A Trindade: Escrituras e Padres Gregos
BRECK John
tradução de Gabriel Tossato
Cerca
de 30 anos atrás, Karl Rahner afirmou que a maioria dos cristãos são “meros
monoteístas”, e que se provada falsa a doutrina da Trindade, a maior parte da
literatura cristã popular e a mentalidade que ela reflete não precisariam ser
alteradas. E infelizmente isso ainda é amplamente verdade.
Definir
a doutrina da Trindade como um mistério que não pode ser compreendido
exclusivamente pela razão humana, nos convida a uma posição como a de
Melâncton: “Nós adoramos os mistérios da Divindade, e isto é melhor do que
investigá-los.” Mas o perigo de não refletir cuidadosamente sobre o que foi
revelado, como foi revelado, é que continuamos cegos por nossos próprios deuses
e falsos ídolos, embora construídos teologicamente.
Então,
como podem os cristãos acreditar e adorar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e
ainda afirmar que existe apenas um Deus, não três? Como se pode reconciliar o
monoteísmo com a fé trinitária?
Meus
comentários aqui seguem a estrutura da revelação conforme apresentada nas
Escrituras e refletida pelos Padres Gregos do IV século, a era dos debates
trinitários. Para evitar a confusão em que as explicações frequentemente caem,
é necessário distinguir entre: o único Deus; a única substância comum ao Pai,
Filho e Espírito Santo; e a unicidade desses três.
O
Pai sozinho é o único Deus verdadeiro. Isto mantém a estrutura da linguagem do
Novo Testamento sobre Deus, onde com apenas algumas exceções, a palavra “Deus”
(theos) com um artigo (e assim sendo, em grego, como um nome próprio) só é
aplicado a aquele a quem Jesus chama de Pai, o Deus mencionado nas escrituras.
Este mesmo fato é preservado em todos os credos antigos, que começam: “Creio em
um Deus, Pai …”
“Para
nós há um só Deus, o Pai… e um só Senhor Jesus Cristo” (1 Cor 8, 6). A
proclamação da divindade de Jesus Cristo não é feita tanto por descrevê-lo como
“Deus” (theos usado, em grego, sem um artigo é como um predicado, e assim pode
ser usado para criaturas; conferir João 10,34-35); mas reconhecendo-o como “Senhor” (Kyrios).
Além de ser um título comum (“senhor”), essa palavra veio a ser usada, na fala,
pelo nome impronunciável e divino de Deus, YHWH. Quando São Paulo declara que
Deus concedeu ao Cristo crucificado e ressuscitado o “nome acima de todo nome”
(Fp 2, 9), esta é uma afirmação de que este é tudo o que YHWH é, sem ser YHWH.
Isto é novamente afirmado nos credos: “E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho
de Deus… Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.”
De acordo com o credo de Nicéia, o Filho é “consubstancial ao
Pai”. Santo Atanásio, o Padre que mais do que qualquer outra pessoa forjou a
Ortodoxia nicena, indica que “tudo o que é dito sobre o Pai, é dito também nas
Escrituras sobre o Filho, exceto o fato d’Ele ser chamado de Pai”(Sobre os
Sínodos, 49). É importante notar quão respeitosa é essa teologia da alteridade
total de Deus em comparação com a criação: tais doutrinas são reguladoras de nossa
linguagem teológica, e não uma redução de Deus a um ser ao lado de outros
seres. Também é importante notar a essencial assimetria da relação entre o Pai
e o Filho: o Filho deriva do Pai; Ele é, como o Credo Niceno colocou, “da
essência do Pai” - eles não derivam de uma fonte comum, e isso é o que
geralmente é chamado de Monarquia do Pai.
Santo Atanásio também começou a aplicar o mesmo argumento usado
para defender a divindade do Filho em defesa da divindade do Espírito Santo:
assim como o próprio Filho deve ser totalmente divino para nos salvar, pois
somente Deus pode salvar, assim também deve o Espírito Santo ser divino para
dar vida àqueles que estão na morte. Novamente, há uma assimetria, que também
remonta à Escritura: recebemos o Espírito d'Aquele que ressuscitou Jesus como o
Espírito de Cristo, que nos capacita a
invocar Deus como “Abba”. Embora recebamos o Espírito por meio de Cristo, o
Espírito procede apenas do Pai, mas isso já implica a existência do Filho e,
portanto, o Espírito procede do Pai já em relação ao Filho (veja especialmente
São Gregório de Nissa, Para Ablábio: Que Não Há Três Deuses).
Então há um Deus e Pai, um Senhor Jesus Cristo, e um Espírito
Santo, três “pessoas” (hipostases) que são as mesmas ou una em essência
(ousia); três pessoas igualmente Deus, possuindo as mesmas propriedades
naturais, e ainda realmente Deus, possuindo as mesmas propriedades naturais,
mas realmente distintas, conhecidas por suas características pessoais. Além de
ser um em essência, essas três pessoas também existem na total unicidade.
Existem
três características nas quais essa unidade é descrita pelos Padres Gregos. A
primeira é em termos de comunhão: “A unidade [dos três] está na comunhão da
divindade”, como afirma São Basílio, o Grande (Sobre o Espírito Santo, 45). A
ênfase aqui, na comunhão, atua como uma salvaguarda contra qualquer tendência
de ver as três pessoas como simples manifestações diferentes da natureza única;
pois caso fossem simplesmente modos diferentes nos quais o único Deus aparece,
então tal ato de comunhão não seria possível. A maneira semelhante de expressar
a unidade divina é em termos de “coe- lherência” (pericoresis): o Pai, o Filho
e o Espírito Santo residem uns nos outros, totalmente transparentes e
interpenetrados pelos outros dois, esta ideia decorre claramente das palavras
de Cristo no Evangelho de João: “Eu estou no Pai e o Pai em mim” (14,11). Tendo
o Pai habitado n’ Ele deste modo, Cristo nos revela o Pai, Ele é “a imagem do
Deus invisível” (Cl. 1,15).
A
terceira maneira pela qual a unidade total do Pai, do Filho e do Espírito Santo
se manifesta é na unidade da atividade (energeia) d’ Eles. Ao contrário de três
seres humanos que, na melhor das hipóteses, só podem cooperar, a atividade do
Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só. Deus opera, segundo a imagem de
Santo Irineu, com Suas duas mãos: o Filho e o Espírito. E mais importante, “a
obra de Deus”, de acordo com Santo Irineu, “é a forma do homem” à imagem e
semelhança de Deus. (Contra os hereges 5, 15.2), uma obra que abrange,
inseparavelmente, tanto a criação como a salvação, pois só é realizada no e
pelo Crucificado e Ressuscitado: a vontade do Pai é efetuada pelo Filho no
Espírito.
Assim
é que os Padres Gregos, seguindo as Escrituras, sustentaram a existência de
apenas um Deus, cujo Filho e Espírito são igualmente Deus, em uma unidade de
essência e de existência, sem comprometer a singularidade do único Deus
verdadeiro.
A
questão permanece, naturalmente, sobre o ponto de tal reflexão. Existem duas
direções para responder a pergunta. A reflexão teológica é, para começar, uma
tentativa de responder à questão central colocada pelo próprio Cristo: “Quem
você diz que eu sou?” (Mt 16,15). No entanto, ao mesmo tempo, indica também o
destino para o qual também somos chamados, o destino glorioso daqueles que
sofrem com Cristo, que foram “conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Ele
seja o primogênito entre muitos irmãos.”(Rom 8,29). O que Cristo é como Primogênito,
nós também podemos desfrutar n’ Ele, quando também entramos na comunhão de
amor: “A glória que Me foi dada, Eu lhes dei, para que eles sejam um como somos
um”(João 17,22).
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