ORTODOXIA E PLURALISMO RELIGIOSO


LAHAM M. Albert
tradução de monja Rebeca (Pereira)


Vivemos uma época de grande confusão religiosa. A secularização da sociedade relegou Deus na esfera privada da consciência. A interpretação livre e crítica da Escritura enfraquece junto de muitos cristãos a inteligência do mistério da fé que ai é revelado. A mundialização, as mudanças na demografia do mundo, a emergência do islão, do hinduísmo e do budismo, como fatores influentes na sociedade internacional, e mesmo européia, colocam na consciência de muitos cristãos, qualquer que seja a sua confissão, o problema do sentido se sua fé em relação à fé dos não-cristãos, bem como o sentido e o valor das religiões não cristãs em relação à fé cristã.
             
O problema assim colocado ultrapassa o estudo comparativo das religiões, ainda que suponha um conhecimento exato, um sério estudo e uma escuta sincera das religiões, das disposições que, infelizmente, são pouco espalhadas em nossos dias. Adicionemos a tudo isto que o problema é posto no contexto das predições pessimistas quanto ao afrontamento inelutável das civilizações e das religiões, enquanto a história guarda viva a lembrança das guerras conduzidas em nome de um exclusivismo religioso ou de um colonialismo cultural.

Uma teologia do pluralismo religioso?
A teologia das religiões ou o pluralismo religioso é relativamente recente e busca ainda sua via. Certos teólogos protestantes reagem contra o exclusivismo da teologia de Karl Barth ou contra os fundamentalistas que predestinam ao inferno todos os não-cristãos, propondo uma relativização da Bíblia como revelação de Deus, ou mesmo uma distinção entre o Jesus histórico, o homem de Nazaré, e o Cristo da fé que teria emergido como Verbo Eterno da contemplação e da experiência espiritual dos primeiros cristãos. Isto permitiria a seus olhos antes um Cristianismo centrado sobre Deus e seu Reino que há-de-vir, do que sobre a Pessoa de Jesus, e que seria o fundamento de uma leitura das religiões.
             
Compreendeis que tal abordagem não é aceitável para os ortodoxos. Podeis, para ler tal abordagem, vos referir em guisa de exemplo ao livro A Bíblia e Os fiéis de outras confissões, publicado pelas edições do Conselho Ecumênico das Igrejas, escrito por Wesley Ariarajah. Na Igreja Católico-Romana, o Segundo Concílio do Vaticano, e ainda as encíclicas de Paulo VI e de João Paulo II, fixaram o quadro oficial de uma abordagem do pluralismo e do diálogo inter-religioso. A Igreja Ortodoxa não se pronunciou mediante tal projeto.
             
Por não ser teólogo, não pretendo vos apresentar uma construção teológica do problema à luz da fé ortodoxa. Eu me contentarei no curso de uma primeira parte de meu exposto de evocar alguns aspectos da doutrina ortodoxa que são susceptíveis à construção de uma semelhante teologia. Numa segunda parte, darei uma idéia geral dos textos bíblicos que poderiam ajudar a compreender o problema do pluralismo religioso. Em seguida, uma breve olhadela na abordagem do problema pelos primeiros Padres da Igreja e enfim por alguns teólogos ortodoxos contemporâneos.


ALGUNS PONTOS DO PENSAMENTO TEOLÓGICO ORTODOXO
1.            A Ortodoxia crê que a Bíblia é a expressão da revelação suprema recebida e vivida no Espírito Santo, na tradição viva da Igreja e na doxologia litúrgica. Não se faz, então, necessário relativizar a mensagem.
2.            Para a Ortodoxia, a criação é um ato livre do Deus Amor, pelo qual a Trindade supra-essencial chama os seres à participação da glória divina. O Verbo “em Quem está a vida e a luz dos homens” criou o mundo e permanece em Sua criação. “Ele estava no mundo”, diz São João, mesmo se o mundo não O conhecesse. Assim, a criação é uma teofania – uma manifestação de Deus. O Salmo 19 diz: “Os céus narram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de Suas mãos; um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite” (Sl. 19, 1-2).
3.            O homem é criado “à imagem e semelhança” de Deus. A teologia ortodoxa distingue a imagem e a semelhança. A imagem de Deus no homem implica que ele esteja ordenado ao seu Criador. A semelhança é a perfeição da imagem. Ora, a imagem perfeita do Deus invisível é Seu Filho. A vocação do homem, imagem de Deus, estava então, na comunhão com Deus e na obediência, de conduzir toda a criação, da qual ele era o rei e o sacerdote, ao seu termo – união com Deus no Filho, “por Quem foram criadas todas as coisas” ( I Jo. 1, 3; Col. 1, 16).
4.            Para a Ortodoxia, o pecado do homem não destruiu nele a imagem de Deus, mas a obscureceu. O homem permanece uma pessoa livre, mas sua liberdade é desviada. Ele permanece um ser racional, cuja razão, todavia, é perturbada pelas paixões. Ele ainda domina a criação, mas pode ai se perder e adorá-la. Sua consciência tornada incerta escusa-o e acusa-o ao mesmo tempo. A morte é por vezes o salário do pecado e uma misericórdia divina. A diversidade múltipla que deveria ter sido uma fonte de unidade harmoniosa à imagem da unitrindade de Deus, torna-se uma fonte de divisões e de conflitos.
5.            O pecado do homem não reduziu ao nada o desígnio de Deus. O Salmo 33 nos diz que o “conselho do Senhor permanece para sempre: os intentos de Seu coração de geração em geração” (Sl. 33, 11). A vocação do primeiro Adão será plena pelo Cristo, segundo Adão. Deus Se faz homem para que o homem possa tornar-se deus. Tal é o ensinamento unânime dos Padres da Igreja, tal é o mistério “oculto em mistério, o qual Deus ordenou antes dos séculos para a nossa glória” (I Co. 1, 7) a fim “de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” (Ef. 1, 10).
6.            Em vista de realizar este desígnio, Deus entra a partir de então sem cessar na história dos homens, para preparar a vinda de Seu Filho na carne da humanidade e da criação. A história da salvação é a história deste jogo divino do desígnio de Deus e da liberdade do homem, história de visitações múltiplas e variadas da humanidade por Deus através dos tempos e das gerações até a restauração de todas as coisas.
7.            Deus, diz Vladimir Lossky, “coordena Suas ações com os atos dos seres criados, a fim de governar o universo caído, realizando Sua vontade sem fazer violência à liberdade das criaturas”; sem cessar, “Deus desce no mundo pelos atos de Sua providência, pela Sua economia (o que quer dizer construção ou administração de uma casa) e, na plenitude dos tempos, o Verbo de Deus, Sabedoria hypostática do Pai, “construirá para Si uma casa” na carne da humanidade.
8.            Segundo a Igreja Ortodoxa, o Verbo, segunda Pessoa da Trindade, ao Se encarnar, uniu-Se em Jesus Cristo à uma natureza humana, ou melhor, dizem os Padres, à natureza humana. Para eles, em efeito, interpretando e prolongando a Escritura, “dizer que existem muitos homens é um abuso ordinário da linguagem. Existe, decerto, uma pluralidade que partilha a mesma natureza humana mas através deles todos, diz Gregório de Nissa, o homem é um”. Poderíamos dizer que a noção da natureza humana única à qual todos os homens participam com ele que o Verbo sofreu, Que morreu e ressuscitou, de sorte que o Apóstolo pode dizer de maneira concreta e muito realista que “Deus nos fez reviver com o Cristo, erguendo-nos junto com Ele e nos fez assentar com Ele nas regiões celestes” (Ef. 2, 5-6).
9.            “Em nosso corpo, diz Gregório de Nissa, a atividade de um único dos membros dispensa uma sensação em todo organismo ligado a este membro. O mesmo acontece para a humanidade inteira que forma, por assim dizer, um único ser vivo. A ressurreição de um membro (quer dizer o Cristo) se estende ao conjunto, e da parte se comunica ao todo, em virtude da coesão e da unidade da natureza humana.”
         Ora, o Cristo não é somente um dos membros da humanidade. Novo Adão, Ele é a Cabeça (Col. 1, 18). Descendo nas regiões inferiores da terra, “subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens” (Ef. 4, 8-10). Não disse: “Quando for levantado da terra, chamarei tudo a Mim”? Assim, os frutos de Sua Encarnação, de Sua Paixão e de Sua Ressurreição, se propagam e são sensíveis em toda criação e na humanidade inteira.
10.         A partir de então o corpo de Cristo ressuscitado, do qual a Igreja é o Sacramento, está como que escondido na massa humana, como um fermento e com um gérmen de fogo, trabalhando a história como do interior e, enquanto seu polo final, chamando-o misteriosamente ao seu termo: a realização e a recapitulação de todas as coisas em Cristo, no Reino que Ele entregará ao Seu Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos. A Igreja é o Sacramento deste Reino já lá, mas ainda não acabado. Ela é suas primícias. Ela testemunha dele. Ela o antecipa na Eucaristia, oferecendo o Pai pelo Cristo no Espírito Santo, o universo criado e a humanidade criada: “Relembrando de tudo realizado por nós: Aquilo que é Teu, recebendo-o de Ti, nós To oferecemos por todos e por tudo”.

A BÍBLIA E O PLURALISMO RELIGIOSO
Relembrando a história santa tal como ela é contada na Bíblia, temos o hábito de passar da criação de Adão e de Eva ao dilúvio, e diretamente depois do dilúvio, a Abraão, o que deixa aberta a questão da relação de Deus com todos os homens que viveram durante dezenas de milhares de anos, antes da eleição de Abraão, e aqueles que nasceram e nascem fora desta aliança.
             
Ora, o Antigo Testamento ergue uma imagem muito sombria da vida religiosa das nações que cercam Israel. Na Bíblia, em efeito, a humanidade parece dividida em dois grupos. De uma parte, o povo judeu da aliança e de outra parte, os outros povos que chamamos de “nações”, os “gentios” ou junto de São Paulo, os “gregos”.
             
É verdade que a Bíblia, nos livros do Antigo Testamento, considera, diretamente, a intervenção divina no único desígnio de Israel. Mas ao revelar o desígnio eterno da salvação de todas as nações, deixa transparente as visitações divinas, fontes de fé e de salvação, através dos tempos da humanidade antes da eleição de Abraão e depois desta. A Epístola aos Hebreus, no capítulo 11, versículo 4, fala de Abel, o filho de Adão, que “pela fé oferece a Deus um melhor sacrifício, alcançando testemunho pelo próprio Deus que era justo”. Hebreus 11, 5 fala de Enoc, o qual “pela fé, foi transladado para não ver a morte, alcançando testemunho de que agradara a Deus”, tendo andado com Deus (Gn. 5, 22).
             
No versículo 7 do mesmo capítulo, Noé “divinamente avisado das coisas que ainda se não viam” – o dilúvio, é apresentado como tendo “pela fé, condenado o mundo pecador” e torna-se “herdeiro da justiça segundo a fé”. Com ele, diz o Gênesis, Deus concluiu e com sua descendência – quer dizer com toda humanidade – uma aliança eterna (Gn. 3, 8-12). No capítulo 7 da mesma Epístola, Melquisedec, sacerdote e rei de Salém – fora da linhagem de Abraão abençoou este último e, “sendo feito semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb. 7, 3).
             
Em Ezequiel no capítulo 14, versículos 14, 18 e 20 Deus, ameaçando destruir completamente Jerusalém, declara que “se houvesse no meio do país estes três homens, Noé, Job e Daniel, eles salvariam suas vidas em virtude de sua justiça”. Ora Noé e Job não são hebreus e Daniel é uma personagem da tradição cananeana pagã, conhecido pelos escritos do antigo Ugarit. Da mesma maneira, as gentes de Nínive, pagãos a quem o Profeta Jonas foi enviado “creram em Deus” e “Deus vê suas obras e Se arrepende do mal que tinha mencionado lhes fazer, e não o fez” (Jn. 3, 5, 10), provocando a cólera de Jonas. “Eu sabia, diz ele, que Tu és um Deus compassivo e misericordioso, lento para cólera e rico em misericórdia”.
             
No tempo do Profeta Elias, é uma viúva pagã de Sarepta, no país de Sidon, que beneficia da graça divina. No tempo de Eliseu, é Naaman o Sirito, ele também pagão, que agrada a Deus, e a Rainha de Sabá, sendo ela também pagã, “vinda das extremidades da terra para escutar a sabedoria de Salomão se levantará, diz o Senhor, no dia do Julgamento e condenará a incredulidade” (Mt. 12, 42) dos fariseus. No Livro dos Números é mesmo reconhecido em Barlaão uma profecia entre as nações.
             
Todos os santos pagãos do Antigo Testamento e todos os Santos que nossa Igreja Ortodoxa invoca como sendo “agradáveis a Deus no dealbar dos séculos” (nós contamos com esta frase em nossas orações diárias) testemunham da misericórdia de Deus que, segundo a Escritura, preenche toda terra (Sl. 119, 64), e de Sua compaixão que se estende sobre todas as Suas obras (145, 9), e de Seu Espírito incorruptível que, segundo o Livro da Sabedoria de Salomão, está em todas as coisas (Sb. 12, 1).
             
No capítulo 7 deste livro da Sabedoria, esta que o Novo Testamento reconhecerá hypostasida em Cristo, é descrita como “um eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente, um espelho nítido da atividade de Deus e imagem de Sua bondade: tudo renova e, entrando nas almas santas de cada geração, delas fez amigos de Deus” (Sb.7, 25-27). Ela encontra suas delícias nos filhos dos homens (Pv. 8, 31) e se deixa encontrar por aqueles que a procuram (Sb. 6, 12) ou melhor, como é dito no Profeta Isaías: “Fui achado daqueles que não me buscavam” (Is. 65, 1).
             
No Novo Testamento, enquanto Mateus faz remontar a genealogia de Jesus, filho de David até Abraão, São Lucas remonta até Noé e Adão, mostrando assim que a história da salvação não corresponde à única história do povo judeu e que Cristo recapitula todas as alianças com a humanidade. No capítulo 13 de São Mateus, o Senhor Jesus, ao explicar a parábola do joio do campo do semeador, indica que o semeador é o Filho do homem e que o campo onde a boa semente da Palavra é semeada, é o mundo inteiro, confirmando assim a universalidade da presença ativa de Jesus na história de todos os povos.
             
De fato, Cristo, enviado primeiramente para as ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt. 15, 24) Se maravilha da fé do centurião pagão e diz: “Em verdade vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tanta fé” (Mt. 8, 10). Ele louva a fé da Cananéia pagã (Mt. 15, 28) e do leproso samaritano (Lc. 17, 18) – e sabeis que os samaritanos eram considerados piores do que os pagãos pelos judeus. Ele recebe e cura, por meio da fé, os doentes, os possessos e os paralíticos que se Lhe eram trazidos da Síria (Mt. 4, 24) e dá, ao legista judeu, o bom samaritano como exemplo de amor pelo próximo: “Vai, e faze da mesma maneira” (Lc. 10, 37). É também a uma samaritana que Ele revela, em uma de Suas páginas mais sublimes das Escrituras, a ultrapassagem de Jerusalém e de Garizim pela adoração em espírito e em verdade (Jo. 4, 21-24). Enfim, é o bom samaritano que os Padres da Igreja vêem como o tipo de Cristo, cuidando da humanidade rasgada, jogada sobre os caminhos da história.
             
Não está em tudo isto a confirmação da predicação de Pedro em Cesaréia diante de Cornélio, ele também pagão, mas “homem justo e temente a Deus” (At. 10, 2).: “Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; mas que Lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, O teme e obra o que é justo” (At. 10, 34-35). “Porque, para com Deus, não há acepção de pessoas”, repete São Paulo, na Epístola aos Romanos (Rm. 2, 11): “Tribulação e angústia sobre toda a alma do homem que obra o mal; primeiramente do judeu e também do grego” (Rm. 2, 9-10) pois, diz ele “ quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os quer defendendo-os” (Rm. 2, 14-15).


COMO OS PRIMEIROS PADRES DA IGREJAS CONSIDERAVAM O PLURALISMO RELIGIOSO?

SÃO JUSTINO
É à luz da visão do desdobramento universal da salvação que os primeiros Padres tentaram decifrar o torto mistério das outras tradições religiosas, no meio dos quais os cristãos não passavam de um pequeno rebanho do Bom Pastor.
             
No meio do II século, São Justino, filósofo e mártir, faz apelo em suas “Apologias”, as sementes do Verbo inatas na humanidade, como estando na origem do que é belo, bom e justo nela. “Cristo é o Verbo de Deus, ao Qual todos os homens participam. Eis o que aprendemos e declaramos...Aqueles que viveram segundo o Verbo são cristãos, mesmo tendo eles passado por ateus, como junto dos gregos Sócrates e Heráclito, e seus semelhantes, e também os bárbaros (os não gregos), Abraão, Elias e tantos outros. Aqueles que viveram e vivem segundo o Verbo são cristãos...”
             
“Todo homem possui uma semente do Logos em sua razão, semente espalhada na humanidade inteira.”
              São Justino adiciona todavia: “Nossos dogmas são mais augustos que toda doutrina porque temos todo o Verbo em Cristo que apareceu para nós, corpo, Verbo e alma. Todas as verdades que os filósofos e os legisladores descobriram e expressaram, devem-nas ao fato de terem encontrado e contemplado parcialmente no Verbo. Cada um deles, em efeito, viu do Verbo divino disseminado no mundo, o que estava relacionado com sua natureza, e pode exprimir assim uma verdade parcial.”
             
“Mas, outra coisa é possuir uma semente e uma semelhança proporcionadas as suas faculdades e ter o objeto cuja participação e a imitação procedem da graça que vem dele. É pelo fato de não terem conhecido todo o Logos que é o Cristo que freqüentemente se contradizem eles mesmos”.

SÃO CLEMENTE DE ALEXANDRIA
São Clemente de Alexandria fala, ele também, do Logos como fonte de todo conhecimento divino pois “a obra maior e mais real de Deus é salvar a humanidade”. Assim, o Verbo é o pedagogo e o pastor: “Ele dá a uns os Mandamentos (quer dizer a Lei) e a outros a filosofia, pois que por dois processos diferentes, conduz os gregos e os bárbaros à perfeição que atingimos pela fé... A filosofia fora dada aos gregos pelo Logos como seu testamento próprio pois que ela era como que um trampolim para atingir a filosofia segundo Cristo.”
             
Para lá da filosofia, “Deus, diz Clemente, cuida de todos os homens, Ele os converte à salvação, uns por meio de preceitos, outros por ameaças, outros ainda por sinais prodigiosos, alguns, enfim, por benevolentes promessas.”
             
Clemente de Alexandria define assim o que ele entende por filosofia: “Por filosofia, não entendo aquela de Platão ou de Epicuro ou ainda de Aristóteles ; tudo o que há de bom em cada uma destas Escolas e que nos ensina a justiça acompanhada de piedade, é este todo que eu chamo de filosofia”.
             
Ele menciona também, ao lado dos filósofos gregos, os sábios da Índia, tais como os brahmanas e até mesmo o Buda que, diz ele, “é venerado em virtude de sua extrema santidade como um deus”, o que equivale a reconhecer às tradições hindus e budistas, junto de Clemente de Alexandria, uma parte de verdade cristã e um lugar na história da salvação. Para Clemente, no primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus, o primeiro versículo se refere às múltiplas dispensações pelas quais o Verbo, seguindo o crescimento e o progresso da humanidade, anuncia e dispensa, desde o início do mundo, Sua manifestação na carne.
             
“O Filho único, mestre de todos os seres criados, formou do alto, desde o início do mundo os homens, e de muitas maneiras e por diversas vezes, Ele os conduz a sua perfeição... A via da Verdade é uma, mas ela é como um fluxo inesgotável do qual desembocam cursos d´água vindos de toda parte.”
             
Todavia, agora, diz ele, “o Logos veio até nós, e nós não devemos mais ir à escola humana alguma, pois que agora Ele nos ensina tudo e pelo Logos, o mundo inteiro tornou-se uma Atenas e uma Grécia.”
             
Clemente se preocupa com a sorte dos judeus e dos pagãos mortos sem conhecer a Cristo. Ele chama a seu sujeito a descida de Cristo na morada dos mortos segundo a primeira Epístola de São Pedro (3, 19 e 4, 6) onde está dito que Jesus “foi pregar mesmo aos espíritos em prisão, que tinham outrora desobedecido” e que “ a boa-nova foi anunciada até aos mortos, a fim de que, julgados na carne, segundo os homens, eles vivam segundo Deus em espírito”.
             
A Igreja Ortodoxa se refere a esta descida libertadora de Cristo na morada dos mortos em seu ofício de funerais.

SANTO IRINEU DE LIÃO
Santo Irineu de Lião esboça uma verdadeira teologia da história da salvação. Deus Pai revelado desde o princípio pelo Filho, numa série de economias ou de visitações, como uma melodia bem regrada na massa humana modelada por Ele: “Desde o princípio, o Filho presente na obra por Ele modelada revela o Pai a todos aqueles a quem o Pai o quer, quando Ele quer e como Ele quer... Eis porque o Filho fez-Se dispensador da graça do Pai para o proveito dos homens para os quais Ele realizou tão grandes economias, mostrando Deus aos homens e apresentando o homem a Deus... pois a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem, é a visão de Deus.”
             
Assim, “existe um só Deus que, em diversas economias, vem ao auxílio da humanidade”. Para Santo Irineu, quatro alianças foram dadas à humanidade: a primeira, antes do dilúvio, no tempo de Adão; a segunda, depois do dilúvio, no tempo de Noé; a terceira é o dom da Lei a Moisés; a quarta enfim reunindo o homem e recapitulando tudo nela é aquela que o Evangelho eleva o homem ao Reino celeste.
             
“Cristo não veio somente para aqueles, diz Santo Irineu, que a partir do Imperador Tibério, creram n´Ele, e o Pai não exerceu Sua Providência a favor somente dos homens que vivem agora mas a favor de todos os homens sem exceção que, desde o princípio, segundo suas capacidades e segundo sua época, creram e amaram a Deus, e que praticaram a bondade e a justiça para com o próximo.”
             
Retomando a idéias da descida de Cristo na morada dos motos, Irineu diz: “Eis porque o Senhor desceu nos lugares inferiores da terra para portar a todos os mortos a boa-nova de Sua vinda que é a remissão dos pecados para aqueles que crêem n´Ele.”
             
Irineu compreende evidentemente a objeção que podemos lhe levantar: mas então, se é assim, o que trouxe o Senhor pela Sua Encarnação à humanidade? E ele responde: “Sabei que Ele trouxe toda novidade aportando em Sua Pessoa anunciada anteriormente. Se, em efeito, a vinda do Rei é anunciada antes pelos Seus servidores os quais enviamos a preparar aqueles que acolherão, quando a lei chega, Seus sujeitos já beneficiaram de Sua vinda, já ouviram Suas palavras e gozaram de Seus dons e receberam d´Ele a liberdade. E assim não é mais necessário pôr-se a questão de saber o que o Rei aportou de novo em relação àqueles que anunciaram a Sua vinda.”


COMO OS TEÓLOGOS ORTODOXOS CONTEMPORÂNEOS SE APROXIMAM DA PROBLEMATICA DO PLURALISMO ORTODOXO?
            
As sementes do Verbo de São Justino, as diversas economias divinas das quais fala São Clemente de Alexandria e Santo Irineu de Lião não passam de uma preparação evangélica à Encarnação do Verbo ou continuam a trabalhar a humanidade até que ela “chegue na plenitude da estatura de Cristo” (Ef. 4, 13), à realização do mistério do Reino quando Deus será tudo em todos nós (I Cor. 15, 28)?
             
É necessário primeiramente reconhecer que os Padres dos três primeiros séculos que citei insistiram sobre a necessidade para o homem de pertencer à Igreja, pois “lá onde está a Igreja, lá está o Espírito de Deus”, diz Santo Irineu de Lião. Orígenes, em suas homilias sobre Josué, diz: “Fora desta casa – quer dizer fora da Igreja – ninguém será salvo. Se alguém sai, então que se torne responsável pela sua própria morte.” Tais propósitos encontram-se na carta de Santo Inácio de Antioquia aos Filipenses. Mas, é necessário remarcar que estes propostos são dirigidos aos cismas e as heresias que punham em causa a fé ortodoxa. Era necessário guardar intacta “a fé transmitida pelos Santos uma vez por todas”. “Se alguém vos anuncia outro Evangelho além daquele que recebestes, diz São Paulo, que ele seja anátema” (Ga. 1,8).
             
Todavia, a luta contra as heresias durante longos séculos endureceu as posições teológicas. A teologia polêmica e a teologia apologética contra os não-cristãos estenderam às religiões não cristãs o axioma “Fora da Igreja, nada de salvação”, que estava originariamente destinado aos cismáticos e aos heréticos.
             
No entanto, Sua Exma. Georges Khodr, Metropolita do Monte-Líbano, menciona em seu estudo O Cristianismo num mundo pluralista, apresentado no Comitê central do Conselho Ecumênico das Igrejas em Addis-Abeba (Etiópia), em 1971, que na Igreja nestoriana, cuja atividade missionária se estendeu na Idade Média até a Índia e à China, encontramos a abordagem cristã mais corajosa do Islão, chegando até a reconhecer um caráter profético a Muhamed sobre a base da análise de certos textos de sua mensagem (Irenikon, 1971 / 2, p. 190-202).

METROPOLITA GEORGES KHODR
Neste mesmo estudo, Sua Exma. Georges Khodr sublinha a questão da presença de Cristo fora da história judeu-cristã. Ele recorda a atitude dos primeiros Padres a respeito da semente do Logos. Ele cita Gregório de Nazianzo que pensava que Platão e Aristóteles tinham recebido um raio do Espírito Santo e que a mão de Deus guia os homens ao verdadeiro Deus através da vida religiosa da humanidade.
             
Sua Exma. Georges pensa que a teologia ocidental tradicional das religiões que consideravam a Igreja institucional como o centro do mundo é como uma expressão da superioridade cultural do Ocidente.
             
Para o Metropolita Georges, a autenticidade da vida espiritual de numerosos não-cristãos levanta a questão da presença neles de Cristo Jesus: “A Igreja, por meio do mistério do qual Ela é o sinal, deve ler todos os outros sinais que o Senhor colocou nos diversos momentos da história. Pouco importa que as religiões se considerem incompatíveis com o Evangelho. Cristo está presente em toda parte em Sua kenosis.”
             
“Toda leitura das religiões, prossegue ele, é uma leitura de Cristo em Sua visitação das escrituras brahmanas, budistas, maometanas... Deus, se Ele quiser, pode suscitar testemunhos àqueles que não viram Sua manifestação gloriosa no rosto do Cristo que os nossos pecados ensangüentou e na túnica sem-costura que rasgamos pelas nossas divisões.”
            
O Metropolita Georges lembra que, para Nicolas Cabasilas, a unidade futura é aquela daqueles que a Igreja batiza e aquela daqueles que o esposo da Igreja tiver batizado. A missão é chamada a identificar os valores crísticos nas outras religiões e a mostrar o amor de Cristo como sua realização. “Trata-se de despertar o Cristo que dorme na noite das religiões.”
             
Noutra conferência, Sua Exma. Georges diz: “Deus só está ligado pelos meios de salvação que Ele próprio instituiu na Igreja... Ele pode Se revelar aos mártires de Seu amor onde eles se encontram. Pode revelar-Se àquele que exerce o culto islâmico, que dá esmolas e realiza a obrigação da peregrinação buscando contemplar o “rosto do Bem-amado”...
             
“A perfeição, a plenitude não está na Igreja enquanto instituição histórica; ela está antes no Senhor que está nela e que fundou a Igreja pelo Verbo, a água, o Espírito e o sangue, para que eles testemunhem de Deus nela. A plenitude é o que a Igreja tornar-se-á, no último dia, aquando da assembléia dos justos de todas as nações e de todas as raças, quando todas as vias estiverem desaparecidas, diante do amor do qual elas não eram símbolo” (Contacts nº 110 [1980], p.108-109).

ARCEBISPO ANASTASIOS DE ALBÂNIA
Sua Beatitude, o Arcebispo Anastasios de Tirana e Albânia -o antigo missionário na África - no curso da Conferência de Baar (19913), organizada pelo Conselho Ecumênico das Igrejas, sobre a significação teológica das religiões não-cristãs, lembrou que o pensamento dos Padres da Igreja desenvolveu-se numa sociedade religiosamente pluralista. Um pensamento ortodoxo a este sujeito, diz ele, pode repousar sobre quatro considerações:
·       A primeira é aquela que já mencionamos, “a semente do Logos” de São Justino, semente que todavia não é idêntica na presença total do Verbo em Sua graça transformante.
·       A segunda consideração parte de uma frase de São Basílio que entende a presença do spermaticos logos não somente em razão e à sabedoria humana, mas à possibilidade que todo homem tem, em virtude desta semente, de ser familiar do bem, à capacidade de cada homem de amar. Isto nos abre a possibilidade de compreender os adeptos de outras religiões, como vivem esta dimensão do amor. Ele recorda, neste sentido, a palavra de São João: “Amados, amemo-nos uns aos outros porque o amor é de Deus e aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus”.
Lá onde faíscas ou expressões de amor se encontram numa pessoa, sociedade ou cultura, diz o Arcebispo Atanasios, Deus está à obra. O amor em suas aplicações imprevistas, em circunstâncias inesperadas, permanece no critério do último julgamento quando o Senhor de amor, o Amor encarnado, virá em Sua glória depois de ter reunido diante d´Ele não somente os cristãos mas todas as nações.
·       A terceira consideração, para o Arcebispo Atanasios, parte do pensamento de São Gregório de Nazianzo, de que todos os seres humanos têm neles próprios uma nostalgia de Deus e um desejo de O encontrar, o pensamento humano tendo uma afinidade com o divino, a imagem de Deus não sendo destruída pelo pecado. Podemos assim compreender as religiões do Oriente (hinduísmo, budismo) os quais, não tendo profetas, buscam a revelação da Sabedoria.
·       Enfim, a quarta consideração se refere a São Máximo o Confessor: “O Verbo de Deus, diz São Máximo, está misteriosamente presente em cada um de Seus Mandamentos”. Exista uma presença de Cristo em Seus Mandamentos. Aquele que recebe um de Seus Mandamentos recebe o Verbo de Deus que ai se encontra presente. Toda pessoa que pratica o amor, a humildade, o perdão o serviço desinteressado, a aceitação do sofrimento, mesmo se ela não conhece o mistério de Cristo, recebe o Cristo – Verbo, e aquele que recebe o Cristo em Seus Mandamentos recebe, segundo São Máximo, o Pai que está n´Ele e o Espírito Santo que está com Ele.

Em seu livro, publicado em 2003, Facing the world, nas edições de Saint-Vladimir de New York, Sua Beatitude desenvolve uma abordagem trinitária do pluralismo religioso.
             
O Arcebispo Atanasios se refere primeiramente aos Efésios 4-6, “um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, para todos e em todos”. Quaisquer que sejam as crenças ao sujeito de Deus, existe um só Deus, Mestre do mundo e da história. Incompreensível e inaproximável em Sua essência, Ele Se revela, e o universo inteiro está repleto de Sua glória.
             
As religiões não são somente o sinal da busca de Deus pelo homem mas o fato de que o homem pode receber, apesar do pecado e o erro, alguns raios da glória divina. Todavia, a iniciativa, em vista da salvação, vem sempre de Deus que não deixa de estar a procura de todos os homens.
             
Sua Beatitude se refere em seguida ao Evangelho de São João: “O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós”. Ele lembra as vistas dos Padres que citei mais alto ao sujeito do Verbo semeador, pedagogo, revelador do Pai. Decerto, a Encarnação é um acontecimento único e radical, diferente das outras manifestações de Deus na história.
Mas na Encarnação, é toda a natureza, tudo o que chamamos de humano que foi assumido e oferecido a Deus e que recebe então a influência do Verbo. “A obra do Verbo antes da Encarnação, depois da Encarnação e da Ressurreição, constitui o coração da experiência litúrgica ortodoxa e funda a nossa esperança escatológia.”
             
Sua Beatitude se refere, enfim, à oração da Igreja Ortodoxa ao Espírito Santo, “presente em toda parte e que enches tudo, Tesouro de bens e Doador da vida”. Por toda parte onde se encontram os frutos do Espírito: amor, bondade, verdade, nós discernimos, segundo São Basílio e São Máximo o Confessor, junto dos fiéis das religiões não-cristãs, os sinais de Sua atividade que se desenvolve para a salvação de todos os homens e a realização do destino da humanidade.

PADRE LEV GILLET
Uma abordagem espiritual das outras religiões é aquela de meu pai espiritual, o Arquimandrita Lev Gillet. O Padre Lev é um dos raros ortodoxos a ter consagrado um livro a uma abordagem cristã do judaísmo contemporâneo - “Communion in the Messiah” (Londres, Lutterworth Press, 1942). No curso de suas numerosas viagens ao Oriente Médio, teve um conhecimento vivo do Islão. Como secretário do Congresso Mundial das Religiões, uma organização que se propõe a instaurar um diálogo entre cristãos e crentes de outras grandes religiões, recenseou, durante 25 anos, milhares de obras de todas as religiões em fichas que permanecem ainda a descobrir. Organizou conferências inter-religiosas e teve contatos com os budistas, muçulmanos, e os bahaïs.
             
O Padre Lev escreve numa de suas cartas: “Junto de todos, eu vejo o Logos. É o Cristo, eu ouso dizer, que faz a unidade de minha vida e de suas vias.” Noutra carta, ele escreve: “Quase todo o meu tempo e toda a minha atenção estão concentrados em Cristo que é latente e que age nas religiões não-cristãs.”
             
“Hostil a todo sincretismo, a tudo quê visa a criação de uma super Igreja, síntese artificial de todas as crenças, ele era sensível ao movimento do Espírito invisivelmente presente em toda parte, ternura difusa, que choca desde as origens do caos do mundo e orienta toda coisa ao Logos, o Cristo total do fim dos tempos” (E. Behr-Siegel). Em seu livro Introduction à la spiritualité orthodoxe (Desclée de Brouwer, 1983), ele escreve “A graça do batismo não está limitada à administração do Sacramento do Batismo. Nosso Senhor concede invisivelmente esta graça as almas de boa vontade que consciente e inconscientemente têm sede da água viva; um pagão ou um ateu pode recebê-la.”
             
Comentando o Evangelho de São João acerca da cura do paralítico na piscina de Bethesda, o Padre Lev considerava que a piscina era o símbolo da Igreja, onde a presença sacramental de Cristo opera infalivelmente a salvação. Mas, dizia ele, Cristo reencontra igualmente os homens livremente, fora da piscina, e os cura.
             
Também em seu livro Jésus. Simples regards sur le Sauveur (Chevetogne, 1959, rééd. Seuil, col. “Livre de vie”, nº 136), ele escreve: “Os hebreus não conheciam outra luz além daquela da coluna de fogo que guiava Israel no deserto. Luz limitada. Luz temporária. Luz de um povo e de uma época. Jesus proclama-Se a luz do mundo. Luz eterna e universal. Ela ilumina todo homem vindo neste mundo. Sê bendito, Senhor, pelo fato de que a Tua Luz opere em todas as almas e que a encontremos, tão refratada que ela esteja, em todas as raças e em todas as crenças.”

VLADIMIR LOSSKY
Em seu Essai sur la theologie mystique de l´Eglise d´Orient (Aubier, 1944, dern. Rééd. Cerf, 2005), Vladimir Lossky deixava abertas e confiava à misericórdia divina as questões dos limites da Igreja e da possibilidade da salvação para aqueles que não conheceram a Cristo no curso desta vida.
Todavia, Olivier Clément, em sua autobiografia espiritual, L´autre soleil (Stock, 1975, rééd. 1986) escreve o que se segue: “A propósito da diversidade das religiões das quais eu falava, Lossky atira minha atenção sobre um texto onde Máximo o Confessor evoca três “encarnações” do Logos, Verbo e Sabedoria de Deus: primeiramente, encarnação cósmica nas essências espirituais das coisas que o sábio recolhe e que ele faz oferenda, e é o melhor das tradições arcaicas e da Índia. Em seguida, a encarnação na lei quando se desenha com a vocação de Abraão depois da aliança, uma história da salvação, é o sentido das religiões do livro, Judaísmo e Islão. E enfim, o Cristo, que está também na origem, recapitula, restaura e planifica o sentido da história e aquele do universo.”
  
OLIVIER CLÉMENT
Em seu livro Sources (Stock, 1982, rééd. 2008), Olivier Clément, na página 35, cita o texto de Máximo o Confessor (Antiqua, PG. 91: 1285-1288): “O Verbo Se concentra e toma corpo. Isto pode se entender primeiramente, pelo amor de nós, Ele dignou-Se pela Sua vinda a carne de Se concentrar e tomar corpo. Pode-se entender também pelo fato do amor por nós, Ele Se oculta misteriosamente nas essências espirituais dos seres criados, como em tantas letras, presente em cada uma, totalmente e com toda a Sua plenitude. Pode-se entender, enfim, que por amor por nós, que somos lentos a compreender, Ele dignou-Se exprimir-Se nas letras, nas sílabas e nos sons das Escrituras para nos arrastar e nos unir em espírito.”
             
Olivier Clément adiciona: “A incorporação pessoal do Verbo acaba por dar um sentido as Sua incorporações cósmica e escriturária, livrando a primeira (nas religiões da Sabedoria) da tentação de absorver o “Si” num divino impessoal, e livrando a segunda (nas religiões do Livro), da tentação de separar, sem comunhão possível, Deus e o homem.”

OS ORTODOXOS DE CANBERRA
No relatório preparado pelos ortodoxos em vista da assembléia de Camberra do Conselho Ecumênico (1991), acerca do tema “Vem, Espírito e renova a criação”, os ortodoxos puseram o acento sobre o papel do Espírito Santo na criação e o mistério da salvação:
             
“Ainda que o Espírito constitua a Igreja e opere em sua vida, o Espírito de Deus não está contido ou limitado por ela. O Espírito está presente em toda parte, Ele sopra onde quer. O caráter misterioso do Espírito Santo nos ajuda constantemente a transcender todas as perspectivas estreitas relativamente à Sua atividade. O Espírito está à obra em toda a criação ainda que todos não estejam cientes e Ele incumbe aos fiéis de reconhecerem a presença do Espírito Santo lá onde os frutos são visíveis.”
             
Todavia, em Canberra, quando o do tema do Espírito Santo foi apresentado pela teóloga coreana protestante, reconhecendo, nos movimentos de liberação, nos espíritos coreanos dos antepassados, da terra e das águas, a presença do Espírito Santo, tal apresentação provocou uma onda de protestos entre os representantes da Igreja Ortodoxa. Eles encontraram ai a aparência dum sincretismo religioso. O comunicado que eles publicaram clarifica a posição ortodoxa. Eis os extratos desta declaração:
             
“Os ortodoxos estão alarmados por terem ouvido certas apresentações sobre o tema da assembléia “Vem, Espírito, e renova a criação”. Os ortodoxos observam que certas pessoas parecem afirmar a presença do Espírito Santo, sem discernimento, em alguns movimentos e desenvolvimentos humanos. Os ortodoxos desejavam insistir sobre o fato de que o pecado e o erro existem em todo empreender humano.
             
“Nós devemos por em guarda contra uma tendência a substituir o espírito deste mundo ou de outros espíritos ao Espírito Santo, Que procede do Pai e repousa no Filho. Nossa Tradição é rica em respeito pelos cultos locais e nacionais mas nos é impossível invocar os espíritos da terra, do ar, da água e das criaturas marítimas. A pneumatologia é inseparável da cristologia e da doutrina da Santíssima Trindade confessada pela Igreja sobre a base da revelação divina.”

PARA CONCLUIR
Eu gostaria de resumir meu exposto recordando o que disse Clemente de Alexandria: “A maior e mais real obra de Deus é de salvar a humanidade.” Cristo Jesus não é o chefe de uma organização, de um partido que reúne aqueles que crêem n´Ele, mas o Verbo, a Sabedoria, o Poder de Deus que, segundo Santo Irineu, em diversas economias, vem ao socorro da humanidade em todos os tempos. Ele é também o novo Adão, arquétipo do primeiro Adão feito à sua imagem, do qual Ele realiza o destino unindo-o a Deus.
             
A Encarnação do Verbo divino, e um momento preciso da história e um lugar preciso do universo, não limita de maneira alguma a Sua divindade, ela a manifesta. A Encarnação não põe fim as visitações divinas que a precederam e a prepararam, ou que a seguirão. Ela as ilumina, recapitula, cumpre e conduz ao seu objetivo final: o Reino onde Deus será tudo em todos. A aliança nova e eterna no sangue de Jesus não abole a aliança cósmica com Adão e Noé; ela a confirma.
             
As promessas da aliança com Abraão e Moisés não tornam-se obsoletas e caducas em Cristo: Ele as realiza. Assim, São Paulo, em sua Primeira Epístola a Timóteo, pode dizer: “O Deus Vivo e o Salvador de todos os homens, em particular dos crentes” (I Tm. 4, 10). Ele não é então somente o Salvador daqueles que crêem n´Ele e que recebem a extraordinária riqueza de Sua graça, mas o Salvador de todos os homens de todos os tempos que não deixa misteriosamente de encontrar e iluminar em Seu Amor.
             
“No presente da história, diz Sua Exma. Georges do Monte-Líbano, estamos ainda sobre a via do Reino. A Igreja que é o guia e o testemunho se esforça em ser transparente à luz divina, para que todos os homens vivam desta luz. Mas não temos na Escritura Santa uma afirmação explícita de que a humanidade, antes do último dia, dará a esta luz o Nome de Cristo Jesus. Nossa vocação, a todos nós, é de nos purificar para tornarmos servidores do ágape, de Seu Amor.”
             
Isto significa, diz Sua Beatitude, nosso Patriarca Ignácio IV de Antioquia, “que no rosto do outro, quem quer que ele seja, na vibração de sua voz, na luz de seus olhos, descobriremos, amaremos Aquele que nos criou a todos.”
             
Na difícil história em que atravessamos, segundo as palavras de Sua Beatitude em sua conferência na Universidade de Atenas, em 1991, “o poder de vida, de unidade e de santidade que recepta o Corpo de Cristo deve ser sem cessar manifestado pelos cristãos e como que reinventado no Espírito Santo e a liberdade, por um esforço sempre renovado de penitência e de criatividade, a fim de poder, as religiões da única transcendência (Judaísmo e Islão) dizer à Encarnação: as religiões da fusão no impessoal (Hinduísmo e Budismo) dizer a Unitrindade e as energias divinas; aos humanismos mais ou menos ateístas, lembrar que o homem não seria nada se ele não fosse, para lá de seus condicionamentos, um enigma ou talvez até um ícone. A todos e a nós mesmos, primeiramente, lembremos que o Cristianismo anuncia o Verbo que Se fez carne para que a carne torne-se Verbo.”

COMENTÁRIOS, QUESTÕES E DISCUSSÃO
- Este exposto não somente nos estimula a testemunhar de nossa fé, a vivê-la em Cristo e na Igreja, como também nos incita à humildade nas relações que devemos ter com os outros, a fim de que seja em verdade o próprio Cristo que diga por nós mesmos, por meio de nossa vida de crente. Esta responsabilidade imensa, vo-la exprimiste magnificamente. No diálogo e no encontro com as outras religiões, temos a responsabilidade de portar o Cristo, de ser a encarnação do Cristo no meio daqueles que são chamados a descobri-Lo e que só poderão fazê-lo se nós O portarmos e vivermo-Lo.

Albert Laham: Se, em efeito, reconhecemos o Cristo em Sua dimensão total. Se, como diz o Apóstolo São Paulo, com todos os Santos (pois que não podemos fazer sozinhos), chegarmos a conhecer a lonjura e a largura, a altura e a profundidade do mistério de Cristo, que ultrapassa toda inteligência. Ser cristão, é tentar entrar neste mistério pela comunhão pessoal com o Senhor Jesus Cristo, graças ao Espírito Santo e aos Sacramentos que nos são dados na Igreja, e graças à leitura da Palavra. Como remarcastes, não digo nada de mim mesmo e não quero dizer nada de mim mesmo. Eu repito a Palavra e aqueles que a interpretaram.

- O que me perturba muito, na atitude da Igreja Ortodoxa, são as grandes contradições ao sujeito do tema abordado hoje. Eu leio simplesmente uma frase de nosso Patriarca Bartolomeu extraída de um texto publicado em sua mensagem de Natal, há dois anos atrás – penso eu: “Nós, filhos bem-amados, nós cremos e sabemos perfeitamente que não existe salvação fora de Cristo, nome algum pode nos salvar além daquele de Jesus Cristo.” E mais, o próprio Cristo diz d´Ele mesmo: “Ninguém vai ao Pai, senão por Mim.” E também: “Aquele que não esta Comigo é contra Mim.” A meu ver, está em contradição com o que acabamos de ouvir. Vedes? Notoriamente, o texto de nosso Patriarca, que é muito claro: se não somos cristãos... Ele diz que sabemos perfeitamente que não há salvação fora de Cristo.

Sim O Cristo que o Patriarca fala é o Cristo da Fé Ortodoxa, quer dizer, o Verbo de Deus. Quer dizer que não há salvação fora do Verbo. Todas as vias passam por Ele e o que dizemos, é que necessário é saber reconhecer Sua ação fora da Igreja. A Igreja é o Sacramento da salvação que opera no mundo, mas ele opera bem além. Tudo o que li junto dos Padres e tudo o que li no Evangelho, eu citei.

Eu leio a Escritura regularmente. Até então tinha lido a parábola do semeador, como reportada em São Lucas e nos sinóticos, e todos nós compreendemos que o semeador semeia a palavra no coração dos homens. Existem aqueles que a aceitam e aqueles que a rejeitam...

Todavia, certo dia, ao lê-la – pois que encontramos sempre novidades ao ler a Escritura – um belo dia, ao ler o capítulo 13 de São Mateus, fui tocado pela parábola do joio que é jogado no campo do semeador, onde é dito que o campo onde a palavra é jogada, é o mundo. Não é mais o coração, antes o mundo. Então Cristo, sim, Ele é o único por Quem somos salvos, mas é o Cristo Verbo eterno de Quem vêm toda luz. Ele concentra n´Ele toda a obra de Deus para o homem e tudo o que o homem se põe a fazer em Nome de Deus ou mesmo em nome da humanidade. É isto que queria dizer quando me referi ao fim: Cristo não é simplesmente o chefe de uma organização. Ele é o Verbo eterno do Pai.

Se colocamos isto na cabeça compreendemos que jamais houve e que nunca haverá vida alguma, nem biológica, nem espiritual, nem religiosa de qualquer valor que ela seja no mundo que não venha d´Ele pelo Espírito Santo. Se aceitamos isto, saberíamos que é n´Ele somente que somos salvos e que não existe outro Nome que salva. Somente, alguns O nomeiam e O conhecem, outros não O conhecem. Eles conhecem alguma coisa d´Ele, dos mandamentos, das revelações, das luzes, mas não O conhecem na totalidade. É um pouco disto que a conferência quis dizer, a partir da Escritura.

Tomemos o Antigo Testamento. Aprendemos que a história da salvação começa com Abraão e a promessa feita a Abraão. Durante o período da quaresma, lemos a Gênesis e, ao ler a Gênesis, minha atenção foi atirada pelo fato de que existem duas formulações de uma das promessas feitas a Abraão. Uma vez, ele diz: “Tu serás o pai de uma grande nação”, mas outra vez, lhe diz: “Tu serás o pai de uma multidão de nações”. Logo, a partir daquilo que lá é dito, é como que se a salvação, tudo o que era antes de Abraão, não era nada, simplesmente a legenda do dilúvio, e que tudo começava com Abraão para terminar com Jesus Cristo na Igreja.

No entanto, Deus não para nunca: o Reino ainda não terminou, e São Paulo diz que é somente quando Ele tiver colocado todos os Seus inimigos sob os Seus pés – e o último inimigo será a morte – é somente então que remeterá o Reino ao Seu Pai a fim de que Deus seja tudo em todos. Eis então o que o Filho, representando a humanidade, o novo Adão, se submeterá, Ele-próprio ao Pai, em nome da humanidade que Ele salvou e reconduziu ao Pai.

Se quero explicar a fé cristã, refiro-me a esta parábola do Bom Pastor: ele perdeu a ovelha e vai buscá-la, a põe sobre Seus ombros e volta com ela, e lá existe alegria no céu. E então! A ovelha é o homem e o Senhor vem lá onde o homem havia caído, quer dizer na morte. Ele vai na morte para tomar o homem que morreu a fim de o levar ao céu. O homem, todo homem.

Então, existem aqueles que aceitam e aqueles que rejeitam. Havemos visto um pouco do que nos diz São Paulo na Epístola aos Romanos: existem judeus e pagãos que serão condenados por não terem praticado a justiça; da mesma maneira, no julgamento final, haverão cristãos que serão rejeitados por não terem praticado o amor. Ele não lhes diz: “Recitastes corretamente o Símbolo da Fé de Nicéia (Credo)?” mas: “Estava doente, viestes me ajudar? Estava nu, viestes me vestir?” Existe o Cristo e existe a aceitação dos Mandamentos de Cristo, e a vida segundo Cristo. Mas esta vida segundo Cristo implica, como disse nosso Patriarca no texto que citei, que nós reconheçamos em todo homem a imagem de Cristo e que o tratemos desta maneira.

- Colocar-vos-ei duas questões, uma menor e uma talvez maior. A menor primeiramente: o ser humano tal como a Ortodoxia o considera, o ser humano, em geral, pertence a Cristo e, em particular, os cristãos pertencem à Igreja, não é? Em seguida, a segunda questão: se o ser humano em geral criado pelo Verbo, a quem pertence depois da morte? Pois que existe o cristão que morre em sua fé e em seguida aqueles que pertencem as outras religiões, que têm uma outra fé, mas que, segundo a Ortodoxia, pertencem todos ao Verbo, mas o Verbo que, todavia, não lhe foi revelado.

A Revelação, como disse, é múltipla. Ela é total e plena em Jesus de Nazaré. Esta Revelação é total, perpetuada na Igreja e seus Sacramentos, que nos dão a graça direta de poder passar da morte à vida já nesta vida – só é o Cristo: “Aquele que crê em Mim, passou da morte à vida.” Agora, e não amanhã. Os outros homens, que recebem um certo raio da luz divina, do Verbo que é a luz que ilumina todo homem neste mundo, serão julgados sobre a base da luz que conheceram.

É o que nos diz o Apóstolos Paulo em sua Epístola aos Romanos, no primeiro capítulo, que nos mostra uma imagem muito sombria da humanidade pagã. Ledes o primeiro capítulo, ele é muito sombrio. Mas sutilmente, no capítulo dois, “não existe parcialidade em Deus, Deus não faz acepção de pessoas” (Rm. 2, 11) e ele nos revela este mistério onde somos julgados segundo o que fazemos, segundo ao que fomos fiéis à luz do que recebemos e na medida onde esta fidelidade foi exprimida – por atos, por palavras, por gestos, pela piedade, pelo amor, pelo perdão mútuo sobretudo. É uma unidade.

O Cristianismo é uma unidade: vós aceitais o Senhor, Ele entra em toda a vossa vida, em todos os recantos de vossa vida e vós O aceitais em toda a sua plenitude e não somente na dimensão de um único grupo, de um único partido ou de uma única Igreja.


- Gostaria de saber a quem se dirige, segundo a vossa pessoa, a palavra que diz: “Bem-aventurados os benditos de Meu Pai.”

“Bem-aventurados os benditos de Meu Pai.” E então, está no capítulo 25 do Evangelho de São Mateus: “Vinde, os benditos de Meu Pai, tomai parte no Reino que vos foi preparado desde o começo do mundo”. E Ele diz isto àqueles a quem Ele diz: “Eu estava nu e vós não me vestistes”, “Tive fome e não Me destes de comer”, “Tive sede e não Me destes de beber”, etc.
Sabe, talvez poderíamos fazer uma distinção ao falar da fé. Vimos que a fé de Abel, muito antes de Abraão, a fé de Enoc, a fé de Melquisedec, de Noé, etc, a fé da Cananéia e do centurião pagão lhes salvaram e, por Cristo, eles foram curados em virtude de sua fé. Podemos dizer que a fé, sob esta relação, é este abandono total em Deus pela qual entregais a Ele toda vossa alma e vosso coração. “Meu filho, dá-Me o teu coração.”

E esta fé torna-se mais forte, mais sólida, se ela vem da crença correta, pela ortodoxia... A Ortopraxia e a Ortodoxia completam a fé e vos permitem de ir até o final deste dom de vós mesmos a Deus, segundo o Evangelho deste dia (Lc. 18, 18-27). A doutrina, a fé ortodoxa, não são conhecimentos que repetimos, antes a fonte de uma vida que praticamos, de uma fé pela qual nos abandonamos. É o sentido da palavra isl ām no Islão.

- Destes o exemplo de um certo número de Padres da Igreja, mas sobretudo da Igreja grega. Será que os Padres latinos tais como Santo Ambrósio ou Santo Agostinho também se interessaram neste assunto?

Eu não procurei em toda parte, mas sei que Santo Agostinho, mesmo apesar de sua teologia, considerou seguidamente que existiam pessoas que estavam predestinadas à salvação e outras que não estavam. Santo Agostinho fala efetivamente também da presença universal do Verbo. Ele fala disto. Tenho comigo textos, mas não os citei...

Encontrei que Orígenes, ainda que assaz crítico do ponto de vista da filosofia, de uma parte, encontrava que ela era empregada para explicar a fé cristã, mas reconhecia também as sementes do Verbo fora do Cristianismo. Sabia que Orígenes foi mais longe! Para Orígenes, todos os homens acabariam por serem salvos. Depois da morte, passariam por certos estados espirituais de purificação e acabariam por serem salvos. Sabia que a Igreja condenou esta tese com o nome de “apocatastase”, como denominamos no V século.

Mas as orações da Igreja são para todos os homens. No capítulo 2 da Primeira Epístola a Timóteo, São Paulo pede que se façam orações por todos os homens por que Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da Verdade. São João Clímaco tem a seguinte frase: “Que todos alcancem o desprezo completo é impossível, mas que todos sejam salvos, não é impossível.”

E Santo Isaac o Sírio orava até pelos demônios, ele orava pela salvação dos demônios, pela salvação dos inimigos de Cristo, pelas serpentes, e eu creio ter lido em Dostoïevski que perguntavam por que razão certa mulher acendia duas velas diante do ícone de São Jorge. Ela responde: “Uma para a salvação dos homens pelas orações de São Jorge e a outra é pela salvação do dragão.”

 - Penso eu que os teólogos contemporâneos que citou são pessoas que vêm de um meio onde são confrontados com o pluralismo religioso. Todavia, a Igreja Ortodoxa nos países como a Rússia, a Romênia, a Sérvia, a Grécia - tenho a impressão - ainda está bem longe desta visão das coisas, pois que nestes países ela ainda está ligada ao nacionalismo.

A fé da Igreja Ortodoxa é uma. Ela está na Escritura Santa e nos Santos Padres. Nós somos todos chamados, como nos diz o Patriarca de Antioquia, a fazer com que os tesouros de santidade e de unidade que existem nos corpos de Cristo estejam constantemente reinventados na criatividade, pela penitência, primeiramente, pela conversão, nossa própria conversão, e pelo amor. Mas, eu diria que a maioria dos povos ortodoxos viveu em sociedades pluralistas.

Junto de nós, no Patriarcado de Antioquia, no Oriente-Médio, houve primeiramente o período de perseguição onde éramos confrontados por vezes aos ataques dos judeus e os ataques dos pagãos, em seguida, durante os três-quatro primeiros séculos cristãos que seguiram, os IV,V,VI,VII séculos, os imperadores perseguiram os ortodoxos quando o poder optava pela heresia; seguidamente, vivemos no meio do Islão. Isto faz 1400 anos que vivemos no meio do Islão. Não é nada fácil. Vós os tendes há 20, 40 anos. Nós, nós vivemos com o Islão há 1400 anos...

A Igreja Russa teve no mínimo 60 milhões de muçulmanos com os quais ela trata; existe na Rússia uma Conferência mais ou menos permanente das religiões tradicionais onde os budistas, os muçulmanos e os hinduístas sentam com os representantes da Igreja Ortodoxa.

Eu gostaria de vos lembrar também uma coisa. A primeira conferência panortodoxa pré-conciliar [em 1976] declarou o seguinte: “O voto da Igreja Ortodoxa é de colaborar ao entendimento entre as diversas religiões do mundo a fim de erradicar o fanatismo de todos os lados e de chegar a reconciliação dos povos e à salvaguarda da paz e da liberdade no mundo – ao serviço da humanidade, sem distinção de raça ou de religião.” Eu não citei este texto porque ele não fala do aspecto teológico da questão, mas do aspecto prático.

Os sérvios, os gregos, todos os Bálcãs confrontaram o Islão. Durante quantos anos? Do XI-XII século ao XIX século. A Igreja não calcedoniana da Etiópia confrontou o Islão e a Igreja Ortodoxa não calcedoniana da Índia confrontou o Hinduísmo. Ela está lá desde o tempo de São Tomé e continua a pregar o Cristo neste contexto.

Sabia que numa de minhas leituras, aquela de um teólogo grego dos Estados Unidos, o Padre Emanuel Clapsis...ele diz o seguinte: os cristãos, a missão cristã não tem a aportar Deus as outras culturas porque Ele já os precedeu. Ele já está lá. Vós deveis simplesmente reconhecer e despertar neles o que é de Deus. É apaixonante querer fazer esta busca, não na luz do nacionalismo ou do interesse político, mas à luz da fé cristã.

 - A propósito da Palavra, parece-me importante precisar que todas as dificuldades repousam efetivamente sobre aquela que consiste em situar um texto em seu contexto, em sua época, e que o grosso trabalho é efetivamente o de dar à palavra o verdadeiro sentido que ela tem, tal como se aplica à nossa inteligência atual, ao nosso mundo.

A Palavra é a mesma. Ela fala a cada um em sua vida, em seu contexto, em seu meio. Ela fala à cada Igreja, à cada paróquia e à cada entidade eclesiástica em qualquer período que seja, no contexto onde elas se encontram, a fim de que possam exprimi-la em seu próprio contexto.

Existem duas maneiras de abordar a Palavra e de considerar a abordagem histórica e crítica da Escritura Santa que prevaleceu durante uma centena de anos, onde se tratava questões hoje clarificadas, como a autenticidade das Escrituras, sua historicidade, etc. A primeira maneira consiste em dizer: bom, o mundo hoje quer isto, vamos encontrar na Escritura o que é conforme ao que o mundo busca. A outra abordagem, ortodoxa, é de se demandar: o que diz a Escritura acerca do problema ao qual eu enfrento hoje? Será que existe uma mensagem na Escritura? Se não há mensagem nítida, o que teria feito Jesus, o que Ele teria dito nesta situação em que nos encontramos? Certamente, não teria lançado o anátema sobre o universo inteiro, dizendo: Tô indo embora!

Não sei se alguém dentre vós leu os Irmãos Karamazov de Dostoïevski e se leram a lenda do Grande Inquisidor. Cristo retorna à Sevilha durante o período da Grande Inquisição. Ele passeia pelas ruas de Sevilha para pregar o Seu Evangelho e o Grande Inquisidor fá-Lo prender e lançar na prisão. Ele vem Lhe ver e Lhe diz: “Mas o quê vens fazer? Nós, nós temos o trabalho de levar as pessoas até Ti. Compreendemos as pessoas melhor do que Ti. Não quisestes mudar as pedras em pão, mas as pessoas tem necessidade de pão, então no-las damos pão a fim de conduzi-las a Ti. Recusaste lançar-Se do cume do Templo para manifestar que Tu és o Filho de Deus, mas nós Tas conduzimos pela magnificência das manifestações e dos milagres que lhes propomos. E Tu recusas os reinos, quando o Diabo tos propôs. Tu disseste: “Só adorarei um único Deus”.E então! Nós aceitamos a realeza e o poder temporal a fim de Te conduzir o mundo. Logo, o que vens fazer? Nós fazemos as coisas melhor do que Ti.”

Um outro exemplo: “Que a Tua vontade seja feita assim na terra como no céu.” Sabeis como Bossuet interpretava esta frase? Ele considerava que se existe um céu, um soberano que é Deus e que é adorado e obedecido por todos os Anjos, é necessário que haja sobre a terra, um soberano absoluto ao qual todos os sujeitos devam obedecer. Assim, vede, não podemos interpretar as Escrituras a partir do que o contexto demanda, mas é necessário interpretá-la a partir do que ela quer dizer no contexto no qual vivemos. E o Espírito Santo está lá para nos esclarecer a este sujeito.

Comentários