Corpo e matéria na vida espiritual
BLOOM Metropolita Anthony de Sourozh
tradução de monja Rebeca (Pereira)
A origem deste texto deve ser
encontrada numa pergunta que fiz há algum tempo atrás: se alguém que é privado
de uma vida psicológica consciente, uma pessoa mentalmente deficiente, por
exemplo, pode ter uma vida em Deus? Foi esta pergunta que me levou a dar mais
atenção ao problema do corpo e ao problema do espírito, e sua relação com Deus.
Agora eu gostaria de dirigir sua
atenção ao fato de que quando nós falamos de nossa vida espiritual nós quase
sempre, a menos que sejamos muito cuidadosos, pensamos no lado psicológico da
nossa natureza. Nós falamos da nossa vida espiritual em termos do nosso
conhecimento consciente de Deus, da nossa resposta emocional no raio de luz que
nós chamamos nossa consciência. Este, contudo, é um campo muito limitado. Nós
sabemos da psicologia, não somente a moderna, mas também a antiga, sabemos que
há um mundo todo de sombra e escuridão. Sombra, fora da qual as coisas emergem
e dentro das quais as coisas desaparecem: nossas memórias, coisas que agora nós
podemos lembrar, que foram vividas anteriormente, mas que mais tarde serão
esquecidas. Há também aquele mundo que foi estudado profundamente, e que
precisa ser descoberto cada vez mais profundamente, a vida inconsciente do
homem.
Mas à parte isto, nós precisamos
lembrar que o homem não é simplesmente uma alma ou uma consciência. O homem
total é um ser feito de corpo e alma juntos e é somente na junção de ambos que
o homem é completo. Ë ensinamento ortodoxo que certamente a totalidade da
eterna bem-aventurança será dada aos Santos somente quando revestidos do corpo
da ressurreição. A totalidade do homem é encarnada – nunca está dividida em
duas. Separado da alma, o corpo torna-se um cadáver – separada do corpo a alma
torna-se um morto. Homem enquanto homem é encarnado.
Se nós desejamos olhar para coisas no
homem que não estejam sujeitas a uma interpretação fantasiosa e a uma hesitação
constante, não é certamente para a consciência do homem que devemos olhar. O
domínio psicológico do homem está em constante movimento, ele muda a todo o
momento tal como as ondas do mar. Isto não é uma surpresa. Por um lado este
campo da consciência aumenta e diminui de acordo com as leis da nossa natureza
física e psicológica, e por outro lado ele reflete como a face de um lago que
vai a ambos espírito e corpo. Quer vá ao fundo ou ao alto no que nós chamamos o
“espírito do homem”, aconteça o que acontecer entre este espírito e o divino
Espírito encontramos um reflexo em nossa consciência; e aconteça o que
acontecer em nosso corpo, se é simplesmente ocorrência física de saúde ou
doença, ou as mais elevadas atividades da mente humana, também reflete em nossa
consciência. Mas embora em ambos os casos nós possamos falar de reflexo e não
de alguma coisa que pertença completamente ao campo da alma ou psique ou da
consciência, um reflexo significa que o que é visto refletido é somente
parcialmente verdade. Por um lado, quando nós olhamos na face de um lago e
vemos o céu, nós não vemos o céu todo. Nós nem mesmo vemos o que nós poderíamos
ver se levantássemos os nossos olhos em direção ao céu. Vemos apenas uma
pequena parte do céu – aquele que está dentro do raio de observação do lago.
Por outro lado é suficiente atirarmos uma pequena pedra no lago, ou é
suficiente uma brisa tocar a superfície das águas, para que tudo mude a forma.
O céu e as nuvens e o que quer que surja na borda do lago começa a se mover e a
mudar seu aspecto. Se você quiser tirar uma conclusão olhando para um espelho –
como para o que está refletido nele – você precisa ser extremamente cuidadoso;
é parcial e é sempre distorcido em um ou outro grau, e muito comumente como num
lago, as coisas vão para cima e para baixo. Isto não é simplesmente uma
brincadeira. Se você olhar para a nossa situação em relação a Deus, quão
comumente nós deduzimos Deus a partir de nós mesmos, em vez de a partir de Deus
deduzirmos nós mesmos em relação a Deus. Isto é o que nós ainda não aprendemos
a consertar pela experiência espiritual.
Eu estou certo do fato de que há uma
profunda conexão entre o corpo e a alma do homem. Isto pode ser mostrado
facilmente em dois níveis. Por um lado nós todos sabemos do interesse que tem
crescido na última década em relação a doenças psicossomáticas. Nós estamos
certos do fato de que as coisas que vão na alma do homem não são somente
vagamente refletidos no estado do seu corpo, mas que de acordo com um mecanismo
definido de uma forma sistemática elas provocam a mesma resposta nos órgãos
desse corpo, particularmente no sistema nervoso do homem. Por outro lado, se
nós nos voltarmos para religião e para a experiência espiritual, para Oriente
ou Ocidente, nós descobriremos que desde os tempos remotos as pessoas estavam
certas do fato de que há um trânsito duplo entre a alma e o corpo, entre o
psicológico do homem e o corpo que ele possui. Então enquanto é verdade que as
coisas que acontecem na alma refletem no corpo, muito freqüentemente
transformam o corpo, é também verdade que o corpo por sua parte tem uma
verdadeira e grande influência no reino psicológico da vida do homem.
Eu gostaria aqui de fazer uma
consideração geral, e então dar dois exemplos. Se você estudar psicologia e
fisiologia você descobrirá muito facilmente e no nível da simples e muito
elementar fisiologia – que todo evento psicológico, todo evento emocional, toda
atividade intelectual, resulta em mudanças glandulares, mudanças musculares e
assim por diante. Aqui estão dois exemplos que podemos dar valor. O primeiro é
da arte. Se você olhar para uma estátua como “O Pensador” de Rodin, você verá
claramente, plasticamente, o que eu penso. Este homem está sentado, pensando;
mas quando você vê esta estátua você descobre que ele não está pensando somente
com seu cérebro. Ele pensa com o total dele mesmo. Todo o seu corpo está
debruçado sobre o pensar, ele está pensando com todos os músculos, com todas as
partes do seu corpo, com a total posição do seu corpo. Ele é um homem que está
transformado em pensamento encarnado. Então se você prefere, pensamento e
encarnação são a mesma coisa em uma certa profundidade. Claro que quando nosso
pensamento é superficial ele atinge uma expansão menor tanto quanto a percepção
do nosso corpo está envolvida. Quando nós franzimos a sombrancelha, a expressão
em nossa face muda e assim por diante. E agora vamos ao meu segundo exemplo.
Este conhecimento é usado pelos ascetas da escola hesicasta, nos séculos XI e
XIV, para formar um método para produzir
um estado psicológico que poderia então ser usado com o objetivo de orar em um
modo imperturbável. O estado psicológico de total atenção, total desengajamento
da paixão e do pensamento desordenado é atingido por meio de uma técnica
física. Eles nunca foram pensados como sendo oração em si mesmos. Eles eram
métodos pelos quais as condições podiam ser estabelecidas, através dos quais a
oração podia ser imperturbável. Isto se aplica a ambos: às paixões e às
desordens intelectuais.
Quando nós pensamos no homem hoje,
contudo, nós estamos acostumados a pensar em termos racionais, nós pensamos no
homem em seu intelecto, ou em sua vida emocional na extensão de que é uma parte
da sua vida consciente, e nós esquecemos que o homem tem raízes infinitamente
mais profundas do que isso; e que o seu intelecto do qual ele é tão orgulhoso e
suas emoções as quais ele é não inábil em controlar não são o homem total e
estão muito longe disso. A existência do homem está enraizada em um ato da
divina vontade. Todos nós existimos porque nós fomos desejados por Deus. E esta
divina vontade é um ato, não de condescendência, mas de amor; é um ato em que
Deus criou o homem com o propósito de fazer dele participante de tudo que Ele
possui e de quase tudo que Ele é. Nós somos “deuses” por vocação. A diferença
entre nós e Deus, neste processo e nesta obtenção da deificação, repousa no
fato de que nós podemos ser “deuses” pela participação não “deuses” por
natureza; do mesmo modo pelo qual Cristo foi homem pela participação em nossa
natureza, e Deus n’Ele mesmo. E neste ato de Deus, nesta palavra criadora de
Deus, em Sua experiência de vontade e de amor, está a nossa raiz. Nós não temos
raízes em nós mesmos e nós não temos raízes em Deus, tão longe quanto diz
respeito à natureza, e isto nos dá completa dependência d’ Ele e, ao mesmo
tempo, uma estranha qualidade de independência. Nós existimos porque nós fomos
desejados, e ainda porque nós não somos uma necessidade de Deus, porque o ato
da criação não é necessário para que Deus seja Ele mesmo, porque num certo
sentido, nós somos supérfluos a Ele, porque Ele é plenitude sem nós, nós possuímos
uma peculiar independência. Não somos um reflexo d’ Ele, não somos uma sombra d’
Ele, não somos um menor aspecto de Sua
existência. Nós somos nós mesmos, colocados face a face com Deus, derivando
nosso existência da Sua vontade e ainda, independente d’Ele, em que nós podemos
aceitar ou rejeitar Ele e o que Ele oferece e o que Ele dá. A vontade de Deus é
todo poderosa. Ele pode criar, Ele pode fazer o que Ele escolher, salvo uma
coisa; Ele não pode compelir nenhuma criatura a amá-Lo, porque amor é
soberanamente livre e é incompatível com qualquer tipo de coerção ou
determinação.
Quando nós dizemos que nós fomos
desejados por Deus, porque antes de nós existirmos fomos amados por Ele, nós
definimos a verdadeira raiz, e a verdadeira pedra sobre a qual nossa existência
repousa. Mas não devemos nos enganar; não somos seres espirituais, não somos
uma alma aprisionada por um corpo ou uma alma que por um tempo está conectada
com um corpo; nós somos um espírito encarnado, e a plenitude do homem não está
assentada em seu espírito ou em sua alma, mas em espírito-alma junto com seu
corpo. Neste aspecto nosso corpo tem uma significância infinitamente maior e
possibilidades infinitamente maiores do que nós usualmente lembramos. Se nós
voltarmos à revelação bíblica e ao espírito e aos fatos do Antigo e do Novo
Testamento, eu acho que isto se torna tão claro que, o que quer que Deus tenha
criado foi criado alerta, vivo, e não inerte e morto. Nós falamos da matéria
morte, da matéria inerte e agora nós somos cegos e insensíveis à vida das
coisas, a matéria é pesada, opaca e inerte. Mas para Deus, não é nenhuma destas
coisas. Deus criou todas as coisas para que elas possam viver e rejubilar Nele.
Isto não implica que as coisas têm o mesmo tipo de consciência que nós
possuímos; mas quem pode dizer que o tipo de consciência que nós temos é algo
melhor, algo mais profundo, algo mais Deus-consciente do que qualquer outro
tipo de consciência pode ser? As coisas estão em Deus; elas são capazes de
conhecer Seu mestre e elas são capazes de rejubilar com Seu Salvador; e elas
são capazes de brilhar, de refletir a luz do próprio Deus. De outra maneira,
todos os milagres, nos quais natureza e carne estão envolvidos, no Antigo e no
Novo Testamento, deixam de ser milagres e tornam-se atos de magia, não atos de
harmonia, não atos de amizade, não atos de obediência e alegria da parte da
natureza, que ouve as palavras de Deus e percebe sua vontade, mas
unilateralmente atos de poder, agindo sobre uma natureza passiva e, por conseguinte,
sem sentido; Deus-centrado e homem-centrado, mas deixando de lado a totalidade
da criação. Quando o Senhor Jesus Cristo comanda às ondas furiosas a se
acalmarem e ao vento a não mais soprar no mar da Galiléia, quando em vários
eventos do Novo Testamento ele comanda às coisas a responder à Sua voz, quando
ressuscita Lázaro ou todas as vezes que realiza outros poderosos trabalhos, há
uma afinidade, uma relação entre o que é criado por Deus e Ele. Há harmonia.
Um milagre não é alguma coisa que é
maravilhosa, apesar de aparentar isto para nós; um milagre é a relação normal
entre Deus e Seu mundo, a dócil, viva, amável relação que pode existir entre o
que Deus fez, capaz de conhecê-Lo, de ouvi-Lo, e Ele próprio. Isto, eu
acredito, é verdade para a teologia bíblica, isto é também verdade para os
ensinamentos dos Apóstolos, para os ensinamentos e certamente para a vida e
experiência da Igreja. Esta experiência pode ser achada descrita nos escritos
de um homem como Simeão o Novo Teólogo. Uma vez ele voltou da Igreja; ele
recebeu a comunhão; ele sentou-se em sua cama e refletiu. Ele olhou à volta, olhou
para Ele e maravilhou-se. Estas mãos, disse ele, tão frágeis, tão impotentes,
são as mãos de Deus; este corpo, tão vil, tão velho, este corpo decaído é o
lugar da divina presença; e este cela tão pequena, tão feia, é maior que o
paraíso porque ela contém Deus. Isto não é alegoria, não é um pensamento
fantasioso; é direto, profundo, experiência concreta, enraizado em tudo que há
no Antigo e no Novo Testamento. Tudo que foi criado por Deus está em Deus,
relacionado profundamente com Ele, capaz de senti-Lo, de conhecê-Lo. Se nós
pudéssemos ao menos estar cientes das potencialidades do que Deus criou – eu
não estou pensando agora no que a ciência tem descoberto das extraordinárias
possibilidades do átomo – eu estou falando de algo mais profundo do que isto,
mais intrínseco da matéria mesmo que suas próprias capacidades naturais. Não há
um só átomo neste mundo, da mínima poeira à maior estrela, que não tenha isso
em sua essência, possua ainda em seu íntimo, se eu posso colocar desta forma, a
vibração, o tremor de seu primeiro movimento de existência, da sua vinda ao
ser, de sua posse de infinitas possibilidades e da entrada no reino divino, de
modo que ele conhece Deus, alegra-se Nele. E se o mundo parece escuro para nós,
compacto, denso, opaco, é porque algo trágico aconteceu, é o que nós chamamos a
Queda, não obstante nós a definamos em seus detalhes, como a soberana liberdade
de obediência e harmonia foi substituída pelas regras de ferro e pelas leis que
contém uma certa profundidade elas têm escravizado o que Deus criou para ser
livre.
E esta capacidade do mundo de ser em
Deus e de ter Deus dentro de si, esta capacidade da matéria deste mundo,
deixando de lado nossa alma e nosso espírito, é a verdadeira condição da
Encarnação por um lado e da nossa fé nos Sacramentos por outro lado. Na
Encarnação, Deus que não tem nenhuma medida em comum com o que Ele criou,
torna-se intrínseco com a Sua criação, colocado na carne humana, que é o resumo
de todas as coisas que são, que existem no mundo criado. Ele assume toda a
substância do mundo, e esta substância, não somente em sua própria, pessoal
história do corpo, mas no mundo todo, é misteriosamente, de modo incomensurável
conectado com Ele, o Deus pessoal; conectado pessoalmente, em uma nova relação.
E quando, depois da Ressurreição, Cristo ascende aos céus, Ele leva, neste
misterioso ato divino, toda a substância do nosso mundo no mais profundo da
divina realidade. Deus presente no mundo, enquanto parte não somente da sua
história mas da sua substância, é o mundo presente em Deus.
Nisto, como eu disse antes, é baseado
o que nós acreditamos dos Sacramentos, ou daquelas misteriosas ações realizadas
dentro da Igreja, pelo poder de Deus, que faz da substância desse mundo parte
das coisas divinas e as fazem capazes de transmitir estas coisas à nós. As
águas do batismo, o óleo da unção, o santo crisma, o pão, o vinho, são trazidos
para Deus, tirados do contexto do mundo que tem crescido sem Deus; eles são
trazidos ao Reino de Deus e tornam-se livres novamente; livres por um ato da
liberdade e fé humanas, por um ato de amor divino. E estas coisas mesmo, não de
modo alegórico, não como uma visível ação e substância independentes da divina
ação mas nelas mesmas, por elas mesmas, tornam-se veículos do divino poder,
divina graça, divina luz, tornam-se um milagre nelas mesmas, uma maravilha
nelas mesmas, porque elas foram restauradas à totalidade e à liberdade de
comunhão da criatura.
Se nós nos lembrarmos disso, nós
descobriremos que não é somente em nossa mente racional, em nossa esfera
emocional, à extensão do que é consciente, às raízes onde as nossa relação com
Deus pousa; esta relação abraça tudo e todas as coisas em nós. E certamente,
quando Deus desejar nos atingir, criaturas decaídas incapazes de atingi-Lo, é
através dos nossos corpos e através da substância desse mundo que Ele o faz. Ao
nosso ato de fé, Deus responde pelo milagre do batismo, que é inclusão. Ao nosso ato de fé que está dentro
de uma relação existente, Deus responde dando-nos participação ao Seu corpo e
sangue, e à vida divina. Os grandes eventos da vida cristã são todos enraizados
na matéria, não no espírito, porque antes de nosso espírito tornar-se rápido,
vivo e alerta, ele deve ser cultivado e fortalecido; e ainda, Deus nos atinge
quando estamos no fundo do abismo: lá onde abunda o pecado a graça abunda mais
livremente. E nós conhecemos muito mais sobre isto apesar de nunca termos
pensado nisto; quão pouco de nós conhecemos com nosso intelecto sobre as
capacidades do nosso corpo. Quanto pode se tornar conhecido – e eu estou
falando agora num plano que é mais comumente humano e vai mais longe que isto –
pelo toque de uma mão; quanto nossos corpos possuem de percepção direta, de
conhecimento, de sabedoria.
E então, quando nós pensamos no homem precisamos
lembrar que há estes dois aspectos em nós, o consciente, e o outro aspecto que
nós não podemos nunca chamar de consciente ou inconsciente, o físico, o material
que tem suas próprias possibilidades, que nós nunca suspeitamos, que nós vemos
de tempos em tempos, num relance, nas vidas dos santos ou em eventos da nossa
própria vida. E então nós devemos também lembrar que mesmo no reino da
consciência e da razão que nós louvamos, há muitas coisas que não pertencem ao
racional apesar delas não terem nada a ver com a irracionalidade. Há campos em
nossa percepção da vida, em nossas atividades na vida, que não são do intelecto
e nos quais, de acordo com uma frase do Professor S.L. Frank, o intelecto tem
seu verdadeiro papel – o de servo; o amor, o senso de beleza, o senso de
veneração vão muito além do campo de nosso intelecto. Então, quando nós
pensamos na relação que há entre nós e Deus, nós devemos lembrar que esta
relação está enraizada primeiro que tudo no fato de que nós fomos desejados e
amados por Deus. Lembremos das divinas palavras de São João: “a maravilha da
vida não está em que nós amamos a Deus, mas que Ele primeiramente nos amou”. E
isto não se aplica somente à humanidade decaída, ao ato da salvação, mas à
nossa verdadeira existência e ao fato de que Ele nos formou e porque ele nos
formou, estamos relacionados à Ele, profundamente.
O que nós podemos dizer mais
concretamente sobre esta relação que existe entre Deus e nós, à parte do
intelecto, ou quando nosso intelecto é incapaz de ter esta relação? À parte do
intelecto, como eu disse antes, há a básica relação do ato criativo, a básica
situação da matéria em relação a Deus, o básico significado do corpo com sendo
uma parte integral do homem e, portanto parte do seu destino de salvação. “Eu
creio na ressurreição do corpo” nós dizemos no Credo Apostólico. Há uma
aproximação de Deus em direção a nós nos Sacramentos, nos milagres, em todas
estas ações em que Deus age diretamente sobre nós, inclusive no corpo.
Novamente, há aqueles eventos, aquelas situações em que Deus atinge o nosso
corpo através do espírito e da alma. O Ancião Athonita Silouan disse que a
graça nos atinge em três ondas que são: primeiramente entramos em contato com a
graça na oração, na meditação, depois, no verdadeiro ponto mais alto do nosso
ser, em nosso espírito (nous); e quando nosso espírito está imbuído da graça,
então a graça penetra nossa alma, o que nós podemos chamar de nosso campo psicológico,
consciente e inconsciente, e de lá ela atinge mais adiante nosso corpo; porque
nós podemos ver na vida dos santos que eles eram diferentes de nós, não somente
em espírito, não somente em mentalidade, mas também em seus corpos. Todas as
maiores coisas que pertencem à nossa vida espiritual não resultam de nosso
intelecto, elas apenas são percebidas pelo nosso intelecto.
A raiz da pedagogia Cristã repousa
neste reconhecimento de que o intelecto é alguma coisa que não cria uma
situação, mas que descobre a situação, que tem controle da situação. Nós não
esperamos primeiro ensinar uma criança, ou mesmo um adulto, o que a vida eterna
é, nós acreditamos que podemos dar a ele uma experiência disto e somente então
ele começará a descobrir coisas. Há coisas, que ao nível do intelecto são
insolúveis, mas que são resolvidas na experiência das coisas. Isto não se
aplica somente à religião. Isto se aplica à beleza, à arte, isto se aplica ao
amor. Ninguém pode dar testemunho da beleza musical ou artística antes de fazer
alguma experiência nisto. E por mais ricas que sejam as palavras literárias nos
livros, em poesia e prosa, nas quais o amor é falado, descrito, transmitido de
alguma forma, ele não pode ser transmitido se a pessoa não tiver uma
experiência pessoal do amor. E então, os Sacramentos são dados e tão
gradualmente quanto nós crescemos intelectualmente, emocionalmente, em nossa
vontade, em nossas capacidades físicas, nós somos ensinados pelos homens e por
Deus, como compreender nossa própria experiência, como ver o trabalho da divina
graça, como entender o que por outro lado nós nunca estaremos aptos a entender.
Isto pertence a um campo onde nenhuma comparação é bastante; todas as
comparações transmitem o sentido somente àqueles que já tiveram a real experiência
das coisas. De outro modo elas são somente idéias enganosas.
Há mais uma coisa que eu gostaria de
dizer. Há um momento na vida de Cristo no Evangelho que mostra novamente, mas
de outra forma, a relação entre Deus e o mundo, entre as coisas criadas e a
divina graça, e que revela o modo incriado em que Deus comunica Ele próprio.
Este evento é o da Transfiguração. Há dois ícones da Transfiguração que me
tocaram profundamente quando eu os vi no original na Galeria Tretiakov em
Moscou. Um era de Rublev e o outro de seu mestre, Teófano, o Grego. Em ambos há
três picos de montanha, o Senhor Jesus no centro, com Moisés e Elias nos lados
direito e esquerdo, e os três discípulos aos pés da montanha. A diferença entre
os dois ícones pousa no modo pelo qual as coisas são vistas. O ícone de Rublev
mostra Cristo na luminosidade da Sua ofuscante roupa branca que lança luz em
tudo à volta. Esta luz cai sobre os discípulos, sobre a montanha e as pedras,
em toda folha de grama. Dentro dessa luz, que é o esplendor divino – a divina
glória, a luz divina ela mesma inseparável de Deus, todas as coisas adquirem
uma intensidade do ser que elas nunca teriam de outra forma; nela elas atingem
a plenitude da realidade que ela podem ter somente em Deus. O outro ícone é
mais difícil de perceber em uma reprodução. O fundo é prateado e aparece cinza.
A roupa de Cristo é prateada com sombras azuis, e os raios de luz caindo em
volta são também brancos, prateados e azuis. Tudo dá uma impressão de muito
menos intensidade. Então nós descobrimos que todos estes raios de luz caindo da
Divina Presença e tocando as coisas que circundam o Cristo transfigurado não
dão alívio, mas dão transparência às coisas. Tem-se a impressão de que estes
raios de luz divina tocam as coisas e descem dentro delas, as penetram, tocam
alguma coisa dentro delas, alguma coisa da essência destas coisas, de todas as
coisas criadas a mesma luz reflete e brilha de volta como se a luz divina
acelerasse as capacidades, as potencialidades de todas as coisas e fizesse tudo
dirigir-se em direção a si próprio. Naquele momento a situação escatológica é
descoberta, e nas palavras de São Paulo “Deus é tudo em todos”.
Estes eram os pontos que eu queria fazer
referência à matéria deste mundo que no começo veio do nada em um ato de divino
esplendor, de alegria, de harmonia, que é agora obscurecida pelo pecado humano
e que permanece obscuro porque a carne é uma corrupção do corpo. Mas quando o
corpo é libertado da paixão e libertado do mal, e entra no mistério da vida
divina e é transfigurado, então a glória divina atinge fundo no que a matéria,
criada primeiramente pura e viva em Deus, está ainda tremendo com o primeiro
tremor de sua luz nascente. Atingir isto é o caminho e o propósito do
ascetismo. Como o Padre Bulgakov disse, “Mate a carne se você deseja obter,
adquirir um corpo”. Mate o que é paixão, mate o que é corrupção, mate o que é
morte, e então você descobrirá que o corpo que você possui é um corpo
semelhante a toda a criação e junto com toda a criação, mas de um modo muito além
de qualquer imaginação, uniu-se à divina imagem, à divina realidade na
Encarnação, que o puro ato de Deus através de toda a economia da salvação, move
em direção à sua conclusão na transfiguração do mundo, quando Deus será tudo em
todos.
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