A PRESENÇA DO MAL E DA MORTE NA CRIAÇÃO
LEROY Georges
tradução de monja Rebeca (Pereira)
“O que mais se podia fazer à Minha vinha, que Eu não lhe teria feito”?
pergunta o Senhor pela voz do Profeta Isaías (Is. 5; 1-7). E a resposta não
tarda: Eu “tirarei a sua sebe, para que sirva de pasto; derribarei a sua
parede, para que seja pisada (...). Às nuvens darei ordem que não derramem
chuva sobre ela”. E tal fora mesmo a sorte de Israel quando ele se desvia do
seu Deus único para adorar os ídolos. Invadidos pelos impérios vizinhos,
arruinado, esmagado, exilado, somente no seio de todas estas tentações que o
coração do povo se volta ao Senhor: “Mas na terra do exílio reentrarão em si
mesmos, e reconhecerão que Eu sou o Senhor seu Deus. Eu lhes dei um coração e
ouvidos que ouçam.” (Bar. 2, 30-31). “E tirarei o coração de pedra da vossa
carne, e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o Meu Espírito.”
(Ez. 36, 26-27). O homem é tal que, em efeito, ele se esquece de Deus no tempo
ordinário e só se recorda no fundo de uma situação sem saída. Ora, uma nova luz
jorrou, na plenitude dos tempos, sobre a palavra de Isaías a respeito da vinha.
Pois se na profecia, não se trata somente ainda da chama invejosa dum amor
decepcionado, uma palavra prodigiosa nos fora revelada na passagem do
Evangelho, acerca do desígnio do Pai, quando Ele envia Seu Filho: Ele envia a
eles Seu Filho bem-amado, “dizendo: Ao menos terão respeito ao Meu Filho” (Mc.
12, 6). Tal era o pensamento do Pai, na altura da Encarnação de Seu Filho. Ele
não O enviou a realizar justiça alguma nem cólera alguma; Ele O enviou para que
por Ele, os homens descubram Seu amor. Esta palavra evangélica toma todo o seu
relevo, para nós que sabemos o que aconteceu. Nossa Fé é histórica; ela depende
de fatos cuja realização geralmente não corresponderam à esperança de Deus ou
dos homens. Nada estava resolvido de antemão. Nós conhecemos a palavra do Pai
na Teofania. Ele nos revela a relação de amor que une o Pai ao Filho que Ele
engendra eternamente. Mas aqui, nós descobrimos a intenção mesma do Pai, no que
concerne nossa Redenção. Como conciliar esta palavra com o julgamento de
iniqüidade e a Cruz do suplício que o Senhor encontra sobre o caminho de Sua
vida terrestre? E que sentido pode esta palavra ter aos nossos olhos; para que
nós saibamos que ela não fora realizada: o Senhor foi bem mais do que “sinal a
ser contraditado” da profecia de Simeão (Lc.2, 34) que o objeto do respeito dos
homens, Ele que foi tratado de “impostor”, mesmo jazendo no túmulo (Mt. 27,
63). De fato, somos confrontados aqui com as conseqüências últimas da liberdade
da criatura feita à imagem de Deus. E vamos buscar nossas luzes num relato que
figura dentre as passagens mais estranhas do Evangelho: trata-se do
endemoninhado gadareno. O relato aparece três vezes no ano litúrgico, segundo
as três versões sinóticas. Mas em duas repassadas, esta leitura cai num domingo
(o 6o domingo após a Santa Cruz – Lc. 8; 27-39-38a perícope, e o 5o domingo
após o Pentecostes – Mt. 8; 28; 9, 1-28a perícope; o terceiro relato cai na
quinta-feira da 14a semana após o Pentecostes – Mc. 5; 1-20-19a perícope). É
uma história que é então bem conhecida, que oferece duas vezes por ano do quê
se falar aos pregadores. A interpretação patrística clássica que nos mostra
neste homem nu e possesso o povo dos Gentios – habitante em “sepulcros”, em
lugares desertos, “estéreis em virtude da alma, fugitivo da Lei, separado dos Profetas,
excluído da graça” (Santo Ambrósio – Tratado sobre o Evangelho de Lucas IV,
44-49; S.C no 45 bis, pp. 243- 246).
Este povo está libertado dos demônios e aos ídolos – e esta
interpretação mostra bem a ligação entre a figura dos “porcos” e a idolatria
(ibid. IV, 46; p. 244 – com a citação de Zacarias 13; 2). Cristo pede ao homem
liberto de retornar para junto dos seus (Mc. 5; 19) “ a fim de que se torne
Templo de Deus o que era sepulcro da alma”, segundo a bela expressão de Santo
Ambrósio de Milão. Numerosos relatos e parábolas evangélicas podem interpretar
em certos termos tanto judeus como gentios. Todavia, uma interpretação
espiritual deve poder ser desobstruída, pois a única significação histórica
peca por falta de atualidade: a passagem aos gentios é algo realizado na Igreja
desde a muitos séculos sem que com isso possamos afirmar que estes textos
perderam todo interesse. Remarquemos então, de passagem, a indiferença absoluta
para com a pessoa do possesso libertado, que fazem prova os gadarenos que
despediram Jesus. Ao verem o homem sentado aos pés de Jesus, não se alegram com
sua libertação, antes só, concebem o medo: seus rebanhos lhes estão mais
presentes ao espírito do que a vida de um homem. O mesmo para com o irmão mais
velhos da parábola do Filho Pródigo que não se alegra com o retorno de seu
irmão “que estava morto, e tornou à vida”, acerca o qual remarca seu pai (Lc.
15; 29-31), mas não faz nada mais do que lastimar o cordeiro cevado.
Não imitemos os gadarenos, mesmo em nossa interpretação. Desapeguemos de
nossos olhos este rebanho que se afoga, e coloquemos a questão: donde vem esta
demanda tão original dos espíritos imundos – e por que Jesus cede à suplicação
deles? Pois que não há nada para obedecer ai: Ele lhes ordena de saírem do homem,
o quê o fazem. E o único resultado desta permissão de Cristo é o fato de que
Sua predicação neste país é momentaneamente suspensa: os habitantes apavorados
só desejam uma única coisa: que Ele deixe os seus termos. Não passa de um
fracasso momentâneo, pois assim que Jesus parte, o homem liberto anunciará as
maravilhas feitas pelo Salvador. Parece-nos que detenhamos lá o motivo da
artimanha demoníaca: tudo o que querem é o interditar do resplendor da Palavra
divina – quer mesmo um instante. E o Senhor sabia que lá só havia uma artimanha
par afastá-Lo dum povo a iluminar. Portanto, Ele faz o quê os demônios
desejavam. Seguidamente, os acontecimentos se engrenaram como previstos pelos
espíritos impuros, até que não previssem que o Senhor reenviasse o homem que
lhes havia sido tomado, e que o país não permanecesse assim sem reconhecer um
eco da Revelação – os Anjos, não menos que o homem, não tinham o conhecimento
do porvir. Não é então paradoxal ver o Senhor concordar ao que Ele sabe bem não
passar de um desvio medíocre para se opor a Ele? E, portanto, não é sua
constante atitude para com o homem? Parece que vemos lá este paradoxo supremo:
o mal tal como ele aparece em sua personificação demoníaca é um defeito de ser
que se nutre todavia das Energias divinas, desviando-as de seu verdadeiro
objetivo. Tal como o visco sobre um ramo de árvore, que se alimenta de sua
seiva enfraquecendo-a, o mal é um parasita que, como certos vírus, é incapaz de
se estender sem se nutrir da substância do ser vivente, fazendo-o finalmente
morrer. O respeito absoluto da liberdade da criatura se estende até os
incorporais, compreendendo os demônios. E necessário é que este respeito divino
seja incondicional para ir até permitir que tomemos Seu próprio bem, a fim de o
fazer servir ao inverso daquilo para o qual fora feito. Pois Deus é a única
Fonte de todo ser. Os demônios são seres contraditórios por definição, posto
que tiram sua subsistência da própria fonte que renegam. Esta contradição
aparece em todos os aspectos do mal: Em realidade, existe uma mistura na
natureza do mal: suas profundezas são receptoras da perdição, como uma cilada
oculta, mas a superfície é duvidosa, pois que oferece de alguma forma as
aparências do bem. (São Gregório de Nissa. La Création de l ́homme. (DDB 1982,
p. 114).
Também assim contraditório é o “insensato que disse em seu coração: não
há Deus” (Sl. 13;1). São Gregório de Nissa, em seu Tratado sobre a alma e a
Ressurreição, sublinha bem este paradoxo:
Nada é exterior a Deus, com exceção do mal que, mesmo parecendo estranho
dizer, possui uma existência, mesmo não existindo absolutamente. Pois que não
existe outra origem do mal além da negação do que existe, enquanto o que existe
realmente forma a substância de Deus.
E ele prossegue: Todo mal se caracteriza pela privação do bem, ele não
tem existência própria, não podemos considerá-lo como uma realidade. (São
Gregório de Nissa. Catéchèse de la Foi. DDB 1978, p.40).
E São Gregório prossegue com uma de sua bela fórmula: “O quê não tem
realidade não é obra d ́Aquele que criou a realidade”.
O mal deve ser considerado como a privação do bem, da mesma maneira que
uma sombra que acompanha progressivamente o retirar-se da luz (Cat. p.37)
Como Deus pode aceitar que o Pródigo Lhe peça sua parte da herança como
se Ele estivesse morto – Ele que é a Fonte da Vida? (Lc. 15, 11). Como que o
Pai amante pode concordar com fuga de seu filho bem- amado, e a dispersão do
tesouro acumulado? Seria Ele, contra a criatura livre que O recusa pelo próprio
sopro que Ele dá, como um pai irresponsável que dá dinheiro ao seu filho para
que ele se alimente e vista-se, enquanto ele o dispensa para se drogar e
morrer? Nós chegamos lá no irrevogável decreto divino que dedica o homem à
liberdade e que por ai mesmo, da divina imagem, a parte integrante de nosso ser
constitutivo. Deus diz à Sua criatura: “vive, eu te fiz multiplicar como o
renovo do campo” (Ez. 16: 6). Ele orna a nossa natureza de enfeites da glória
criada (Ez. 16: 11-12). Ele nos põe com um Querubim protetor, sobre sua
montanha santa (Ez. 28; 12-15), “até que se ache iniqüidade em ti”, diz o
Profeta. E são estes ornamentos do esplendor de nossa natureza, é a vestimenta
da Misericórdia divina para conosco, é o óleo de Sua compaixão e o mel de Sua
doçura que havemos dilapidado (Ez. 16; 17-19), pois que não podemos manchar e
desperdiçar somente os Dons que Deus nos concedeu. Como que Ele o permite?
Seria necessário inverter a questão: O que Ele não permite, Ele que permitiu
que Seu Filho fosse pregado sobre a Cruz! Não é, decerto, porque não poderia
conceber ou compreender o mal, mas antes porque não queria ver uma criatura
livre, a única que pudesse ser um parceiro digno d ́Ele. Mesmo se Job Lhe
clamasse em face: “Pereça o dia em que nasci” (Jb. 3; 3), Deus testemunha que
em sua liberdade, ele falou bem d ́Ele ( Jb. 42; 7). Ele nos deixa contemplar
agora a profundeza de seu rebaixamento em virtude de nós, única resposta ao
nosso sofrimento: “Porque não temos um Sumo-Sacerdote que não possa
compadecer-se das nossas fraquezas” (Hb. 4; 15), “porque naquilo que ele mesmo,
sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados” (Hb. 2; 18).
Existem grandes e belos estudos sobre a Kenosis do Verbo. Sabemos até que
extremo o Senhor consentiu em Se humilhar. E esta humilhação faz o objeto de
nosso maravilhar-se e de nossa alegria. A Liturgia medita longamente acerca do
aprisionamento do intangível, os laços d ́Aquele que desliga o homem da
maldição sobre a Cruz d ́Aquele que suspende a terra sobre as águas (cf.
Theotokion das Vésperas de sexta-feira Santa, p. ex.). O Senhor limita a glória
de Sua Divindade à medida de energias da natureza humana. Quando esta fica
exangue, a glória de Sua Divindade se reduz a tal ponto que o Cristo, em Sua
agonia, não discerne mais Sua comunhão com Seu Pai (Mc. 15; 34), e que a
Criação se inquieta, vendo quase que secas as fontes de seu ser, posto que ela
só subsiste pela constante ação criadora de Deus, que a sustêm acima do abismo
do não-ser. O céu se obscurece (Mt. 27, 45-51), a terra treme e os rochedos se
fendem. Tal é a Kenosis que o Verbo conheceu por Ele-Próprio. Mas como que o
Senhor viveu Seu rebaixamento para com as criaturas que Ele honra de Sua
imagem? Ele o fez, imitando o exercício de Seu poder, a fim de deixar o espaço
necessário à nossa liberdade. Como diz São Gregório de Nissa:
Nosso Criador fez dom à Sua obra duma graça toda divina, colocando em
sua imagem a semelhança de suas próprias belezas (Créat. p.610).
E ele prossegue: Se a Divindade é o conteúdo de todos os Bens, e se o
homem é à Sua imagem. É então desta plenitude que a Imagem encontrará sua
semelhança com o modelo. Existe, logo então, em todos nós, toda sorte de bem,
assim como toda virtude, toda sabedoria, e tudo quê podemos conceber de melhor
dentre todos estes bens, existe a liberdade. (Créat. p. 97).
“Assim, o reflexo das inefáveis qualidades da Divindade resplandece nos
estreitos limites de nossa Natureza”, prossegue em seu Tratado sobre a alma e a
ressurreição. São Basílio havia precisado a distinção entre Natureza e Pessoas,
vendo na primeira o que existe de comum, e nas últimas o que elas comportam de
particular:
Se nos é necessário exprimir brevemente nosso sentimento, diremos que a
ligação que existe entre o comum e o particular é o mesmo que aquela que existe
entre a substância e a hypostase. Cada um de nós participa ao ser pelo
princípio comum da substância, e ele é tal ou tal pelos seus caracteres
próprios. O mesmo aqui acontece para o princípio da substância que é comum,
como a bondade, a divindade e todos os outros atributos que podemos imaginar;
mas a hypostase é considerada o caráter próprio da paternidade, ou da filiação,
ou do poder santificador. Carta CCXIV de São Basílio ao Conde Terêncio. Belles
Lettres 1961 T II, p. 205.
São Gregório de Nissa irá mais longe, e discernirá na Pessoa, não
somente o “próprio” duma Natureza, mas também o fato de que ela é um ser livre
e que se determina ele-próprio. A liberdade é desta forma o traço mais
característico, na Pessoa humana, da semelhança divina – positivamente – enquanto
que negativamente, a diferença se faz remarcar no caráter que movedor da
criatura, contrastando com a imutabilidade da Divindade enquanto que imortal em
ato. A criatura guarda assim, sempre, a marca contingente de sua passagem do
nada ao ser.
Aquele que tem a livre disposição de todas as coisas, levando até o
extremo o seu respeito para com o homem, permitiu que tivéssemos nós também
nosso domínio próprio, do qual cada um seria o único mestre: é a vontade,
faculdade que ignora a escravidão, que é livre e fundada sobre a independência
de nossa razão. (Catéch. P. 80).
Decerto, São Gregório de Nissa não evita sempre o perigo de não ver a
imagem divina residente somente nas faculdades superiores, sede de nossa
liberdade: Todas as condições particulares da criação irracional são misturadas
com a parte intelectual de nossa alma (...) todas – a faculdade de razão e de
pensamento. Ela somente, que é o produto de escolha de toda a nossa vida, traz
a marca do selo divino. (De Anima et Resurr.)
Pela faculdade (especulativa, crítica e examinadora do mundo) a alma
preserva a imagem da graça divina. Também nossa razão pode supor que a
Divindade ela-mesma – o tato que ela possa ser em sua Natureza interior – é
manifestada nisto mesmo: o controle do Universo e o discernimento crítico entre
o bem e o mal. (Ibid).
Neste domínio, preferimos a visão mais bíblica de Santo Irineu, que vê o
homem todo inteiro revestido da Imagem de Deus:
Deus será glorificado na obra por Ele modelada, quando Ele tiver tornado
conforme e semelhante ao Seu Filho pois, pelas mãos do Pai, quer dizer pelo
Filho e o Espírito, é o homem, e não uma parte do homem, que torna-se à imagem
e à semelhança de Deus. Ora, a alma e o Espírito podem ser uma parte do homem,
mas não o homem: o homem perfeito, é a mistura e a união da alma que recebeu o
Espírito do Pai e que fora misturada à carne modelada segundo a Imagem de Deus.
(Adv. Haer. V, 6, 1).
O ponto de vista de Irineu deve ser guardado ao espírito para não mais
tender a um intelectualismo e uma repugnância para com a matéria que permanecem
sempre estranhas ao Cristianismo. Pois que é a Fé daqueles que crêem na
santificação da matéria, que dele se servem como que de um fermento para
crescerem em santidade, uma vez a matéria tornada transparente às Energias
divinas. É a Fé daqueles que dizem com São João Damasceno, em sua Defesa dos
Ícones: “Assim como o Verbo tornou-Se carne sem mudança, permanecendo o que Ele
era outrora, assim a carne tornou-se Verbo, sem deixar o que ela era” (Trad.
Ponsoye, p.221). É a Fé de São Gregório de Nissa que afirma que:
A estrutura do corpo tem em todas as suas partes a mesma importância, e
nada ao que contribui à organização da vida pode ser acusado de ser desprezível
ou defeituoso. (Cat. p.77.)
O jogo de nossa liberdade que, criada como uma pura potencialidade de
desenvolvimento e de crescimento na luz de Deus, encontrou-se restaurada na
posição duma simples escolha entre o bem e o mal, pode dar uma resposta
aceitável à questão da existência do que convém chamarmos de “mal moral”:
Não existe caso onde a aparição do mal tenha tido seu princípio na
Vontade divina; posto que o mal escaparia à censura se ele pudesse reclamar de
Deus como de seu Criador e seu autor. É no interior que o mal nasce; é a livre
escolha que lhe dá sua consistência, cada vez que a alma se afasta do bem.
(Cat. p. 33-34).
No entanto, nossa reflexão não se adentrou suficientemente para atingir
a grande e redutível questão da morte. No-la conhecemos como sendo o “salário
do pecado”, segundo São Paulo (Rm. 6; 23), e sabemos que ela fora introduzida
no mundo pela “inveja do Diabo”, de acordo com a expressão do Livro da
Sabedoria (Sb. 2; 24), o que mostra ser uma questão que ultrapassa a esfera do
universo humano. De outra parte, devemos reconhecer a morte como a lei
fundamental à qual o mundo obedece, por tão longe que as investigações humanas
se aventurem. Não existe absolutamente questão, em nosso universo, de lugar
algum que possa estar ao abrigo da morte corporal. Enfim, não nos é permitido
rejeitar as origens de nossa criação no empírico de uma “meta-história”. O
tempo é, em efeito, o modo segundo o qual a criação se realiza e se desabrocha
no universo criado. Este último não fora engrenado pela moção inicial de um
“relógio eterno”; a todo instante, o cosmos é sustentado no ser por uma criação
contínua, e é esta mesma que constitui a trama do tempo. Uma meta-temporalidade
inicial suporia em conseqüência uma meta-criação, a qual não tem traço algum na
Revelação divina. Seria, aliás, extremamente perigoso para o caráter histórico
da Fé cristã, baseada sobre acontecimentos concretos, de rejeitar as origens do
homem no tempo inteligível dum universo gnóstico. Encontramo-nos aparentemente
diante de uma grande dificuldade para conciliar estes dados com uma apresentação
coerente da posição da Fé cristã diante do fenômeno da morte. Ora a coerência
neste domínio é duma importância essencial. Todos os grandes movimentos de
pensamento deram uma resposta a esta questão. Os sistemas materialistas vêem ai
uma sombra necessária, chamada a desaparecer na medida em que for satisfeito o
“homo oeconomicus” – ou à medida do acontecimento de uma sociedade igualitária
– segundo as escolas. Os pensamentos do extremo-oriente a consideram como um
dos aspectos da ilusão deste mundo, o qual deve-se ultimamente se deparar.
Grande parte do Cristianismo renunciou aparentemente responder a esta questão,
e tomou a morte por uma evidência deste mundo, chamada a desaparecer com ele.
Em que quer que seja, o olhar parou na Sexta-feira Santa, e não mais vimos no
Cristianismo, essencialmente, a Fé na ressurreição, vitória e a passagem da
morte à vida, mas simplesmente um sistema de compensação dos pecados pessoais
pelos méritos adquiridos pelo sofrimento – e em particular pelo Cristo-Sofredor.
A morte não é mais considerada como a conseqüência e o resultado do pecado,
enquanto que a ressurreição torna-se uma simples ilustração do poder do Deus
feito homem. Duma parte, a morte tornou-se uma evidência que ninguém não
contesta, e de outra parte, toda a religião focalizou-se sobre o apagar do
pecado. A solidariedade entre morte e pecado foi perdida de vista, de sorte que
o pecado não poderia mais ser uma falta moral. Ora não é este ao menos o ponto
de vista do Cristianismo original.
Faremos nosso este grito do rei dos Amalequitas arrastado diante de
Samuel, e vendo seu fim: “Verdadeiramente, a morte é amarga!” (I Sam. 15; 32).
Como poderíamos nos resignar diante daquilo que é o escândalo maior da condição
humana? Se a Fé cristã não tem resposta nenhuma a dar a isto, como pode ela
pretender possuir a plenitude da verdade? Decerto, podemos aportar a resposta
do segundo dos sete Irmãos Macabeus, que desde antes de Cristo, testemunha de
sua fé na Ressurreição: “O Rei do mundo nos ressuscitará para uma vida eterna”
(II Mac. 7; 9). Sua esperança foi plenamente confirmada pelo Túmulo vazio. Mas
isto não responde ainda à questão da proveniência da morte. Santo Atanásio
medita acerca da transgressão com mandamento dado no Paraíso:
Deus fez o homem e queira que ele permanecesse na incorruptibilidade.
Todavia, os homens, ao tornarem-se negligentes e ao se desviarem da
contemplação de Deus, concebendo e imaginando para eles próprios o mal, (...)
receberam a sentença de morte, e não permaneceram mais o que até então haviam
começado a serem; mas se corromperam na vontade de seus pensamentos e da morte
estabeleceu sobre eles seu império. (Saint
Athanase. Sur l ́Incarnation du Verbe. 4; 4. S.C. 199, p. 277.)
Assim, o poder da morte crescia e a corrupção persistia ao encontro dos
homens; o gênero humano se perdia; o homem racional, criado segundo a imagem,
desaparecia e a obra, suscitada por Deus, se destruía. (Ibid. 6; 1, p. 283.)
Santo Atanásio nos descreve assim, de maneira perceptível, a morte que
toma possessão da humanidade, e que se estende como uma lepra, espalhando-se
por toda parte a corrupção, e dissolvendo progressivamente a semelhança que era
a nossa. É o Verbo que a restaura, nos restitui o Modelo outrora perdido:
Quando uma figura traçada sobre a madeira é apagada em virtude das
manchas do exterior, precisamos daquele que nos serve de figura para renovarmos
a imagem sobre esta mesma matéria. Pois que não rejeitamos a figura nem a
própria matéria, sobre a qual ela fora traçada, mas antes a reproduzimos sobre
ela. Da mesma maneira, o Filho santíssimo do Pai, sendo a Imagem do Pai, veio
nestas regiões, a fim de renovar o homem feito segundo Ele e reencontrá-lo,
posto que havia se perdido. ( Ibid. 14; 1-2. p. 315).
Será isto somente uma piedosa metáfora? Ou corresponde a uma mui
profunda realidade? Para que compreendamos isto, tomemos a imagem
contemporânea, que os Padres não tinham, decerto, a disposição: suponhamos uma
nave espacial retornando de um planeta, e que traz involuntariamente com ele um
bacilo até então desconhecido na Terra. Certamente, após a atrelagem desta
nave, este micróbio se disseminará e se multiplicará tão rapidamente dentre a
raça humana, que esta não terá anti-corpo algum capaz de se lhe opor: o
organismo humano não é feito para lutar contra esta doença nova. E ainda, não
haverá razão alguma de imputar a Deus a conseqüência trágica desta imprudência
humana. Ora, podemos pensar que o mesmo acontece para a morte. O homem não fora
criado para a morte, e a Igreja testemunha pelo Cânone CIX de Cartago, que
condena aquele que afirma que Adão teria sido criado mortal. Sentimos, aliás, a
morte como algo de totalmente estrangeiro à nossa natureza, donde nossa dor
quando ela toca nossos próximos, e o terror instintivo de nossa carne quando
ela se encontra em sua presença – tal como um cavalo afobado pelo abismo que
pressente sob seus passos. Criado “para imortalidade” (Sb. 2; 23), o homem se
põe em contato com a morte que não lhe havia sido destinada. O fato de que o homem
é à imagem de Deus dá ao homem um valor infinito, e faz com que ele recapitule
nele o Universo inteiro, sendo dele próprio um micro- cosmos. As criaturas
animais e vegetais não são feitas à imagem, e não têm, por isso, este infinito
valor pessoal. É um escândalo que o homem morra, pois que com ele morre um
Universo inteiro. A morte de uma árvore ou de um animal não tem esta dimensão
escandalosa, pois somente a extinção de uma espécie empobrece realmente a
criação – como podemos ver nos dias de hoje. A morte é assim um mecanismo
legítimo de transmissão no tempo de uma espécie que não fora criada à Imagem. O
homem à imagem, em contrapartida, possui tal valor, que aos olhos de Deus, ele
equivale a um Universo. Donde esta palavra notória de São João da Cruz: “Um
pensamento do homem vale mais do que o Universo inteiro – donde vem que Deus só
seja digno” (Máxima 166). O que se passou? Eis que o homem ignorou seu valor
eminente; ele negligenciou o Sacerdócio que ele estava encarregado de exercer
sobre o mundo; ele esquece sua dignidade de Pessoa, e se restaurou o título de
espécie. É a ignorância, o esquecimento e a negligência que Marcos o Monge
denuncia, em efeito, como os gigantes do pecado:
O quê consideramos como os poderes gigantes do Malvado (...) são a ignorância,
a mãe de todos os males, o esquecimento, sua irmã, sua associada e sua
auxiliar, a negligência, que tece na alma uma veste e um véu tenebroso de
nuvens negras; ela consolida e fortifica as duas outras, as fornece
consistência introduzindo o mal no estado endêmico e enraizando-o na alma
particularmente despreocupada. O resto das paixões cresce e se fortifica graças
à negligência, o esquecimento e a ignorância. Elas se apóiam mutuamente e não
podem subsistir umas sem as outras. O poder das forças inimigas se manifesta
por elas, assim como o vigor dos Príncipes do Mal; por elas toda a armada dos
espíritos de malícia se insinua, se consolida e pode realizar seus desígnios,
mas sem elas não pode se manter. (Marc le Moine. A. Nicolas. § 12, Bellefontaine
no 41, p.147).
Desta maneira, o homem se põe em contato com as espécies e começa a
viver segundo seu modo. Do estado de pessoa investida na Natureza, na qual ele
existe sem separação nem confusão, ele decai ao estado de indivíduo, membro de
uma espécie, amadurecido em seu isolamento, e perseguindo desesperadamente uma
inacessível fusão no conjunto. Do modo de existência da pessoa, que é o
crescimento sem fim na imortalidade, ele cai no modo de existência da espécie,
que é a multiplicação segundo a carne no seio da morte. Por este contato, o
homem é infectado pela morte, que o invade e o contamina. Desta maneira, a
condição mortal, semelhante àquela dos seres privados de razão, fora aplicado
segundo um plano providencial à Natureza que, ela havia sido criada para a
imortalidade. Ela a reganha exteriormente mas não atinge o interior. Ela
intercepta a parte sensível do homem, mas não toca à Imagem divina,
ela-própria.
Eis que então a parte de nós mesmos que não serve para mais nada por ter
acolhido o elemento contrário, se desagrega. (Cat. p. 42-43).
Assim nosso corpo retorna aos seus elementos primários, e nós devemos
passar pela morte.
É um retorno contra natureza: perdendo a marca do Bem, o homem torna-se
a imagem do animal, o que se supõe um transtorno total de sua natureza, como
que se a razão se pusesse a cultivar os princípios das paixões, que ele queria
fazer crescer em abundância (Créat. p. 106).
O tumor se implanta assim na vida do homem, e tornar-se-á necessário
nada menos do que a Redenção em Cristo para o erguer, e nos restaurar em uma
vida nova. Podemos, então, afirmar agora que Deus não criou a morte para o
homem à Sua Imagem.
Mas, no entanto, podemos pensar que a morte faz parte do modo de
subsistência das espécies inferiores ao homem, na hierarquia das criaturas.
Neste título, sua presença é legítima, e pode ter sido querida por Deus em sua
criação. Era somente necessário que o homem não se pusesse em contato
inconsideradamente com uma realidade que deveria lhe permanecer estrangeira. A
morte estendeu seu Império sobre um território que não lhe fora destinado pela
Providência divina. Mas tudo ainda não está dito; o Senhor não fora vencido
pela nossa queda e nossa negligência. Mas pelo contrário, Ele fez da própria
morte um dos componentes de nossa Salvação: pela morte, Ele venceu a morte. Ela
é semelhante a uma água, que por vezes é aquela em que nos afogamos, e esta
torrente vivificante do Batismo na qual havemos encontrado a vida. São Macário
nos diz, em uma belíssima imagem:
Um homem é engolido pelas águas no meio de um rio subindo sua maré, que
jaz morto, afogado, rodeado de bestas ferozes e apavorantes. (...) Quem poderá
descer nas regiões longínquas, nas profundezas do inferno e da morte, além do
Artesão que formou o corpo? Ele penetra num e noutro local, nos abismos do
inferno e nas profundezas do coração humano, onde a alma estava retida cativa
pela morte, com seus pensamentos; Ele traz Adão morto do abismo tenebroso, e a
própria morte, pelo seu prodígio, torna-se uma ajuda para o homem, como a água
para o que nada. (Saint Macaire. Homélies spirituelles. Bellefontaine no 40.
11e hom. P. 163).
A vitória nos é adquirida: Cristo nos trouxe sobre a outra borda. O mal,
tal como uma serpente cortada, ainda agitada de alguns sobressaltos da vida:
podemos vê-la, atingida pelo golpe mortal, confusa ainda de seus cacos da vida
humana. (St. Grégoire de Nysse. Catéchèse, p. 79).
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