MISTERIO PASCAL
DESEILLE Arquimandrita Placide
AS VÉSPERAS DO SÁBADO
SANTO / A ANTIGA VIGÍLIA PASCAL
A composição propriamente eclesial neste ofício é ainda pouco
desenvolvida, enquanto que as leituras bíblicas são numerosas, caudalosas e
significativas. Tal é o caráter dos ofícios mais antigos, enquanto que,
naqueles do século VIII, a meditação propriamente eclesial, síntese da época
patrística, toma o primeiro lugar.
A antiga vigília começa entretanto por uma bela composição, no estilo
sírio-helênico da época justiniana, as Lamentações do inferno. Aí se exprime
com toda sua força a concepção oriental da salvação. É um verdadeiro ícone
poético da Anastasis como descida vitoriosa do Cristo ao reino infernal.
Existem, com efeito, duas representações iconográficas, e duas somente, do
mistério pascal: a Descida aos infernos e o Sepulcro vazio. A metamorfose mesma
da Ressurreição escapa a qualquer representação.
“Neste dia, o inferno lamenta-se e grita: teria valido mais para mim não
acolher o filho de Maria, pois, penetrando em meus domínios, ele pôs fim ao meu
poder, ele quebrou minhas portas de ferro, e aqueles a quem eu detinha desde
tão longo tempo, sendo Deus, ele os ressuscitou.”
“Glória, Senhor, a Tua
cruz e a Tua Ressurreição.”
“Neste dia, o inferno lamenta-se e grita: Meu poder está destruído. Eu
recebi um morto como um qualquer dentre os mortos, mas não o pude deter de modo
algum e eu vou ser despojado por ele das almas de quem era o rei. Eu que desde
longo tempo possuía os mortos, eis que ele os desperta a todos.”
“Glória, Senhor, a Tua
cruz e a Tua Ressurreição.”
“Neste dia, o inferno lamenta-se e grita: Meu poder está aniquilado, o
Pastor foi posto na cruz e Adão levantou-se; eu estou despojado daqueles sobre
quem eu reinava, eu devo entregar todos aqueles que engoli quando era forte. O
crucificado esvaziou todos os túmulos. O poderio da morte está sem forças.”
“Glória, Senhor, a Tua
cruz e a Tua Ressurreição! “
O essencial, porém, dessa vigília primitiva, é constituído por quinze
leituras bíblicas, interrompidas pelo canto das cantigas escriturais as mais
antigamente empregadas na liturgia cristã. Essas leituras, frequentemente bem
longas, agrupam-se em três tipos principais, ou antes, em dois tipos
fundamentais e um tipo secundário.
RESSURREIÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO
O tipo secundário — duas leituras em quinze, a oitava e a décima-segunda
— relembra dois casos de ressurreição no Antigo Testamento. E essas
ressurreições intervém a cada vez no contexto de uma vida renovada,
intensificada e salva. De um lado, é Elias multiplicando a farinha e o óleo
para a viúva de Sarepta e seus filhos, no tempo da grande seca, depois
ressuscitando o filho da viúva (3Reis 17:7-24). De outro, é Eliseu concedendo
miraculosamente à Sunamita ter um filho, depois ressuscitando-o após a doença e
a morte súbitas (4Reis 4:8-27). Esses textos “ressurrecionais” são figuras do
Cristo vindo renovar a vida, dar-se a si mesmo como alimento e vencer a morte
por uma ressurreição que engloba toda a humanidade. Não é só o número três —
Eliseu estende-se três vezes em cima da criança — que evoca o triduum pascal. O
Deus vivo é o Deus que ressuscita.
As Grandes Obras de Deus e Sua “Tipologia.”
Dos dois tipos principais, um concerne às grandes obras de Deus que cria
e liberta, representações da Páscoa do Cristo que recapitula-as e as cumpre.
Seis leituras correspondem a esse tipo.
Primeira leitura: Gênesis l:1-13.
É o relato dos três primeiros dias, isto é, a criação do universo. Assim
é evidenciada a implicação cósmica da Ressurreição que, segundo os Padres, foi
uma verdadeira recriação. “Toda a vida do universo, toda a vida da humanidade
já é diferente desde a vinda do Cristo, esta constitui uma nova criação. . . se
nós não o vemos com nossos olhos terrestres, isto provém da limitação das
nossas faculdades” (N. Berdiaeff, Esprit et Liberté, Paris, 1932, p. 195).
Terceira leitura: Êxodo 12:1-11. 0 episódio do cordeiro pascal.
O emprego “tipológico” do Êxodo aparece no Antigo Testamento mesmo, onde
os profetas anunciam um Êxodo escatológico. Além do mais, ele constitui uma das
estruturas do Novo Testamento, depois do pensamento patrístico. São Mateus
multiplica as alusões ao Êxodo. Mais precisamente, o Evangelho de João, que é
uma espécie de catequese pascal, quer mostrar aos batizados que os mistérios
recebidos na noite de Páscoa atualizam os prodígios do Êxodo definitivo. O
Cristo é o cordeiro pascal cujo sangue apaga os pecados do mundo (João l:29) e
os soldados, depois da crucificação, não lhe quebraram as pernas como se
cumprissem sem saber a prescrição ritual concernente ao cordeiro pascal (João
19:36). Pedro evoca nossa liberação “por um sangue precioso, aquele do cordeiro
sem defeito e sem mácula, o Cristo, que foi designado desde antes da criação do
mundo. . ” (I Ped. 1:19-20), o que evoca “o cordeiro de Deus imolado antes da
fundação do mundo” de que nos fala o Apocalipse (5:12). Pois a própria criação
implica como que uma “retração” e um risco de Deus, ela está à sombra da Cruz e
a Páscoa é o centro onde se recapitula e se cumpre toda a história.
Quarta leitura: o livro de Jonas por inteiro.
É a representação — explicitada também na vigília atual — da morte, da
descida aos infernos e da ressurreição do Cristo: “Ó Cristo... ao terceiro dia,
como Jonas da baleia, Tu te levantaste do túmulo.” Para os Padres e, primeiro,
para Santo Irineu, o “monstro” que engole Jonas simboliza nossa condição
decaída, infernal. Além do que, o próprio Jesus, recusando-se a convencer os
Fariseus com um milagre, exclamou: “Geração perversa e adúltera! Ela reclama um
sinal e, como sinal, só lhe será dado aquele do profeta Jonas. Com efeito, do
mesmo modo que Jonas ficou no ventre do monstro marinho durante três dias e
três noites, de igual modo o Filho do Homem ficará sob a terra durante três
dias e três noites. ..” (Mat. 12:39-40).
Quinta leitura: Josué 5:10-15.
A tipologia de Josué, enunciada pela Epístola aos Hebreus (4:8-9), se
desenvolve através de todo período patrístico. A passagem lida aqui, mostra
Josué celebrando pela primeira vez a Páscoa na terra prometida onde ele acaba
de introduzir os hebreus. Depois é a teofania “do chefe dos exércitos do
Senhor” que aparece a Josué e lhe revela: “O lugar onde tu pisas é santo.”
Josué é Jesus (o nome é o mesmo). A terra prometida é o Reino, ou antes, a
terra transfigurada, o paraíso. A Páscoa é a eucaristia. A teofania, a figura
da Ressurreição, presença secreta da Parusia. É assim que os Padres liam a
Bíblia, no mistério do Nome de Iaveh — que significa “Deus salva.”
Sexta leitura: Êxodo 13:20--15:9
Nós encontramos aqui a tipologia do Êxodo, com a travessia do Mar
Vermelho. No simbolismo patrístico, essa travessia representa a passagem
vitoriosa do Deus-Homem e de seu povo através das águas da morte e a derrota
das forças da servidão simbolizadas pelos Egípcios. Também por aí, como já o
assinala a Primeira Epístola aos Coríntios (10:1-13), a travessia do Mar
Vermelho é uma representação do batismo que nos faz participar na morte e na
ressurreição do Cristo. Essas duas leituras, com efeito, constituem a
preparação última dos catecúmenos que, no Oriente e em todo mundo cristão,
recebiam o batismo na vigília pascal.
No final dessa leitura ecoa, cantado pelo coro, o cântico entoado por
Moisés e todas as crianças de Israel depois da travessia do Mar Vermelho. Esse
cântico passa um tom de júbilo escatológico, captado muito bem pelo Apocalipse,
que profetiza a história do novo Israel por meio de imagens e episódios
emprestados à história do antigo Israel. “E eu vi também como que um mar de
vidro mesclado de fogo e aqueles que triunfaram da Besta, de sua imagem e do
número de seu nome, de pé junto a este mar de vidro. Acompanhando-se de harpas
de Deus, eles cantam o cântico de Moisés, o servo de Deus, e o cântico do
Cordeiro” (Apo. 15:-8).
Décima leitura: Gênesis 22:1-18.
Relato do sacrifício de Isaac, cujo sentido figurado é dado pela
Epístola aos Hebreus (11:17-19): “É pela fé que Abraão, colocado à prova,
ofereceu Isaac em sacrifício. Assim, aquele que recebeu as promessas e a quem
foi dito: É de Isaac que nasce tua posteridade, ofereceu este filho único,
con-siderando Deus poderoso o bastante para ressuscitar os mortos; também
recobrou-o, figuradamente.” O sacrifício que Abraão consuma e que abole as
promessas, profetiza a Paixão do Cristo; e a criança recuperada representa a
ressurreição. A Epístola aos hebreus doura a tragédia atribuindo a Abraão uma
esperança que o Gênesis não menciona. A tipologia é, aí, facilitada. Mas é
válido se reportar ao próprio relato, tal como o faz ressoar esta leitura.
Abraão diz a Isaac que lhe interroga enquanto eles sobem ao Moriá: “Deus
proverá o cordeiro para o holocausto, meu filho.” E quando Deus, no último
instante, substitui a vítima humana por um carneiro, compreende-se que ele
prepara o Cordeiro divino, o Cristo, cada vez que o homem avança na confiança e
na obediência, acima de toda lógica. Como não daria Ele Seu próprio Filho, uma
vez que o homem estava pronto a Lhe dar o seu? Para os Padres, o carneiro é o
“tipo” do Cristo crucificado. O arbusto no qual se engancham os chifres do
carneiro evoca a coroa de espinhos e, para Clemente de Alexandria, trata-se da
sarça ardente. Se nós nos lembrarmos que, para São Cirilo de Jerusalém (PG 33,
796A), Jesus coroado dessa forma assume os espinhos em que se ex-prime a
“maldição” da terra (Gên. 3:18), é todo o destino do cosmos que se encontra
sugerido, transfi-gurado através mesmo da sua mais dolorosa exterioridade e
toda a dor dos homens.
Profecias Messiânicas.
O outro importante tipo de texto que agrupa também seis leituras, é o
das profecias messiânicas. Com quase apenas uma excessão, elas constituem a
segunda metade deste conjunto, seguindo o próprio ritmo da Bíblia. É o Novo
Testamento em si, donde desnecessário insistir, os textos referem-se ao Cristo.
Segunda leitura: Isaías 60:1-16.
Aqui, a plenitude escatológica — secretamente realizada pela
Ressurreição que desde então será na história como que o fermento do Reino —
aparece como uma assunção, na nova Jerusalém, de toda a glória, de toda a
criatividade das culturas e das “nações: “Tu sugarás o leite das nações. . . e
tu saberás que eu sou o Senhor, o teu Salvador. . .” A leitura começa com uma
exclamação jubilosa: “Resplandece, resplandece, Jerusalém, pois a tua luz
fulgura e a Glória do Senhor se elevou sobre ti.” Esta exclamação será retomada
nas matinas pascais e durante todo o tempo pascal, até à Ascenção, para louvar
ao mesmo tempo a Igreja e aquela que a representa e constitui, como o centro da
comunhão dos santos, a Mãe de Deus: “Resplandece, resplandece, ó nova
Jerusalém, pois a Glória do Senhor brilhou sobre ti! Dança de alegria e
rejubila o Sião! E Tu, Mãe de Deus Toda Pura, sê exaltada na Ressurreição
d'Aquele a quem deste a luz.”
Sétima leitura: Sofonias 3:8-15.
É o julgamento dos povos e sua condenação: “eu mudarei em cada povo a
língua de sua raça a fim de que todos invoquem o nome do Senhor e O sirvam.”
Então, será glorificado o “resto de Israel”: “Rejubila-te, ó filha de Sião. . .
o rei de Israel está no meio de ti.” Pela sua ressurreição o Cristo está no
meio da história. Pela sua ressurreição atualizada na eucaristia, ele está no
seio da Igreja e a renova (“Cristo está no meio de nós” diz o padre no momento
do “beijo da paz”). É o mesmo tipo de texto escatológico comum aos judeus e aos
cristãos, que os primeiros lêem na espera ativa do Messias, na infantilização
do Messias pela história; os segundos, na certeza de que a plenitude
escatológica potencialmente presente no Ressuscitado deve se manifestar por uma
infantilização análoga — não sem descontinuidade última e julgamento — passagem,
dizia Soloiev, do Deus-Homem ao Deus-humanidade.
Nona leitura: Isaías 61:10-62:5.
Sempre a plenitude dos textos messiânicos, mas expressa aqui conforme um
simbolismo nupcial: “Como o esposo se rejubila da esposa, teu Deus,
(Jerusalém), rejubilar-se-á de ti.” Este tema nupcial, tão fortemente
relacionado por São Paulo ao amor do Cristo e da Igreja, é um dos leit-motiv,
como vimos, da semana santa. A lembrança de várias parábolas evangélicas que
exortam à vigilância dão ao tema uma dimensão escatológica. O Cristo, esposo da
Igreja, “sai do túmulo como de uma câmara nupcial,” cantarão as matinas
pascais. O Cristo “se libertou” para a Igreja, ele a santificou com um batismo
de sangue que lembra hoje “o banho de água que uma palavra acompanha. Pois ele
queria apresentá-la a si próprio toda resplandescente, sem mácula nem ruga ou
coisa semelhante, mas santa e imaculada” (Êxo. 5:25-27).
Décima-primeira leitura: Isaías 61:1-10.
É o grande texto messiânico: “O Espírito do Senhor está sobre mim. Ele
me ungiu para trazer a boa nova aos pobres. Ele me enviou para sarar aqueles
que tem o coração ferido, para anunciar aos cativos a liberdade e aos cegos o
retorno à luz.”
O Cristo aplicou-se esta profecia quando a leu na sinagoga de Nazaré,
acrescentando: “Hoje se cumpre esta passagem das Escrituras” (Luc. 4:16-22).
A liberdade trazida aos cativos é a vitória sobre o inferno e a morte
que mantinham os homens em escravidão. A volta à luz é a Páscoa definitiva, das
trevas da condição decaída à luz do Espírito.
Décima-Terceira leitura: Isaías 63:11-64:5.
Outro texto messiânico onde o cristão vê o céu se unir à terra e o fogo
da divindade penetrar os abismos para consumir o Adversário: “Se tu abrires o
céu. . . o fogo consumirá teus inimigos e teu nome será magnífico neles.”
Décima-quarta leitura: Jeremias 31:33-34.
Texto admirável sobre a nova aliança, quando a lei não mais aparecerá
como uma coação, mas, graças à renovação do coração, como a própria exigência
da liberdade, espontaneidade existencial, o que nos é necessário para existir:
“Eis aqui a aliança que naqueles dias eu farei com a casa de Israel, diz o
Senhor: eu colocarei a minha lei no interior deles e a escreverei sobre o coração,
e eu serei o Deus deles, e eles serão meu povo.” Esta adesão tornada “natural,”
no sentido da verdadeira natureza do homem que é um dinamismo de união com
Deus, esta adesão não apenas ética mas ontológica, realiza-se no Cristo,
“homem-máximo”; e naqueles que, enxertados pelo batismo com sua humanidade
deificada, procuram viver a lei como adesão de todo seu ser à presença divina.
O texto continua: “Um homem não ensinará mais ao seu próximo. . . pois eles
todos me conhecerão,” profecia da Igreja, onde não pode haver, estritamente
falando, Igreja ensinante e Igreja ensinada, pois todos são “portadores do
Espírito.” E a leitura termina com o anúncio do perdão divino — “eu perdoarei
sua iniquidade e não me lembrarei mais dos pecados deles” — que a Páscoa realiza
plenamente: “Que ninguém se inquiete de seus pecados pois o perdão jorrou do
túmulo” (Homilia de São João Crisóstomo, lida durante a atual vigília).
A última leitura, ao mesmo tempo ressurrecional, figurativa e profética,
é a história, do Livro de Daniel, dos três adolescentes lançados à fogueira por
um tirano e salvos pela vinda de um anjo. Poucos textos bíblicos marcaram tanto
a sensibilidade litúrgica do Oriente cristão. Na perspectiva pascal, o tirano
simboliza o diabo; a fogueira o inferno. O número três evoca o mistério da
Trindade. E o cântico dos adolescentes que o coro entoa com vigor, evoca a
dimensão cósmica da Ressurreição, inauguração da Parusia: “Vós todos, obras do
Senhor, bendizei ao Senhor! Pois Ele salvou-nos dos infernos, Ele nos arrancou
das mãos da morte...”
Na Liturgia que se segue, lê-se a grande passagem batismal da Epístola
aos Romanos (6:3-11): “Nós todos que fomos batizados em Cristo, é em Sua morte
que fomos bati-
zados. Nós fomos, pois, sepultados com Ele em Sua morte, pelo Batismo, a
fim de que,
como o Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, nós também
marchemos para a vida nova. E, com efeito, se nós fomos enxertados sobre Ele
pela semelhança da morte, nós o seremos também pela da Ressurreição.” O batismo
nos mergulha no mistério pascal; ele é, no Cristo, descida aos infernos e
subida liberadora. É por isso que na Igreja antiga, os catecúmenos recebiam o
batismo na noite de Páscoa. Ainda hoje, esta leitura nos lembraque não
assistimos como espectadores a acontecimentos que nos são exteriores, durante este
triduum pascal. Tudo transcorre por nós e em nós, pois a graça batismal nos
enxer tou ao (Soma pneumatihon) do
Ressuscitado.
Em seguida, se lê o Salmo 81 (82):
“Até quando julgareis
erradamente?
Julgai pelo fraco e
pelo órfão,
ao infeliz, ao
indigente, faze justiça!
Libertai o fraco e o
pobre...”
Texto que é preciso primeiro se ouvir no seu sentido espiritual: é o
Cristo que nos liberta — ficando bem entendido que o espiritual não se opõe ao
trabalho dos homens, mas o fecunda.
Entre os versículos, intercala-se este refrão: “Ressuscita, ó Deus,
julga a terra, pois Tu herdarás todas as nações,” refrão em que a Páscoa, ainda
uma vez, é colocada dentro de uma perspectiva escatológica.
Depois se lê o Evangelho segundo São Mateus, o último capítulo (28)
inteiro: o sepulcro vazio, a mensagem do anjo, as mulheres miróforas levando a
boa nova aos discípulos; as aparições do Ressuscitado, o mandamento do batismo
em nome da Trindade.
Neste dia, como nos mais solenes do ano, utiliza-se a antiga fórmula
capadócia, a liturgia de São Basílio, cuja anáfora tem muito mais amplidão que
a de São João Crisóstomo, de uso costumeiro na Igreja ortodoxa. Para a Páscoa,
essa fórmula conservou mesmo um canto muito antigo que provém da liturgia de
São Joaquim, e substitui, na “grande entrada,” o Chérubikon: “Que toda carne
mortal faça silêncio e permaneça imóvel no temor e no recolhimento e que nada
de mundano ocupe seu pensamento, pois Ele vem, o Rei dos Reis, o Senhor dos
Senhores, para ser imolado e dado como alimento aos fiéis, precedido do coro
dos Arcanjos, com os Principados e os Poderes, os Querubins de olhos
inumeráveis e os Serafins de seis asas que cobrem a face, cantando: “Aleluia,
Aleluia, Aleluia.”
E na hora da comunhão, que era a primeira dos novos batizados, o coro ao
invés de cantar como de costume: “Recebei o corpo de Cristo, bebei da fonte
imortal,” canta, quantas vezes forem necessárias: “Como alguém que dormia, Ele
acordou; o Senhor ressuscitou para nos salvar. Aleluia.”
AS MATINAS PASCAIS / A NOITE SANTA
Desde os primeiros séculos, os fiéis passam esta noite na igreja: é a
vigília por excelência, a única que é realmente vivida ainda hoje. A igreja
geralmente é ornamentada com flores alegres, logo ela ficará refulgente de uma
multidão de velas, para significar a abolição da “noite” que simboliza a
modalidade “noturna,” infernal, da existência.
No início do ofício o Epitáfio é transportado para cima do altar onde
ficará até a Ascensão, signo da presença na terra do Ressuscitado. Na igreja,
faz-se sifêncio, penumbra, espera. À meia-noite, as matinas começam com uma
procissão: na frente, o clero, vestido com paramentos claros e um certo número
de fiéis. Eles levam a cruz, o evangelho, os ícones e estandartes da igreja. A
procissão faz a volta por fora da igreja, para diante da entrada principal, e
então, o celebrante entoa o tropário da Ressurreição:
“Cristo ressuscitou dos
mortos.
Pela morte ele venceu a
morte
Aos que estavam no
túmulo,
Cristo deu a vida”
A procissão adentra a igreja, onde, de repente, todos acendem suas
velas. O padre brada os versículos do salmo:
“Que Deus se levante
e seus inimigos serão
vencidos
Tal como o fumo se
dissipa
Assim eles sejam
dispersos
à semelhança da cera
que se derrete diante do fogo.
Esse é o dia que o
Senhor fez.
Exultemos e
alegremo-nos nEle.”
Após cada versículo, o coro canta o tropário da Ressurreiçáb. Em
seguida, desfia-se o célebre Cânon de São João Damasceno, uma das mais altas
criações da poesia litúrgica bizantina. Neste cânon, os temas são sugeridos
rapidamente, com breves notações. O estilo, como a música, têm qualquer coisa
de dançante, permeados que são por um meneio de alegria, onde se reúnem a
Ressurreição e a Parusia, júbilo que dá lugar apenas a expressões pinceladas,
ágeis, exclamativas e que não passa nem por longos desenvolvimentos, nem pela
insistência.
Todo o essencial, é dado repentinamente na primeira ode:
“Dia da Ressurreição! Resplandecei de alegria, Povos todos / Ó Páscoa,
Páscoa do Senhor / da morte para a Vida, da terra para os Céus / Cristo Deus
nos transportou, a nós que cantamos este hino triunfal.”
“Purifiquemos nossos sentimentos, e veremos a Cristo resplandecente da
ofuscante Luz da Ressurreição, e ouvi-lo-emos exclamar: Rejubilai cantando o
hino do triunfo.”
“É justo que os Céus rejubilem, que a terra permaneça na alegria, que o
mundo esteja em festa, o visível e o invisível, pois Cristo, a Alegria Eterna,
ressuscitou.”
Uma variedade de imagens, de símbolos, de temas se entrecruzam e se
correspondem. Eis o túmulo vazio, e a anunciação da Ressurreição pelas
miróforas que vão levar a notícia aos discípulos: “As mulheres miróforas,
chegadas de manhã cedo junto ao túmulo do Doador da Vida, encontraram um anjo
sentado sobre a pedra o qual lhes falou nestes termos: Por que procurar dentre
os mortos o Vivo? Por que chorar como se Ele devesse se corromper, o
Incorruptível? Ide anunciar aos discípulos: o Cristo ressuscitou dos mortos.” É
a tradução verbal do ícone da Ressurreição, a única, lembremo-lo, que a
Ortodoxia conhece, como aquela da descida aos infernos que caracteriza mais
precisamente o grande sábado.
A unidade da Cruz e da Ressurreição, da Paixão e da Vitória, é
fortemente marcada neste apogeu do triduum pascal, como o foi desde a “grande
quarta-feira.” Por seu rebaixamento, sua paixão, seu sofrimento e sua morte na
cruz — sofrimento e morte cuja descida aos infernos mostra toda a intensidade —
o Cristo deixa entrar nele toda a angústia do mundo decaído, a tragédia da
separação, o inferno da condição humana servidora da mentira e do ódio. Então a
angústia, a separação, o inferno e a morte são abolidos por Aquele em quem eles
não têm espaço. O abismo aberto pela liberdade humana desgarrada é consumido no
abismo de amor da divindade.
“Nós adoramos, ó Cristo, e nós cantamos e glorificamos Tua Santa
Ressurreição. . .”
“Eis que, pela Cruz, a alegria entrou no mundo. Louvemos sem cessar o
Senhor, cantemos Sua Ressurreição, pois tendo sofrido a Cruz por nós, Ele
destruiu a morte pela morte.”
A vitória sobre o diabo, o inferno e a morte é, pois, celebrada sem
cessar.
“Tu desceste ao mais profundo da terra e quebraste os grilhões eternos
que retinham os cativos...”
“O Cristo, descendo para lutar sozinho com o inferno, de lá subiu
trazendo numerosos despojos, frutos de sua vitória.”
“Festejemos a morte da morte, a destruição do inferno, a inauguração da
Vida Imortal.”
“Tu adormeceste em Tua carne como um mortal, Rei e Senhor, e Tu Te
levantaste no terceiro dia; Tu ressuscitaste Adão da corrupção e Tu aboliste a
morte, ó Páscoa da incorruptibilidade, Salvação do mundo.”
Assim, a Páscoa definitiva é a passagem da morte à vida, da “corrupção”
à “incorruptibilidade” como existência no Espírito: “É da morte à vida, da
terra ao Céu que o Cristo nos fez passar.” “Páscoa imaculada, Páscoa imensa,
Páscoa da fé, Páscoa que nos ofereceu a porta do Paraíso.”
O sinaxário, para resumir o sentido da festa, explica: “A palavra Páscoa
significa que se passa do não-ser ao ser, do inferno ao céu, da morte e da
corrupção à imortalidade.” Sabe-se que em hebreu peschah significa passagem.
E esta passagem se faz em Cristo, já que nele se unem para sempre,
comunicam-se, se interpenetram “energeticamente” o humano e o divino, o céu da
presença divina e a terra dos homens (e, por aí mesmo, os “céus” angélicos e o
universo sensível). uNossa Páscoa é o Cristo” (lCor. 5:7) — esta afirmação
paulina é fortemente retomada: “O Cristo. . . como mortal é o cordeiro; sendo
ele imaculado, sem pecado, ele é nossa Páscoa.” “Tal como o cordeiro de um ano.
. . ele se ofereceu voluntariamente em sacrifício para a salvação de todos,
Páscoa purificadora.” “O Cristo é a nova Páscoa, a vitória da vida, o cordeiro
de Deus que tira os pecados do mundo.” Assim, se reencontram e se cumprem, como
já mostrou o Novo Testamento, as grandes “figuras” bíblicas do cordeiro pascal
e do bode emissário.
O tema solar — verdadeiro “sol da meia-noite” “Transluminoso” — sublinha
a irresistível invasão da luz, no sentido joânico: .” . . do sepulcro elevou-se
sobre nós, esplendoroso, o Sol de Justiça.” “É o sol anterior ao sol” que
surgiu do túmulo. “Que santa é esta noite redentora, ela que nos traz o dia
esplendoroso da Ressurreição, onde a luz eterna sai corporalmente do túmulo.”
Assim, o túmulo — como já o notamos — se transforma em câmara nupcial; o
Ressuscitado é o esposo, aquele que vem, que é esperado no temor e no tremor
desde o começo da semana. Pelo “julgamento do julgamento” de que fala São
Máximo, o Confessor (PG 90, 408 D), o Juiz, porque Ele aceitou, Ele o inocente,
tornar-se o condenado, o danado, o Juiz se revela o Esposo para aqueles que o
acolhem no arrependimento e na gratidão. É exatamente assim que ele é
representado sobre as “portas reais” diante das quais recebemos a comunhão: e
iconografia da “Deesis” (intercessão) mostra com efeito o Cristo-juiz, de um
lado e de outro intercedem a Virgem e São João Batista; ora, ela é a esposa e
ele o “amigo do esposo.”
“Círios na mão, vamos diante do Cristo que sai do túmulo como diante do
Esposo. . .” “Ressuscitando, tu sais do túmulo como de uma câmara nupcial. . .”
Toda a história da salvação poderia ser descrita como um drama de amor, como um
imenso Cântico dos cânticos: mas é menos a noiva que procura por seu noivo do
que o Deus fiel que procura por seu povo adúltero, que procura a humanidade que
se desviou dele, para lhes falar ao coração e devolver-lhes seu primeiro amor,
como diz Oséias (2:16-17).
Na Páscoa os esponsais são consumados. No Ressuscitado é a humanidade
inteira, e o cosmos, que se acham secretamente recriados, transfigurados. Em
sua hipóstase divina, portanto perfeita, e pela qual nada de exterior pode
existir, o Cristo, através de uma comunhão sem limites, assume todo ser criado
e o arrebata em sua ressurreição. “Tu ressuscitaste o homem pela tua
ressurreição, ó Cristo.” “Ressuscitando do túmulo, tu ressuscitaste contigo
Adão e toda sua raça.” O corpo “pneumatizado” do Cristo escapa às modalidades
decaídas do tempo e do espaço; nele, na Igreja que é o sacramento de sua
presença, a modalidade paradisíaca e “parusíaca” do ser criado nos é oferecida.
“Foi mantendo intactos os selos, ó Cristo, que tu te levantaste do túmulo, tu
que não havias rasgado o seio da Virgem em teu nascimento; e tu nos abriste as
portas do Paraíso.” O corpo do Ressuscitado é vida pura, e não esta mistura de
vida e morte, esta “vida morta” a que chamamos vida. “Por isso ele é
vivicante,” “carne que ressuscita Adão decaído.” 'Pela sua Paixão, ele revestiu
o mortal do incorruptível.”
Em Cristo sempre vivo e presente no Espírito, cada um de nós morre e
ressuscita: “Ontem, eu estava enterrado contigo, ó Cristo; hoje eu acordo contigo,
ó Ressuscitado; Salvador, glorifica-me contigo em teu Reino.” A Ressurreição
tem um alcance cósmico pois o corpo engloba secretamente o cosmos inteiro. Por
isso o universo é chamado a rejubilar-se após ter tremido de um horror sagrado
diante da Paixão e do enterro de seu Criador. . . “Que todo o universo esteja
em festa, toda a terra... pois ele ressuscitou, o Cristo, alegria eterna.”
Bem mais: para o “olho do coração,” o que é o da fé, da Igreja, da
santidade, tudo está doravante pleno de vida e de luz: e, os dois termos-chave
da teologia joânica que, para o pensamento ortodoxo constituem nomes divinos,
energias divinas, modalidades de presença salvadora e deificante. Doravante a
vida e a luz nos chegam mesmo pela morte e por todas as situações de morte de
nossa existência se as “configuramos” na fé na cruz do Cristo sobre a qual ele
venceu a morte. Por isso o mártir é o mais elevado estado místico do
cristianismo. E por isso também que o povo ortodoxo, durante o tempo pascal,
gosta de ficar nos cemitérios, pois no Ressuscitado, não há mais separação, a
morte torna-se um sono — êxtase em que se prepara a definitiva metamorfose.
Coloca-se sobre as sepulturas, na alegria pascal, ovos pintados com as iniciais
das duas palavras “Cristo Ressuscitado.” Os ovos, como os grãos, são desde
sempre, símbolos de ressurreição.
Não somente a morte está repleta de luz, como também o inferno: “Agora
tudo está repleto de luz: o céu, a terra e o inferno.” Deus é tudo em todos. A
apocatastase (a salvação universal) é oferecida à humanidade.
Não é, pois, de se impressionar que esses textos tenham fortes
ressonâncias escatológicas: a luz da Páscoa é a mesma da Parusia. A Páscoa já é
o Oitavo dia em que se inaugura a luz sem declínio. É o “dia do Senhor,” no
sentido escatológico de que se reveste esta expressão na Bíblia: “É agora o dia
insigne e santo, único nas semanas, o rei e o Senhor dos dias, a festa das
festas.” As profecias concernentes a Jerusalém, aquelas profecias tão
largamente citadas na manhã do sábado santo, agora, se realizam: Resplandece,
resplandece, ó Nova Jerusalém! Pois a glória do Senhor brilhou sobre Ti. “Dança
de alegria e rejubila, ó Sião. E Tu, Mãe de Deus, Toda Pura, se exaltada na
Ressurreição d'Aquele a quem deste à luz.” Assim intervém — nos dois símbolos
da nova Jerusalém e da Mãe de Deus — o tema da Igreja, que não é o Reino mas o
sacramento do Reino, que é o mundo em vias de deificaçao na medida em que o
assimilamos, pelo nosso próprio esforço de santidade, ao corpo do Ressuscitado.
O mundo só existe através das existências pessoais: sua transfiguração
escatológica, inaugurada em Cristo, deve ser decifrada, assumida, reinventada e
difundida pela comunhão dos santos, até que ela tenha atingido seu “pleroma,”
conforme uma medida que não é a da história “objetiva,” mas a de Deus. É por
isso também que a alegria pascal se desdobra numa dimensão de espera e de
esperança: “Ó Páscoa grande santa, Cristo, sabedoria, Verbo e poder de Deus,
concede-nos comungar-Te com ainda mais verdade, no dia sem ocaso de Teu Reino.”
Mesmo depois da Ascensão, o Ressuscitado ficará presente em sua Igreja:
“Tu nos prometeste sem mentira de estar conosco até a consumação dos séculos, ó
Cristo! E nós, fiéis, nós conservamos esta palavra como a âncora de nossa
esperança.”
No Espírito Santo, a luz pascal, vida do Ressuscitado, nos é comunicada
pela eucaristia que constitui a Igreja, que a funda sobre o “mistério pascal”:
“Vinde, neste dia da Ressurreição, comungar o fruto novo da vinha, a alegria
divina, a realeza do Cristo.” Uma vez que a eucaristia nos incorpora ao
Ressuscitado, nós podemos, pouco a pouco, por uma ascese de vigilância, nos
acordarmos para nossa ressurreição no Ressuscitado, de modo que nós
contemplamos conscientemente nossa reunião com ele. “Purifiquemos nossas
faculdades e perceberemos o Cristo resplandecente da ofuscante luz da
Ressurreição. . .” “Vigiemos até o final do dia; em lugar da mirra, ofereçamos
um hino ao Senhor e nós veremos o Cristo, Sol de Justiça, fazer brotar a vida
para todos.”
Na Ressurreição funda-se a Igreja que comunica aos homens a vida divina,
a vida lesma da Trindade, ou seja, a verdade da existência pessoal no amor. A
Páscoa nos batiza a Trindade: “Pai todo-poderoso, Verbo e Espírito, natureza
única em três pessoas... é em função disso que nós fomos balizados.” A partir
daí, uma nova forma de amor é possível, um amor de mesmo tempo pessoal e
ontológico, graças à nossa “consubstancialidade” ao Ressuscitado. No final das
matinas pascais, canta-se: “É a Páscoa! Na alegria, abracemo-nos uns aos
outros. Chamemos irmãos mesmo àqueles que nos odeiam. Perdoemos tudo por causa
da ressurreição e clamemos: Cristo ressuscitou dos mortos!” e a gente se saúda
assim durante todo o tempo pascal. É o beijo da paz, que se trocava na igreja
antiga durante cada liturgia eucarística, antes da confissão da Trindade. Hoje
apenas o trocam — fora da noite pascal — os membros do clero dizendo: “Cristo
está no meio de nós,” mas o sentido do rito está ido para sempre por este
diálogo entre o celebrante e o povo: “Amemo-nos uns aos outros a fim de que
dentro do mesmo espírito confessemos, o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
Trindade consubstancial e indivisível.” Os fiéis se unem no amor para
tornarem-se como que o ícone da Trindade.
A noite pascal, pois, conservou gestos litúrgicos bem antigos e também
uma grande es-pontaneidade e participação do povo na ação litúrgica. O canto
das matinas pascais, ímpeto como a liturgia eucarística que se seguem são,
frequentemente, entrecortadas por egres trocas de exclamações entre o
celebrante e o povo: “Cristo ressuscitou!” diz o primeiro e os fiéis respondem:
“Em verdade, ressuscitou!”
Somente a fé, o despertar do amor podem corresponder à infinita
generosidade de Deus. Pois o banquete messiânico ao qual somos convidados é o
banquete oferecido ao homem pródigo, é o “banquete da fé”: “O festim está
pronto; que todos nele participem. O telo cevado está servido, que ninguém
parta com fome. Que todos se deliciem no banquete da fé...”
E a fé é a descoberta maravilhada, balbuciante, do perdão que
resplandece do mundo: “Que nenhum chore suas faltas, pois o perdão resplandeceu
do túmulo.” O Cristo os libera da angústia fundamental que nós cambiamos em
preocupação, fugas e paixões ólatras. No fundo de nós, nessas trevas onde ele
desceu e não cessa de descer, ele transforma a angústia em confiança, a
“memória da morte” em memória da ressurreição, “que nenhum tema a morte, pois a
morte do Senhor nos libertou” . E é, com acentos paulineos, a lembrança da
vitória: “O inferno tomara um corpo, e foi um Deus que ele encontrou. Ele
tomara a terra, e encontrou o Céu. Ele tomara o visível e caiu por causa do
invisível. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, Inferno, a tua
vitória? Cristo ressuscitado e tu foste humilhado.
A liturgia eucarística que se segue é verdadeiramente um banquete
escatológico, como se o “Véu” do sacramento, aí nesta noite, se fizesse
particularmente translúcido, as portas da iconostase são abertas, a igreja está
repleta de flores e de luz e, sem cessar, como vagas de luz, ecoam os tropários
de ressurreição. No lugar do Trisagion canta-se o versículo pauliniano: “Vós
todos os que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo, Aleluia!”
lembrete aos neófitos da iniciação que acabam de receber e que lhes permite
comungar. Lembrete a todos batizados, que somos nós, da integração deles à
morte e à Ressurreição do Senhor. As leituras são, de início, o primeiro
capítulo dos Atos, as aparições do Ressuscitado, o mandamento feito à primeira
comunidade de esperar em Jerusalém a “promessa do Pai,” quer dizer, o Espírito
Santo. Aqui, sente-se a unidade da grande Cinquentena, o grande Pentecostes que
une a Páscoa, a Ascensão e Pentecostes: toda a economia do Cristo tem por
finalidade que, recebamos o Espírito de Pentecostes. Quanto ao Evangelho, é o
prólogo de São João (l:1-17), quer dizer, a confissão solene da divindade
daquele que sofreu, da identidade entre a hipóstase do Logos e a do
Crucificado. “E é de sua plenitude que todos nós recebemos.” Tanto quanto
possível, este evangelho é lido em diversas línguas, já um signo pentecostal. E
todos comungam.
Todo o período que segue, até Pentecostes, mas sobretudo a própria
semana pascal, constitui, na linha do arcaísmo litúrgico que sublinhávamos
ainda agora, um tempo que nós poderíamos denominar “Agápico.” A regra do jejum
está suspensa. No final da liturgia pascal faz-se abençoar para o ágape toda a
espécie de alimentos. Os gregos comem em família o cordeiro pascal. Depois,
durante toda a semana, a mesa fica permanentemente posta em cada família, a
gente se visita um ao outro, se beija — “Cristo ressuscitou” — compartilha a
comida, a vida circula e se multiplica na alegria.
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