que
rasgamos pelas nossas divisões.”
O
Metropolita Georges lembra que, para Nicolas Cabasilas, a unidade futura é
aquela daqueles que a Igreja batiza e aquela daqueles que o esposo da Igreja
tiver batizado. A missão é chamada a identificar os valores crísticos nas
outras religiões e a mostrar o amor de Cristo como sua realização. “Trata-se de
despertar o Cristo que dorme na noite das religiões.”
Noutra
conferência, Sua Exma. Georges diz: “Deus só está ligado pelos meios de
salvação que Ele próprio instituiu na Igreja... Ele pode Se revelar aos mártires
de Seu amor onde eles se encontram. Pode revelar-Se àquele que exerce o culto
islâmico, que dá esmolas e realiza a obrigação da peregrinação buscando
contemplar o “rosto do Bem-amado”...
“A
perfeição, a plenitude não está na Igreja enquanto instituição histórica; ela
está antes no Senhor que está nela e que fundou a Igreja pelo Verbo, a água, o
Espírito e o sangue, para que eles testemunhem de Deus nela. A plenitude é o
que a Igreja tornar-se-á, no último dia, aquando da assembléia dos justos de
todas as nações e de todas as raças, quando todas as vias estiverem
desaparecidas, diante do amor do qual elas não eram símbolo” (Contacts nº 110
[1980], p.108-109).
ARCEBISPO
ANASTASIOS DE ALBÂNIA
Sua
Beatitude, o Arcebispo Anastasios de Tirana e Albânia -o antigo missionário na
África - no curso da Conferência de Baar (19913), organizada pelo Conselho
Ecumênico das Igrejas, sobre a significação teológica das religiões
não-cristãs, lembrou que o pensamento dos Padres da Igreja desenvolveu-se numa
sociedade religiosamente pluralista. Um pensamento ortodoxo a este sujeito, diz
ele, pode repousar sobre quatro considerações:
·
A primeira é aquela que já mencionamos, “a semente do Logos” de São Justino,
semente que todavia não é idêntica na presença total do Verbo em Sua graça
transformante.
·
A segunda consideração parte de uma frase de São Basílio que entende a presença
do spermaticos logos não somente em
razão e à sabedoria humana, mas à possibilidade que todo homem tem, em virtude
desta semente, de ser familiar do bem, à capacidade de cada homem de amar. Isto
nos abre a possibilidade de compreender os adeptos de outras religiões, como
vivem esta dimensão do amor. Ele recorda, neste sentido, a palavra de São João:
“Amados, amemo-nos uns aos outros porque o amor é de Deus e aquele que ama é
nascido de Deus e conhece a Deus”.
Lá onde
faíscas ou expressões de amor se encontram numa pessoa, sociedade ou cultura,
diz o Arcebispo Atanasios, Deus está à obra. O amor em suas aplicações
imprevistas, em circunstâncias inesperadas, permanece no critério do último
julgamento quando o Senhor de amor, o Amor encarnado, virá em Sua glória depois
de ter reunido diante d´Ele não somente os cristãos mas todas as nações.
·
A terceira consideração, para o Arcebispo Atanasios, parte do pensamento de São
Gregório de Nazianzo, de que todos os seres humanos têm neles próprios uma
nostalgia de Deus e um desejo de O encontrar, o pensamento humano tendo uma
afinidade com o divino, a imagem de Deus não sendo destruída pelo pecado.
Podemos assim compreender as religiões do Oriente (hinduísmo, budismo) os
quais, não tendo profetas, buscam a revelação da Sabedoria.
·
Enfim, a quarta consideração se refere a São Máximo o Confessor: “O Verbo de
Deus, diz São Máximo, está misteriosamente presente em cada um de Seus
Mandamentos”. Exista uma presença de Cristo em Seus Mandamentos. Aquele que
recebe um de Seus Mandamentos recebe o Verbo de Deus que ai se encontra presente.
Toda pessoa que pratica o amor, a humildade, o perdão o serviço desinteressado,
a aceitação do sofrimento, mesmo se ela não conhece o mistério de Cristo,
recebe o Cristo – Verbo, e aquele que recebe o Cristo em Seus Mandamentos
recebe, segundo São Máximo, o Pai que está n´Ele e o Espírito Santo que está
com Ele.
Em
seu livro, publicado em 2003, Facing the
world, nas edições de Saint-Vladimir de New York, Sua Beatitude desenvolve
uma abordagem trinitária do pluralismo religioso.
O
Arcebispo Atanasios se refere primeiramente aos Efésios 4-6, “um só Deus e Pai
de todos, que está acima de todos, para todos e em todos”. Quaisquer que sejam
as crenças ao sujeito de Deus, existe um só Deus, Mestre do mundo e da
história. Incompreensível e inaproximável em Sua essência, Ele Se revela, e o
universo inteiro está repleto de Sua glória.
As
religiões não são somente o sinal da busca de Deus pelo homem mas o fato de que
o homem pode receber, apesar do pecado e o erro, alguns raios da glória divina.
Todavia, a iniciativa, em vista da salvação, vem sempre de Deus que não deixa
de estar a procura de todos os homens.
Sua
Beatitude se refere em seguida ao Evangelho de São João: “O Verbo fez-Se carne
e habitou entre nós”. Ele lembra as vistas dos Padres que citei mais alto ao
sujeito do Verbo semeador, pedagogo, revelador do Pai. Decerto, a Encarnação é
um acontecimento único e radical, diferente das outras manifestações de Deus na
história.
Mas
na Encarnação, é toda a natureza, tudo o que chamamos de humano que foi
assumido e oferecido a Deus e que recebe então a influência do Verbo. “A obra
do Verbo antes da Encarnação, depois da Encarnação e da Ressurreição, constitui
o coração da experiência litúrgica ortodoxa e funda a nossa esperança
escatológia.”
Sua
Beatitude se refere, enfim, à oração da Igreja Ortodoxa ao Espírito Santo,
“presente em toda parte e que enches tudo, Tesouro de bens e Doador da vida”.
Por toda parte onde se encontram os frutos do Espírito: amor, bondade, verdade,
nós discernimos, segundo São Basílio e São Máximo o Confessor, junto dos fiéis
das religiões não-cristãs, os sinais de Sua atividade que se desenvolve para a
salvação de todos os homens e a realização do destino da humanidade.
PADRE LEV
GILLET
Uma
abordagem espiritual das outras religiões é aquela de meu pai espiritual, o
Arquimandrita Lev Gillet. O Padre Lev é um dos raros ortodoxos a ter consagrado
um livro a uma abordagem cristã do judaísmo contemporâneo - “Communion in the Messiah” (Londres,
Lutterworth Press, 1942). No curso de suas numerosas viagens ao Oriente Médio,
teve um conhecimento vivo do Islão. Como secretário do Congresso Mundial das
Religiões, uma organização que se propõe a instaurar um diálogo entre cristãos
e crentes de outras grandes religiões, recenseou, durante 25 anos, milhares de
obras de todas as religiões em fichas que permanecem ainda a descobrir.
Organizou conferências inter-religiosas e teve contatos com os budistas,
muçulmanos, e os bahaïs.
O
Padre Lev escreve numa de suas cartas: “Junto de todos, eu vejo o Logos. É o
Cristo, eu ouso dizer, que faz a unidade de minha vida e de suas vias.” Noutra
carta, ele escreve: “Quase todo o meu tempo e toda a minha atenção estão
concentrados em Cristo que é latente e que age nas religiões não-cristãs.”
“Hostil
a todo sincretismo, a tudo quê visa a criação de uma super Igreja, síntese
artificial de todas as crenças, ele era sensível ao movimento do Espírito
invisivelmente presente em toda parte, ternura difusa, que choca desde as
origens do caos do mundo e orienta toda coisa ao Logos, o Cristo total do fim
dos tempos” (E. Behr-Siegel). Em seu livro Introduction
à la spiritualité orthodoxe (Desclée de Brouwer, 1983), ele escreve “A graça
do batismo não está limitada à administração do Sacramento do Batismo. Nosso
Senhor concede invisivelmente esta graça as almas de boa vontade que consciente
e inconscientemente têm sede da água viva; um pagão ou um ateu pode recebê-la.”
Comentando
o Evangelho de São João acerca da cura do paralítico na piscina de Bethesda, o
Padre Lev considerava que a piscina era o símbolo da Igreja, onde a presença
sacramental de Cristo opera infalivelmente a salvação. Mas, dizia ele, Cristo
reencontra igualmente os homens livremente, fora da piscina, e os cura.
Também
em seu livro Jésus. Simples regards sur
le Sauveur (Chevetogne, 1959, rééd. Seuil, col. “Livre de vie”, nº 136),
ele escreve: “Os hebreus não conheciam outra luz além daquela da coluna de fogo
que guiava Israel no deserto. Luz limitada. Luz temporária. Luz de um povo e de
uma época. Jesus proclama-Se a luz do mundo. Luz eterna e universal. Ela
ilumina todo homem vindo neste mundo. Sê bendito, Senhor, pelo fato de que a
Tua Luz opere em todas as almas e que a encontremos, tão refratada que ela
esteja, em todas as raças e em todas as crenças.”
VLADIMIR
LOSSKY
Em
seu Essai sur la theologie mystique de
l´Eglise d´Orient (Aubier, 1944, dern. Rééd. Cerf, 2005), Vladimir Lossky
deixava abertas e confiava à misericórdia divina as questões dos limites da
Igreja e da possibilidade da salvação para aqueles que não conheceram a Cristo
no curso desta vida.
Todavia,
Olivier Clément, em sua autobiografia espiritual, L´autre soleil (Stock, 1975, rééd. 1986) escreve o que se segue: “A
propósito da diversidade das religiões das quais eu falava, Lossky atira minha
atenção sobre um texto onde Máximo o Confessor evoca três “encarnações” do
Logos, Verbo e Sabedoria de Deus: primeiramente, encarnação cósmica nas
essências espirituais das coisas que o sábio recolhe e que ele faz oferenda, e
é o melhor das tradições arcaicas e da Índia. Em seguida, a encarnação na lei
quando se desenha com a vocação de Abraão depois da aliança, uma história da
salvação, é o sentido das religiões do livro, Judaísmo e Islão. E enfim, o
Cristo, que está também na origem, recapitula, restaura e planifica o sentido
da história e aquele do universo.”
OLIVIER
CLÉMENT
Em
seu livro Sources (Stock, 1982, rééd.
2008), Olivier Clément, na página 35, cita o texto de Máximo o Confessor
(Antiqua, PG. 91: 1285-1288): “O Verbo Se concentra e toma corpo. Isto pode se
entender primeiramente, pelo amor de nós, Ele dignou-Se pela Sua vinda a carne
de Se concentrar e tomar corpo. Pode-se entender também pelo fato do amor por
nós, Ele Se oculta misteriosamente nas essências espirituais dos seres criados,
como em tantas letras, presente em cada uma, totalmente e com toda a Sua
plenitude. Pode-se entender, enfim, que por amor por nós, que somos lentos a
compreender, Ele dignou-Se exprimir-Se nas letras, nas sílabas e nos sons das
Escrituras para nos arrastar e nos unir em espírito.”
Olivier
Clément adiciona: “A incorporação pessoal do Verbo acaba por dar um sentido as
Sua incorporações cósmica e escriturária, livrando a primeira (nas religiões da
Sabedoria) da tentação de absorver o “Si” num divino impessoal, e livrando a
segunda (nas religiões do Livro), da tentação de separar, sem comunhão
possível, Deus e o homem.”
OS
ORTODOXOS DE CANBERRA
No
relatório preparado pelos ortodoxos em vista da assembléia de Camberra do
Conselho Ecumênico (1991), acerca do tema “Vem, Espírito e renova a criação”,
os ortodoxos puseram o acento sobre o papel do Espírito Santo na criação e o
mistério da salvação:
“Ainda
que o Espírito constitua a Igreja e opere em sua vida, o Espírito de Deus não
está contido ou limitado por ela. O Espírito está presente em toda parte, Ele
sopra onde quer. O caráter misterioso do Espírito Santo nos ajuda
constantemente a transcender todas as perspectivas estreitas relativamente à
Sua atividade. O Espírito está à obra em toda a criação ainda que todos não
estejam cientes e Ele incumbe aos fiéis de reconhecerem a presença do Espírito
Santo lá onde os frutos são visíveis.”
Todavia,
em Canberra, quando o do tema do Espírito Santo foi apresentado pela teóloga
coreana protestante, reconhecendo, nos movimentos de liberação, nos espíritos
coreanos dos antepassados, da terra e das águas, a presença do Espírito Santo,
tal apresentação provocou uma onda de protestos entre os representantes da
Igreja Ortodoxa. Eles encontraram ai a aparência dum sincretismo religioso. O
comunicado que eles publicaram clarifica a posição ortodoxa. Eis os extratos
desta declaração:
“Os
ortodoxos estão alarmados por terem ouvido certas apresentações sobre o tema da
assembléia “Vem, Espírito, e renova a criação”. Os ortodoxos observam que
certas pessoas parecem afirmar a presença do Espírito Santo, sem discernimento,
em alguns movimentos e desenvolvimentos humanos. Os ortodoxos desejavam
insistir sobre o fato de que o pecado e o erro existem em todo empreender
humano.
“Nós
devemos por em guarda contra uma tendência a substituir o espírito deste mundo
ou de outros espíritos ao Espírito Santo, Que procede do Pai e repousa no
Filho. Nossa Tradição é rica em respeito pelos cultos locais e nacionais mas
nos é impossível invocar os espíritos da terra, do ar, da água e das criaturas
marítimas. A pneumatologia é inseparável da cristologia e da doutrina da
Santíssima Trindade confessada pela Igreja sobre a base da revelação divina.”
PARA
CONCLUIR
Eu
gostaria de resumir meu exposto recordando o que disse Clemente de Alexandria:
“A maior e mais real obra de Deus é de salvar a humanidade.” Cristo Jesus não é
o chefe de uma organização, de um partido que reúne aqueles que crêem n´Ele,
mas o Verbo, a Sabedoria, o Poder de Deus que, segundo Santo Irineu, em diversas
economias, vem ao socorro da humanidade em todos os tempos. Ele é também o novo
Adão, arquétipo do primeiro Adão feito à sua imagem, do qual Ele realiza o
destino unindo-o a Deus.
A
Encarnação do Verbo divino, e um momento preciso da história e um lugar preciso
do universo, não limita de maneira alguma a Sua divindade, ela a manifesta. A
Encarnação não põe fim as visitações divinas que a precederam e a prepararam,
ou que a seguirão. Ela as ilumina, recapitula, cumpre e conduz ao seu objetivo
final: o Reino onde Deus será tudo em todos. A aliança nova e eterna no sangue
de Jesus não abole a aliança cósmica com Adão e Noé; ela a confirma.
As
promessas da aliança com Abraão e Moisés não tornam-se obsoletas e caducas em
Cristo: Ele as realiza. Assim, São Paulo, em sua Primeira Epístola a Timóteo,
pode dizer: “O Deus Vivo e o Salvador de todos os homens, em particular dos
crentes” (I Tm. 4, 10). Ele não é então somente o Salvador daqueles que crêem
n´Ele e que recebem a extraordinária riqueza de Sua graça, mas o Salvador de
todos os homens de todos os tempos que não deixa misteriosamente de encontrar e
iluminar em Seu Amor.
“No
presente da história, diz Sua Exma. Georges do Monte-Líbano, estamos ainda
sobre a via do Reino. A Igreja que é o guia e o testemunho se esforça em ser
transparente à luz divina, para que todos os homens vivam desta luz. Mas não
temos na Escritura Santa uma afirmação explícita de que a humanidade, antes do
último dia, dará a esta luz o Nome de Cristo Jesus. Nossa vocação, a todos nós,
é de nos purificar para tornarmos servidores do ágape, de Seu Amor.”
Isto
significa, diz Sua Beatitude, nosso Patriarca Ignácio IV de Antioquia, “que no
rosto do outro, quem quer que ele seja, na vibração de sua voz, na luz de seus
olhos, descobriremos, amaremos Aquele que nos criou a todos.”
Na
difícil história em que atravessamos, segundo as palavras de Sua Beatitude em
sua conferência na Universidade de Atenas, em 1991, “o poder de vida, de
unidade e de santidade que recepta o Corpo de Cristo deve ser sem cessar
manifestado pelos cristãos e como que reinventado no Espírito Santo e a
liberdade, por um esforço sempre renovado de penitência e de criatividade, a
fim de poder, as religiões da única transcendência (Judaísmo e Islão) dizer à
Encarnação: as religiões da fusão no impessoal (Hinduísmo e Budismo) dizer a
Unitrindade e as energias divinas; aos humanismos mais ou menos ateístas,
lembrar que o homem não seria nada se ele não fosse, para lá de seus
condicionamentos, um enigma ou talvez até um ícone. A todos e a nós mesmos,
primeiramente, lembremos que o Cristianismo anuncia o Verbo que Se fez carne
para que a carne torne-se Verbo.”
COMENTÁRIOS,
QUESTÕES E DISCUSSÃO
- Este exposto não
somente nos estimula a testemunhar de nossa fé, a vivê-la em Cristo e na
Igreja, como também nos incita à humildade nas relações que devemos ter com os
outros, a fim de que seja em verdade o próprio Cristo que diga por nós mesmos,
por meio de nossa vida de crente. Esta responsabilidade imensa, vo-la
exprimiste magnificamente. No diálogo e no encontro com as outras religiões,
temos a responsabilidade de portar o Cristo, de ser a encarnação do Cristo no
meio daqueles que são chamados a descobri-Lo e que só poderão fazê-lo se nós O
portarmos e vivermo-Lo.
Albert Laham: Se, em efeito, reconhecemos o Cristo
em Sua dimensão total. Se, como diz o Apóstolo São Paulo, com todos os Santos
(pois que não podemos fazer sozinhos), chegarmos a conhecer a lonjura e a
largura, a altura e a profundidade do mistério de Cristo, que ultrapassa toda
inteligência. Ser cristão, é tentar entrar neste mistério pela comunhão pessoal
com o Senhor Jesus Cristo, graças ao Espírito Santo e aos Sacramentos que nos
são dados na Igreja, e graças à leitura da Palavra. Como remarcastes, não digo
nada de mim mesmo e não quero dizer nada de mim mesmo. Eu repito a Palavra e
aqueles que a interpretaram.
- O que me perturba
muito, na atitude da Igreja Ortodoxa, são as grandes contradições ao sujeito do
tema abordado hoje. Eu leio simplesmente uma frase de nosso Patriarca
Bartolomeu extraída de um texto publicado em sua mensagem de Natal, há dois
anos atrás – penso eu: “Nós, filhos bem-amados, nós cremos e sabemos
perfeitamente que não existe salvação fora de Cristo, nome algum pode nos
salvar além daquele de Jesus Cristo.” E mais, o próprio Cristo diz d´Ele mesmo:
“Ninguém vai ao Pai, senão por Mim.” E também: “Aquele que não esta Comigo é
contra Mim.” A meu ver, está em contradição com o que acabamos de ouvir. Vedes?
Notoriamente, o texto de nosso Patriarca, que é muito claro: se não somos
cristãos... Ele diz que sabemos perfeitamente que não há salvação fora de
Cristo.
Sim
O Cristo que o Patriarca fala é o Cristo da Fé Ortodoxa, quer dizer, o Verbo de
Deus. Quer dizer que não há salvação fora do Verbo. Todas as vias passam por
Ele e o que dizemos, é que necessário é saber reconhecer Sua ação fora da
Igreja. A Igreja é o Sacramento da salvação que opera no mundo, mas ele opera
bem além. Tudo o que li junto dos Padres e tudo o que li no Evangelho, eu
citei.
Eu
leio a Escritura regularmente. Até então tinha lido a parábola do semeador,
como reportada em São Lucas e nos sinóticos, e todos nós compreendemos que o
semeador semeia a palavra no coração dos homens. Existem aqueles que a aceitam
e aqueles que a rejeitam...
Todavia,
certo dia, ao lê-la – pois que encontramos sempre novidades ao ler a Escritura
– um belo dia, ao ler o capítulo 13 de São Mateus, fui tocado pela parábola do
joio que é jogado no campo do semeador, onde é dito que o campo onde a palavra
é jogada, é o mundo. Não é mais o coração, antes o mundo. Então Cristo, sim,
Ele é o único por Quem somos salvos, mas é o Cristo Verbo eterno de Quem vêm
toda luz. Ele concentra n´Ele toda a obra de Deus para o homem e tudo o que o
homem se põe a fazer em Nome de Deus ou mesmo em nome da humanidade. É isto que
queria dizer quando me referi ao fim: Cristo não é simplesmente o chefe de uma
organização. Ele é o Verbo eterno do Pai.
Se
colocamos isto na cabeça compreendemos que jamais houve e que nunca haverá vida
alguma, nem biológica, nem espiritual, nem religiosa de qualquer valor que ela
seja no mundo que não venha d´Ele pelo Espírito Santo. Se aceitamos isto,
saberíamos que é n´Ele somente que somos salvos e que não existe outro Nome que
salva. Somente, alguns O nomeiam e O conhecem, outros não O conhecem. Eles
conhecem alguma coisa d´Ele, dos mandamentos, das revelações, das luzes, mas
não O conhecem na totalidade. É um pouco disto que a conferência quis dizer, a
partir da Escritura.
Tomemos
o Antigo Testamento. Aprendemos que a história da salvação começa com Abraão e
a promessa feita a Abraão. Durante o período da quaresma, lemos a Gênesis e, ao
ler a Gênesis, minha atenção foi atirada pelo fato de que existem duas
formulações de uma das promessas feitas a Abraão. Uma vez, ele diz: “Tu serás o
pai de uma grande nação”, mas outra vez, lhe diz: “Tu serás o pai de uma
multidão de nações”. Logo, a partir daquilo que lá é dito, é como que se a
salvação, tudo o que era antes de Abraão, não era nada, simplesmente a legenda
do dilúvio, e que tudo começava com Abraão para terminar com Jesus Cristo na
Igreja.
No
entanto, Deus não para nunca: o Reino ainda não terminou, e São Paulo diz que é
somente quando Ele tiver colocado todos os Seus inimigos sob os Seus pés – e o
último inimigo será a morte – é somente então que remeterá o Reino ao Seu Pai a
fim de que Deus seja tudo em todos. Eis então o que o Filho, representando a
humanidade, o novo Adão, se submeterá, Ele-próprio ao Pai, em nome da
humanidade que Ele salvou e reconduziu ao Pai.
Se
quero explicar a fé cristã, refiro-me a esta parábola do Bom Pastor: ele perdeu
a ovelha e vai buscá-la, a põe sobre Seus ombros e volta com ela, e lá existe
alegria no céu. E então! A ovelha é o homem e o Senhor vem lá onde o homem
havia caído, quer dizer na morte. Ele vai na morte para tomar o homem que
morreu a fim de o levar ao céu. O homem, todo homem.
Então,
existem aqueles que aceitam e aqueles que rejeitam. Havemos visto um pouco do
que nos diz São Paulo na Epístola aos Romanos: existem judeus e pagãos que
serão condenados por não terem praticado a justiça; da mesma maneira, no
julgamento final, haverão cristãos que serão rejeitados por não terem praticado
o amor. Ele não lhes diz: “Recitastes corretamente o Símbolo da Fé de Nicéia
(Credo)?” mas: “Estava doente, viestes me ajudar? Estava nu, viestes me
vestir?” Existe o Cristo e existe a aceitação dos Mandamentos de Cristo, e a
vida segundo Cristo. Mas esta vida segundo Cristo implica, como disse nosso
Patriarca no texto que citei, que nós reconheçamos em todo homem a imagem de
Cristo e que o tratemos desta maneira.
- Colocar-vos-ei duas
questões, uma menor e uma talvez maior. A menor primeiramente: o ser humano tal
como a Ortodoxia o considera, o ser humano, em geral, pertence a Cristo e, em
particular, os cristãos pertencem à Igreja, não é? Em seguida, a segunda
questão: se o ser humano em geral criado pelo Verbo, a quem pertence depois da
morte? Pois que existe o cristão que morre em sua fé e em seguida aqueles que
pertencem as outras religiões, que têm uma outra fé, mas que, segundo a
Ortodoxia, pertencem todos ao Verbo, mas o Verbo que, todavia, não lhe foi
revelado.
A
Revelação, como disse, é múltipla. Ela é total e plena em Jesus de Nazaré. Esta
Revelação é total, perpetuada na Igreja e seus Sacramentos, que nos dão a graça
direta de poder passar da morte à vida já nesta vida – só é o Cristo: “Aquele
que crê em Mim, passou da morte à vida.” Agora, e não amanhã. Os outros homens,
que recebem um certo raio da luz divina, do Verbo que é a luz que ilumina todo
homem neste mundo, serão julgados sobre a base da luz que conheceram.
É
o que nos diz o Apóstolos Paulo em sua Epístola aos Romanos, no primeiro
capítulo, que nos mostra uma imagem muito sombria da humanidade pagã. Ledes o
primeiro capítulo, ele é muito sombrio. Mas sutilmente, no capítulo dois, “não
existe parcialidade em Deus, Deus não faz acepção de pessoas” (Rm. 2, 11) e ele
nos revela este mistério onde somos julgados segundo o que fazemos, segundo ao
que fomos fiéis à luz do que recebemos e na medida onde esta fidelidade foi
exprimida – por atos, por palavras, por gestos, pela piedade, pelo amor, pelo
perdão mútuo sobretudo. É uma unidade.
O
Cristianismo é uma unidade: vós aceitais o Senhor, Ele entra em toda a vossa
vida, em todos os recantos de vossa vida e vós O aceitais em toda a sua
plenitude e não somente na dimensão de um único grupo, de um único partido ou
de uma única Igreja.
- Gostaria de saber a
quem se dirige, segundo a vossa pessoa, a palavra que diz: “Bem-aventurados os
benditos de Meu Pai.”
“Bem-aventurados
os benditos de Meu Pai.” E então, está no capítulo 25 do Evangelho de São
Mateus: “Vinde, os benditos de Meu Pai, tomai parte no Reino que vos foi
preparado desde o começo do mundo”. E Ele diz isto àqueles a quem Ele diz: “Eu
estava nu e vós não me vestistes”, “Tive fome e não Me destes de comer”, “Tive
sede e não Me destes de beber”, etc.
Sabe,
talvez poderíamos fazer uma distinção ao falar da fé. Vimos que a fé de Abel,
muito antes de Abraão, a fé de Enoc, a fé de Melquisedec, de Noé, etc, a fé da
Cananéia e do centurião pagão lhes salvaram e, por Cristo, eles foram curados
em virtude de sua fé. Podemos dizer que a fé, sob esta relação, é este abandono
total em Deus pela qual entregais a Ele toda vossa alma e vosso coração. “Meu
filho, dá-Me o teu coração.”
E
esta fé torna-se mais forte, mais sólida, se ela vem da crença correta, pela
ortodoxia... A Ortopraxia e a Ortodoxia completam a fé e vos permitem de ir até
o final deste dom de vós mesmos a Deus, segundo o Evangelho deste dia (Lc. 18,
18-27). A doutrina, a fé ortodoxa, não são conhecimentos que repetimos, antes a
fonte de uma vida que praticamos, de uma fé pela qual nos abandonamos. É o
sentido da palavra isl ām no Islão.
- Destes o exemplo de
um certo número de Padres da Igreja, mas sobretudo da Igreja grega. Será que os
Padres latinos tais como Santo Ambrósio ou Santo Agostinho também se
interessaram neste assunto?
Eu
não procurei em toda parte, mas sei que Santo Agostinho, mesmo apesar de sua
teologia, considerou seguidamente que existiam pessoas que estavam
predestinadas à salvação e outras que não estavam. Santo Agostinho fala
efetivamente também da presença universal do Verbo. Ele fala disto. Tenho
comigo textos, mas não os citei...
Encontrei
que Orígenes, ainda que assaz crítico do ponto de vista da filosofia, de uma
parte, encontrava que ela era empregada para explicar a fé cristã, mas
reconhecia também as sementes do Verbo fora do Cristianismo. Sabia que Orígenes
foi mais longe! Para Orígenes, todos os homens acabariam por serem salvos.
Depois da morte, passariam por certos estados espirituais de purificação e
acabariam por serem salvos. Sabia que a Igreja condenou esta tese com o nome de
“apocatastase”, como denominamos no V século.
Mas
as orações da Igreja são para todos os homens. No capítulo 2 da Primeira
Epístola a Timóteo, São Paulo pede que se façam orações por todos os homens por
que Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da
Verdade. São João Clímaco tem a seguinte frase: “Que todos alcancem o desprezo
completo é impossível, mas que todos sejam salvos, não é impossível.”
E
Santo Isaac o Sírio orava até pelos demônios, ele orava pela salvação dos
demônios, pela salvação dos inimigos de Cristo, pelas serpentes, e eu creio ter
lido em Dostoïevski que perguntavam por que razão certa mulher acendia duas
velas diante do ícone de São Jorge. Ela responde: “Uma para a salvação dos
homens pelas orações de São Jorge e a outra é pela salvação do dragão.”
- Penso eu que os teólogos contemporâneos que
citou são pessoas que vêm de um meio onde são confrontados com o pluralismo
religioso. Todavia, a Igreja Ortodoxa nos países como a Rússia, a Romênia, a
Sérvia, a Grécia - tenho a impressão - ainda está bem longe desta visão das
coisas, pois que nestes países ela ainda está ligada ao nacionalismo.
A
fé da Igreja Ortodoxa é uma. Ela está na Escritura Santa e nos Santos Padres.
Nós somos todos chamados, como nos diz o Patriarca de Antioquia, a fazer com
que os tesouros de santidade e de unidade que existem nos corpos de Cristo
estejam constantemente reinventados na criatividade, pela penitência,
primeiramente, pela conversão, nossa própria conversão, e pelo amor. Mas, eu
diria que a maioria dos povos ortodoxos viveu em sociedades pluralistas.
Junto
de nós, no Patriarcado de Antioquia, no Oriente-Médio, houve primeiramente o
período de perseguição onde éramos confrontados por vezes aos ataques dos
judeus e os ataques dos pagãos, em seguida, durante os três-quatro primeiros
séculos cristãos que seguiram, os IV,V,VI,VII séculos, os imperadores
perseguiram os ortodoxos quando o poder optava pela heresia; seguidamente,
vivemos no meio do Islão. Isto faz 1400 anos que vivemos no meio do Islão. Não
é nada fácil. Vós os tendes há 20, 40 anos. Nós, nós vivemos com o Islão há
1400 anos...
A
Igreja Russa teve no mínimo 60 milhões de muçulmanos com os quais ela trata;
existe na Rússia uma Conferência mais ou menos permanente das religiões
tradicionais onde os budistas, os muçulmanos e os hinduístas sentam com os
representantes da Igreja Ortodoxa.
Eu
gostaria de vos lembrar também uma coisa. A primeira conferência panortodoxa
pré-conciliar [em 1976] declarou o seguinte: “O voto da Igreja Ortodoxa é de
colaborar ao entendimento entre as diversas religiões do mundo a fim de erradicar
o fanatismo de todos os lados e de chegar a reconciliação dos povos e à
salvaguarda da paz e da liberdade no mundo – ao serviço da humanidade, sem
distinção de raça ou de religião.” Eu não citei este texto porque ele não fala
do aspecto teológico da questão, mas do aspecto prático.
Os
sérvios, os gregos, todos os Bálcãs confrontaram o Islão. Durante quantos anos?
Do XI-XII século ao XIX século. A Igreja não calcedoniana da Etiópia confrontou
o Islão e a Igreja Ortodoxa não calcedoniana da Índia confrontou o Hinduísmo.
Ela está lá desde o tempo de São Tomé e continua a pregar o Cristo neste
contexto.
Sabia
que numa de minhas leituras, aquela de um teólogo grego dos Estados Unidos, o
Padre Emanuel Clapsis...ele diz o seguinte: os cristãos, a missão cristã não
tem a aportar Deus as outras culturas porque Ele já os precedeu. Ele já está
lá. Vós deveis simplesmente reconhecer e despertar neles o que é de Deus. É
apaixonante querer fazer esta busca, não na luz do nacionalismo ou do interesse
político, mas à luz da fé cristã.
- A propósito da Palavra, parece-me
importante precisar que todas as dificuldades repousam efetivamente sobre
aquela que consiste em situar um texto em seu contexto, em sua época, e que o
grosso trabalho é efetivamente o de dar à palavra o verdadeiro sentido que ela
tem, tal como se aplica à nossa inteligência atual, ao nosso mundo.
A
Palavra é a mesma. Ela fala a cada um em sua vida, em seu contexto, em seu
meio. Ela fala à cada Igreja, à cada paróquia e à cada entidade eclesiástica em
qualquer período que seja, no contexto onde elas se encontram, a fim de que
possam exprimi-la em seu próprio contexto.
Existem
duas maneiras de abordar a Palavra e de considerar a abordagem histórica e
crítica da Escritura Santa que prevaleceu durante uma centena de anos, onde se
tratava questões hoje clarificadas, como a autenticidade das Escrituras, sua
historicidade, etc. A primeira maneira consiste em dizer: bom, o mundo hoje
quer isto, vamos encontrar na Escritura o que é conforme ao que o mundo busca.
A outra abordagem, ortodoxa, é de se demandar: o que diz a Escritura acerca do
problema ao qual eu enfrento hoje? Será que existe uma mensagem na Escritura?
Se não há mensagem nítida, o que teria feito Jesus, o que Ele teria dito nesta
situação em que nos encontramos? Certamente, não teria lançado o anátema sobre
o universo inteiro, dizendo: Tô indo embora!
Não
sei se alguém dentre vós leu os Irmãos
Karamazov de Dostoïevski e se leram a lenda do Grande Inquisidor. Cristo
retorna à Sevilha durante o período da Grande Inquisição. Ele passeia pelas
ruas de Sevilha para pregar o Seu Evangelho e o Grande Inquisidor fá-Lo prender
e lançar na prisão. Ele vem Lhe ver e Lhe diz: “Mas o quê vens fazer? Nós, nós
temos o trabalho de levar as pessoas até Ti. Compreendemos as pessoas melhor do
que Ti. Não quisestes mudar as pedras em pão, mas as pessoas tem necessidade de
pão, então no-las damos pão a fim de conduzi-las a Ti. Recusaste lançar-Se do
cume do Templo para manifestar que Tu és o Filho de Deus, mas nós Tas
conduzimos pela magnificência das manifestações e dos milagres que lhes
propomos. E Tu recusas os reinos, quando o Diabo tos propôs. Tu disseste: “Só adorarei
um único Deus”.E então! Nós aceitamos a realeza e o poder temporal a fim de Te
conduzir o mundo. Logo, o que vens fazer? Nós fazemos as coisas melhor do que
Ti.”
Um
outro exemplo: “Que a Tua vontade seja feita assim na terra como no céu.”
Sabeis como Bossuet interpretava esta frase? Ele considerava que se existe um
céu, um soberano que é Deus e que é adorado e obedecido por todos os Anjos, é
necessário que haja sobre a terra, um soberano absoluto ao qual todos os
sujeitos devam obedecer. Assim, vede, não podemos interpretar as Escrituras a
partir do que o contexto demanda, mas é necessário interpretá-la a partir do
que ela quer dizer no contexto no qual vivemos. E o Espírito Santo está lá para
nos esclarecer a este sujeito.
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