O mistério do Filho do homem


MIEN Aleksandr
extaído do livro Jesus de Nazaré, editora Record


Na esperança de que, talvez, as emoções do povo a Seu respeito logo se acalmassem, Jesus abandonou os confins da terra de Israel por algum tempo e Se refugiou na vizinha Fenícia, onde procurou manter-Se incógnito. Naqueles dias, a Sua pregação silenciou: à Sua volta, só havia pagãos, cuja hora ainda não havia chegado ¹. Depois, desceu dali e tomou a direção sudeste a caminho de Decápolis, voltando só mais tarde à tetrarquia de Filipe. Mas a multidão, embora bem menos numerosa, já O esperava nas proximidades de Betsaida, e Jesus teve de Se esconder novamente. Desta vez, refugiou-Se em Golã, e depois foi mais longe, subindo na direção do Alto Jordão.


O Seu caminho passava aos pés da montanha Hermon, coroada de neve, e atravessava a periferia da cidade de Cesaréia que Filipe assim batizara em honra de César Augusto.


Os Apóstolos O seguiam conformados, apesar de não conseguirem entender por que o Mestre não tirava partido do entusiasmo dos galileus. Mesmo assim, vagando pelas estradas além do Jordão, eles tiveram tempo de sobra para refletir sobre os acontecimentos dos últimos meses e de reforçar a decisão tomada de jamais abandonar o seu Senhor. Eles intuíam que o Messias esperava deles uma conversa franca, pois já chegara o momento de definirem claramente o seu relacionamento com Ele. Assim, um dia, depois de ter rezado na solidão, Jesus dirigiu aos doze uma pergunta:


- Quem o povo acha que sou?


- Uns pensam que és João – responderam-lhe - ; outros dizem que és Elias; outros, Jeremias ou algum dos profetas...


- E vós, o que achais? Quem sou Eu, na vossa opinião? Jamais até então o Mestre pedira aos Discípulos um reconhecimento tão aberto. Mas daquela vez, Suas palavras não os pegaram desprovidos e Simão respondeu em nome de todos:


- És o enviado, o Messias, o Filho do Deus Vivo.


- Feliz és tu, Simão, filho de Jonas! – exclamou solenemente Jesus. – Feliz, porque não entendeste isto por ti, não foram o sangue nem a carne que te fizeram entender isto, mas foi Meu Pai que está nos céus que te revelou. E agora Eu te digo: Tu és “Pedra”, assim te chamarei, porque sobre esta pedra construirei a Minha comunidade, e as forças dos infernos não conseguirão destruí-las. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus. Portanto, tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus.


Estas palavras sobre a Igreja eram, num certo sentido, a resposta à mudança que ocorrera na consciência dos doze. Alguns Apóstolos já haviam chamado anteriormente Jesus “Messias”, mas na ocasião eles ainda estavam sob a influência de uma falsa imagem do Messias. Desta vez, porém, era muito diferente; desta vez, eles sabiam bem que Jesus não aspirava de modo algum ao poder terreno, que Ele vagava como um exilado em terra estrangeira...E, no entanto, aqueles doze homens, conscientes de tudo isso, tinham a coragem e a fé de ver Nele o Cristo, o Filho de Deus. Mesmo se naquele instante Simão ainda não fosse capaz de entender a fundo o que significavam as suas próprias palavras, a partir de então aquela sua declaração se tornaria também o símbolo da fé, o “Credo” de toda Igreja da Nova Aliança.


A pergunta de Jesus “Quem o povo acha que Eu sou?” ressoa ainda hoje. Também hoje, como há dois mil anos, muitos vêem em Jesus de Nazareth só um profeta ou um mestre defensor de uma doutrina moral, e se perguntam por que milhões de pessoas reconheceram precisamente Nele, e não em Isaías ou em Moisés, o “Filho da mesma natureza do Pai”.


Em que consiste de fato a atração exclusiva exercida por Jesus? Apenas na Sua doutrina moral? Mas Buda, Jeremias, Sócrates, Sêneca também propunham uma ética elevada. Portanto, como o Cristianismo poderia ultrapassar tanto assim estas doutrinas “concorrentes”? Além disso – e isto é o mais importante – o Evangelho em nada se assemelha a uma simples pregação moralizadora.


Com esta pergunta, penetramos em um campo que toca o que de mais misterioso e difícil existente na Nova Aliança. Aqui se escancara de improviso diante de nós o abismo que separa o Filho do Homem dos filósofos, moralistas e fundadores de religiões de todas as épocas.


Ainda que a vida de Jesus não diferenciasse muito da vida de vários profetas, o que Ele declarou sobre Si nos impede de colocá-Lo no mesmo patamar dos outros mestres da humanidade. Todos se professavam simples mortais, homens como os outros que, em certo momento, conheceram a verdade e se sentiram chamados a anunciá-la; isto é, viam claramente a distância que os separava do Ser Supremo ². E Jesus? Quando Filipe Lhe pediu timidamente que lhe mostrasse o Pai, Jesus respondeu com palavra que nem Moisés, nem Confúcio, nem Platão jamais poderiam proferir: “Há quanto tempo estou convosco, e ainda não me conheces, Filipe? ... Quem Me vê, viu o Pai”. Com tranquila convicção, este mestre, absolutamente avesso à mentira e à exaltação, proclamou-Se Filho Unigênito de Deus; Ele não falava mais, como os profetas, em nome do Ser Supremo, falava como o próprio Ser Supremo.


Portanto, não é de admirar que Cristo continue ainda hoje um mistério incompreensível para tantas pessoas. É até possível entender aqueles que procuravam ver Nele um mito, embora em nossos dias se possam julgar superadas tais tentativas. Na realidade, é difícil imaginar que em Israel um homem tivesse a ousadia de afirmar: “Eu e o Pai somos um”. Ao contrário, é decididamente mais fácil supor que os gregos e os sírios tenham tramado a lenda do Filho de Deus recorrendo a vagas crenças orientais, pois os pagãos acreditavam que às vezes os deuses assumiam aparências humanas e vinham visitar os mortais na terra. Mas Jesus pregou em uma sociedade em que ninguém levava a sério mitos deste gênero, onde todos sabiam que a divindade é infinitamente superior ao ser humano. Para chegar a esta verdade, o povo eleito pagara um preço alto demais, lutara muito tempo contra o paganismo para poder inventar depois um profeta que dizia: “Eu estou no Pai e o Pai está em Mim”... Tentou-se até uma explicação envolvendo o Apóstolo Paulo, a quem se creditaria a invenção do dogma da encarnação. Mas o “Apóstolo das nações” era judeu até “o último fio de cabelo” e, se dependesse dele, jamais conceberia a idéia de um homem-Deus...


Todavia, o paradoxo de Jesus de Nazareth reside justamente no fato de Ele ser inverossímil e, ao mesmo tempo, ser uma realidade histórica. Em vão a racionalidade insípida, a pobre lógica euclidiana, insiste em seu ministério. Alguém perguntou uma vez a Theodor Mommsen³ por que ele não mencionava Cristo em seus trabalhos. O célebre conhecedor da Antiguidade Clássica responde: “Não consigo entender o Cristo, por isso prefiro não falar Dele”. Espinosa, embora não sendo cristão, reconhecia que a Sabedoria divina “manifestou-se de modo absoluto através de Jesus Cristo” (Correspondência, carta 73). Napoleão, que durante o exílio refletiu longamente sobre os percursos da história, declarou no fim da vida: “Cristo quer do homem o amor, e isso significa que Ele quer aquilo que só se pode receber do mundo com enorme esforço, aquilo que inutilmente o sábio exige de poucos amigos, o pai dos próprios filhos, a mãe, do próprio marido, o irmão, do irmão... Isto é Cristo quer o coração do homem, quer para si, e obtém isso de modo absolutamente ilimitado. Só Ele pode elevar ao invisível o coração humano, até o sacrifício de tudo o que é transitório e assim ligar o céu e a terra” (apud Schaff, 1906, p. 252). O “pagão” Goethe comparou Jesus ao Sol: “Se alguém me perguntasse se a veneração de Cristo corresponde à minha natureza, eu responderia: Claro! Diante Dele eu me prostro como diante da revelação divina do mais alto princípio da moralidade” (apud Ekkermann, p. 847). Gandhi, mesmo sendo hindu, escreveu que para ele Jesus era “um mártir, a encarnação da capacidade de sacrifício, um mestre divino” (Gandhi, 1959, p. 143).


Estes são os pensamentos de um historiador, um filósofo, um político, um poeta e um sábio que meditaram sobre a figura de Cristo. Mas, se não é um mito, nem um simples reformador religioso, quem é o homem de Nazareth? Talvez em nossa busca de uma resposta para esta pergunta crucial, devemos prestar atenção naqueles que percorriam com Ele os caminhos da Palestina, naqueles que sempre Lhe estavam próximos, com os quais Ele compartilhava as experiências mais íntimas. São justamente eles que, à pergunta “Quem sou Eu na vossa opinião?” responderam: “És o Cristo, o enviado, o Filho do Deus Vivo”...


Mas, para entender o fundo da essência desta proclamação de fé, devemos uma vez mais voltar atrás, a um passado mais remoto.


O Messias, Rei e Salvador
A religião de Moisés nasceu ao mesmo tempo que o conceito de salvação. Já o primeiro mandamento do Decálogo lembra que Iahweh salvou o Seu povo que definhava na escravidão. Em geral, a maioria das pessoas em Israel tinha uma concepção extremamente concreta da salvação, como salvação dos inimigos, salvação das calamidades naturais. Os profetas elevaram esta esperança, conferindo-lhe um conteúdo escatológico.

Segundo a Bíblia, o mundo se encontra há muito tempo em um estado de decadência e tem necessidade de ser curado. A vida do homem é breve como um sonho, é uma luta sem esperança, e o povo vive imerso na vaidade. Todo homem, dado que "nasce no pecado", arrasta-se irremediavelmente até o túmulo. Este reino das trevas e do sofrimento é bem diferente do que seria o desígnio do Deus realizado...

A estas mesmas conclusões haviam chegado muitos filósofos do Ocidente e do Oriente. Eles julgavam que o homem era apenas uma marionete movida pelas paixões cegas e pelas circunstâncias. O destino, inexorável, dominava tudo, condenando o universo a se afainar girando eternamente no mesmo círculo.

A tomada de consciência da imperfeição do mundo gerou as mais diversas doutrinas sobre a salvação, que se resumem essencialmente em três tipos.

Para alguns, Platão, por exemplo, a saída é uma estruturação mais justa da sociedade; para outros, Buda, por exemplo, a solução é a fuga do mundo e a contemplação mística. Ambas as soluções baseiam-se em uma tese comum: nem o homem, nem a divindade têm forças para provocar mudanças substanciais no sistema do mundo. Tudo o que se pode conseguir é só um alívio parcial do sofrimento ou a esperança no fim da matéria. O terceiro tipo de soteriologia surgiu em Israel e na Pérsia. Só nas culturas destes países existia a convicção de que o mal pode ser superado, de que no futuro deve acontecer uma transfiguração, que é o fim último da vida do ser humano. Mas, se os persas julgavam que o Bem e Mal são apenas os dois pólos opostos e equivalentes da mesma realidade, como que dois deus antagônicos, os profetas bíblicos, ao invés, rejeitaram esta teoria sedutora. Iahweh manifestara-Se a eles como Deus uno e único. Ele "não criou a morte", e a Sua vontade é conduzir o universo inteiro à plena harmonia.

Ao aceitarmos esta doutrina, somos obrigados a nos perguntar qual a origem da imperfeição, que está em contradição absoluta com o projeto de Deus. Segundo o que o Antigo Testamento ensina, ela é o resultado da queda. O poder de Deus não é como o de um ditador; Ele dá às criaturas a liberdade de escolher o próprio caminho. O mundo é chamado a entender por si mesmo, com a sua experiência, que a verdadeira vida só existe junto de Quem a dá, e que afastar-se d´Ele significa cair no poço sem fundo do nada. Somente seguindo o desígnio de Deus com a própria vontade é que a criatura pode ser digna d´Aquele que a criou.

Utilizando imagens da poesia oriental sacra, os autores da Bíblia pintaram o espírito da destruição, que luta contra a sabedoria divina, sob a forma de uma serpente ou de um dragão indomável e rebelde, como as ondas do mar. Depois, a Escritura deu a este fluxo obscuro e perverso na criação o nome de Satanás, isto é, o adversário. Através dele "a morte entrou no mundo"4.

Em seu estado atual, a natureza não corresponde plenamente ao desígnio Deus. Por isso é que nela grassam a destruição, a luta, a morte e a dissolução. Foi no meio deste mundo ambíguo e alterado que se situou, pois, o primeiro homem, que a Bíblia personifica na figura de Adão.

Ele era o reflexo de Deus no seio da natureza, uma "imagem" do próprio Criador.

Há muitos séculos, o autor dos Salmos, encantado com a grandeza de um céu noturno, não conseguia esconder a sua admiração: "O que é o homem, para que Tu dele Te lembres?" No entanto, puseste-o acima de toda a criação..." No livro do Gênesis, fala-se do régio papel de Adão, do seu "poder" sobre as criaturas. Segundo as palavras de Bíblia, Ele viveu no Jardim do Éden, querendo dizer que a proximidade de Deus o protegia, Adão cedeu à tentação de colocar a própria vontade acima da do seu Criador.

A Escritura traduz esta catástrofe espiritual ao relatar o pecado original: o primeiro casal humano deu ouvidos à voz da serpente e queria dominar o mundo independentemente do próprio Criador, o que significou querer "ser outros deuses". Com isto, desfazia-se a primeira aliança entre o homem e Deus.

O pecado destruiu e enfraqueceu muitos dons do homem, espalhou-se como uma epidemia e fincou em todo lugar suas raízes venenosas. De "cultivador e guarda" da natureza, Adão tornou-se inimigo e violentador. As forças obscuras tomaram poder sobre todo o gênero humano, submetendo-o a elas e transformando a terra num inferno.

Contudo, como Satanás não conseguiu destruir por completo a feição do mundo, do mesmo modo as sementes do pecado não aniquilaram o anélito do homem por Deus, a saudade que sentia do que havia perdido.

A mensagem central da Bíblia encerra-se na declaração de que Deus não abandonou o mundo depois da queda. Ele chamou alguns justos que a Ele se mantiveram fiéis, mesmo em meio à treva e à loucura, e através deles renovou a aliança com o mundo. Estes justos estão na origem do povo eleito, que veio a ser um instrumento de Deus para cumprir Seu próprio desígnio. O sentido de tal eleição manifestou-se lenta e gradualmente à consciência de Israel. Desde o começo, o povo eleito devia apenas conquistar a confiança do Altíssimo, deixar-se guiar por ele. Geração após geração, os chefes, os profetas e os sábios reforçavam a fé no que devia vir e aprofundavam a compreensão do Reino. Eles sabiam que chegaria o momento em que o monstro do Caos seria vencido e cairia finalmente a barreira que separava o mundo de Deus (cf. Is. 27; Jo. 12, 31). Esta reviravolta de toda a terra seria precedida pelo aparecimento do Messias. Ele devia ser descendente de David, da estirpe de Jessé, mas nasceria quando a dinastia real não tivesse o poder terreno: "Eis que desabrochará um rebento da árvore cortada de Jessé, um germe das suas raízes. E o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de inteligência, pousará sobre Ele".

O Messias existia em Deus desde sempre e, no futuro, o Seu Reino "não terá fim"
5. A Sua vinda restabelecerá o acordo entre os homens e a natureza, entre o mundo e o Criador.

Mas, a escatologia dos profetas não se limitava a esperar o Cristo. O "dia do Senhor", diziam, será o dia da revelação total de Deus; então o mesmo Infinito entrará no mundo finito, o mesmo Imperscrutável será claro e evidente para os filhos dos homens.

Esta esperança, porém, não seria insolência e loucura? Deus é infinitamente superior a tudo o que Ele criou, e "quem viu o Senhor não pode continuar em vida". Os sábios da Antiga Aliança responderam também a esta pergunta e, segundo o seu ensinamento, existem faces do Inefável que, em certo sentido, estão voltadas para a criação e para o homem. Recorrendo a conceitos e símbolos humanos, estas faces de Deus podem ser definidas como Espírito, Sabedoria e Palavra do Senhor. Nelas está contido aquele tanto de divino que é adequado à criatura. Por meio delas, o universo recebe vida e o Absoluto se revela ao homem.

Quando os profetas procuravam descrever a manifestação da Palavra ou do Espírito, eles descreviam um cataclismo cósmico que devastaria o céu e a terra. Do mesmo modo, a maioria dos profetas imaginava o Messias como um triunfador poderoso, cercado pelas milícias celestes. Poucos foram os profetas, como o segundo Isaías, que representaram o Messias sem esplendor do poder e da glória.

"Eis o Meu servo que Eu elegi, o Meu escolhido, Aquele que a minha alma deseja. Eu Lhe dei o Meu Espírito e Ele levará a justiça aos povos. Não gritará nem alçará a voz, não se fará ouvir por quem está na rua. Não quebrará um caniço recurvado, não apagará a pequena chama tremulante."

Até a época evangélica, a fé no Messias-guerreiro causava muito mais impacto sobre o povo do que as ideias de um messianismo místico do tipo acima descrito por Isaías. Na época romana, o espírito bélico e revolucionário conheceu um acréscimo, a espera do Salvador tornou-se uma utopia política, inspirou os partidários de Judas da Galiléia.

Pode-se perguntar por que Jesus jamais condenou de modo explícito esta tendência. Provavelmente pelo fato de ela haurir as suas ideias-força dos textos proféticos e, naquela época, o povo ainda não estava em condições de distinguir na literatura bíblica entre o conteúdo sobre a manifestação de Deus e as metáforas tradicionais que este conteúdo assumia. Por isso, deixando imutável das profecias, Cristo procurava sempre realçar o sentido espiritual delas e evidenciar o que é fundamental na escatologia bíblica. Quando se definia Filho do Homem, quando se falava de si como de um proclamador de liberdade e cura, quando fazia entender a quem O ouvia ter estado em outro mundo "antes de Abrãao", queria confirmar com tudo isto que Ele era aquele Messias, cuja vinda fora predita pelos profetas.

E não só. Jesus Cristo também revelou algo que nenhum profeta havia anunciado. A manifestação de Deus cumpria-se n´Ele, na Sua Pessoa de Messias prometido: o Infinito e Eterno adquiria semblante e voz humana, tornando-Se "Filho do Deus vivo" no carpinteiro de Nazareth.

Filho de Deus

 Na Bíblia, expressões como “filho da benção”, “filho da ira”, “filho de profeta” reaparecem com certa frequência e se referem à qualidade, ao caráter e à vocação de uma pessoa. Com a expressão “filhos de Deus” eram designados em Israel os seres espirituais, como os anjos, mas às vezes também eram referidos os justos do povo de Deus, ou os monarcas ungidos no momento de subir ao trono. Por isso, era habitual atribuir-se tal apelativo inclusive ao Messias (cf. Dt. 32, 8; Is. 2, 7; Job. 1, 6; II Rs. 7, 14).


Cristo Se autodefinia filho do Pai dos céus. De Suas palavras ficava claro que Seu relacionamento com o Pai era substancialmente diferente de qualquer outro. Com efeito, Ele dizia: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho”. Pronunciando as palavras “Meu Pai”, Jesus tocava levemente o mistério ímpar de Sua vida interior: “O Pai está em Mim e Eu estou no Pai” 7; não se trata aqui da união estática de um místico com a profundeza divina, mas de algo totalmente diferente.


Ser Filho de Deus significa em Cristo ser Deus-Homem.


O Livro dos Reis narra que uma vez o profeta Elias aguardava no Sinai a manifestação da glória de Deus. Rebentou o fogo, desencadeou-se o tufão, a terra tremeu queimando tudo ao redor, mas Deus não Se encontrava em nada disso. Só quando se levantou de improviso uma aragem suave e fresca sobre o deserto abrasado, é que o profeta sentiu finalmente a presença do Altíssimo. Algo semelhante aconteceu com a história sagrada. Todos esperavam perturbações naturais, catástrofes, estrelas cadentes, mas nada disso aconteceu, só nasceu em uma pequena aldeia da Judéia um menino, fraco e indefeso, como todos os meninos do mundo. Aguardavam um paladino celeste que subjugaria os inimigos, mas veio um carpinteiro de Nazareth que reunia em torno de Si todos aqueles que estavam “fatigados e oprimidos”. Aguardavam um Messias poderoso, uma revelação terrível do Altíssimo, mas a terra conheceu um Deus-Homem que Se fez pequeno tomando “carne e sangue” humanos...


A figura de Cristo perturbou tanto os judeus quanto os gregos. Para enquadrá-Lo nas suas categorias usuais, os primeiros acreditavam que Jesus não passava de um comum mortal inspirado por Deus; os outros, ao contrário, sustentavam que Ele tinha um corpo só aparente, mas na realidade continuava um ser inteiramente divino (cf. Irineu de Lyon, Contra as heresias, I, 7, 25-26; Clemente Alexandrino, Stromata, VII, 17). Os Evangelhos, porém, descrevem-No como um homem real, que comia e bebia, que conheceu a alegria e a dor, a tentação e a morte, e ao mesmo tempo, embora sem nunca ter caído no pecado, perdoava os pecadores, como só Deus pode perdoar, e mantinha-Se sempre em relação de unidade com o Pai. É por isso que a Igreja reconhece em Jesus de Nazareth o Filho de Deus, a Palavra do Eterno, Deus mesmo que desce ao íntimo da criação:


“Aquele que é a Palavra existiu desde o princípio: a Palavra estava com Deus e Ele próprio era Deus. Ele estava desde o princípio com Deus. Tudo o que nasceu depois começou a existir por meio Dele. Nele estava a vida, e a vida era a luz para os homens. A luz brilha nas trevas, e as trevas não a dominaram.


a Palavra Se fez homem e veio viver no meio de nós, homens; e nós vimos a Sua glória, a glória que o Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade, possui.


Como a Lei nos foi dada através de Moisés, a graça e a verdade, por sua vez, nos foram dadas através de Jesus e Nazareth, que é o Messias. Com efeito, ninguém jamais viu Deus, mas o Seu Filho Unigênito, que sempre esteve unido ao Pai, no-Lo revelou.”


Cristo, Deus-Homem, revela em Sua própria pessoa quem é Deus e, ao mesmo tempo, quem é o homem.


Os profetas já sabiam que a causa primeira de toda a criação não é uma Força sem expressão, nem a Ordem cósmica é indiferente como toda lei do universo, mas é o Deus vivo, que está em contínuo diálogo com os homens, que lhes deu a própria imagem e semelhança. Este Deus procura um relacionamento com o homem, chama-o para uma vida superior. Contudo, se a face deste Deus e Seu desígnio permaneciam escondidos na Antiga Aliança, a manifestação do Cristo aproximou o Criador dos homens. Através do Messias, o mundo devia descobrir que o Ser Supremo “é amor”, que Ele é um Pai para cada homem. Os filhos dispersos da Terra são chamados à casa deste pai para reencontrar a dignidade perdida de filhos.


Por isto nasceu alguém que era juntamente filho do homem e filho de Deus, que reunia em Sua própria pessoa o céu e a terra. Na Nova Aliança, tornou-se realidade aquilo que para a Antiga era apenas um sonho remoto e secreto. Desde o instante em que Jesus de Nazareth apareceu na terra, a união espiritual com Ele é união com Deus.


“Deus Se fez homem para que nos tornemos deuses”. Com estas palavras, Santo Atanásio explica o sentido do mistério da encarnação.

Resgatador

“O Filho do Homem não veio à terra para ser servido, mas para servir e dar Sua vida em resgate de muitos” – disse Jesus. As palavras “resgate”, “redenção” são sinônimas de libertação na Bíblia, porque o próprio conceito de resgate está atrelado à alforria da escravidão, à aquisição da própria liberdade. Como outrora Iahweh salvara Israel e dele fizera o “Seu povo”, assim a Igreja da Nova Aliança deve tornar-se o “povo que Deus libertou”.


Mas o resgate, ou como dizem os cristãos, a redenção, é algo, ainda maior, é o retorno da Criação ao caminho traçado pelo Alto. Prisioneira do mal, a Criação, segundo as palavras de Paulo, “sofre e geme à espera da manifestação dos filhos de Deus”. O homem redimido não é tirado da Criação, mas a precede no caminho para os “céus novos e a terra nova”.


A chama do Logos arde “nas trevas”, juntando-se lentamente ao mundo. Ao nosso reino de luta e divisão, Deus leva a força vitalizante da unidade, da harmonia e do amor. Como uma planta que se ergue em busca do Sol, a natureza inteira está atenta ao chamado da Palavra.


Quanto mais o homem moderno toma conhecimento do processo do nascimento do universo, mais claro fica para ele o quadro da Criação que sobe para o alto como pelos degraus de uma escada. Com efeito, antes foram fincadas as estruturas, depois se iniciou a vida e finalmente nasceu o homem. A luta não conhece trégua, a cada pesso a serpente retrocede nas trevas e o esplendor se amplia.


Quando o homem renegou o desígnio de Deus sobre ele, a mesma Palavra Se manifestou encarnando-Se no “novo Adão”.


“Deus amou de tal modo o mundo, que deu o Seu Filho Unigênito”. Mas esta auto-imolação de Jesus não podia deixar de ser uma tragédia. Aquele que entrou a fazer parte do mundo corrupto tornou-Se necessariamente co-participante do sofrimento dele; desde então, a dor de todo ser será sempre a Sua dor, o Seu Gólgota. Entre os homens, o Filho de Deus não encontraria triunfos, mas sofrimentos e morte. Embora sendo sem pecado, Ele tomou sobre Si todas as consequências do pecado, por isso a Igreja exorta a todos os que O seguem: “Esforcemo-nos profundamente na competição de que nos cabe participar, tendo fixo o olhar Naquele que começou e levou a cabo a corrida da fé, em Jesus, que, ao invés da glória que Lhe cabia, escolheu a Cruz”.


Seus precursores são os Santos e os mártires da Antiga Aliança que foram perseguidos e mortos. Os seus rostos se fundiram numa única imagem do Messias que o segundo Isaías descreveu. Os poderosos e os povos, confiando na força terrena, olhavam com desprezo o “servo de Iahweh”, mas tiveram de se convencer de que Deus escolhera justamente este homem renegado e sofredor.


“Quem, pois, acreditará no que ouvimos? A quem se poderá revelar o poder de Iahweh? Ele brotou como um rebento diante do Seu rosto, como uma vergôntea da raiz fincada na terra árida. Não possuía nem aspecto, nem imponência que nos atraíssem para Ele, nem magnificência que nos fascinasse. Ele foi desprezado e repudiado pelos homens, homem das dores que bem conhece o sofrimento, e nós não tivemos por Ele qualquer estima, pensamos que fosse um pária. Mas Ele havia tomado sobre Si as nossas fraquezas, carregava o peso dos nossos males. Nós O julgávamos atingido, castigado e humilhado por Deus e, no entanto, Ele fora ferido pelos nossos pecados, fora espancado pelas nossas iniquidades. Sobre si Ele tomou a punição para a nossa salvação, fomos curados por Suas feridas. Todos nós estávamos perdidos, cada um na sua estrada, como ovelhas abandonadas, mas Iahweh tomou sobre Seus ombros o peso dos nossos pecados. Atormentado, foi manso; em meio aos suplícios, como uma ovelha diante dos tosquiadores, Ele também não abriu os lábios...”


Conclusão: um Messias sofredor!... Isto devia parecer inaceitável, incompreensível, inadmissível. Quase ninguém na Antiga Aliança teve coragem de exprimir publicamente uma ideia semelhante, pois parecia blasfêmia. Todavia, as palavras do Segundo Isaías já tinham sido pronunciadas e, escritas, tinham sido fixadas na Bíblia, o que turbava e escandalizava muita gente. Os exegetas judeus omitiam esta passagem, procuravam esquecê-la, mas Jesus explicava a Sua missão referindo-se exatamente a esta profecia sobre o servo de Iahweh: “Hoje se cumpriu esta escritura diante de vós”.


Cristo jamais procurou encantar o povo com manifestações evidentes de Sua grandeza; aliás, Ele Se fez pequeno para a mentalidade “deste mundo” e com isto mesmo manteve ilesa a liberdade dos homens. Jesus não procurava servos, mas filhos, ou melhor, irmãos que tivessem por Ele um amor desinteressado e O seguissem apesar de desprezado e rejeitado. Se o Messias Se tivesse manifestado na glória, se ninguém tivesse podido resistir ao Seu fulgor, a adesão dos homens teria sido obrigada. Mas Cristo ensinava algo bem diferente: “Conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará”.


Por amor à liberdade do homem, Ele Se encerrou no cárcere de um corpo, tornou-Se naqueles dias “inferior ao Pai”, precisou de alimento e repouso, escondeu a Si mesmo o futuro e viveu em Si todo o sofrimento do mundo. Tornou-Se carpinteiro de uma cidadezinha de província, cercado por gente ignorante que trazia amiúde marcas evidentes do pecado; passou os Seus dias na companhia de pobres, excluídos, pecadores e leprosos. Ele não possuía corpo de guarda nem conselheiros influentes. Podia aquele homem ser realmente o Messias que o povo havia sonhado e esperado durante séculos?


Outra pedra de escândalo foi o fato de a doutrina do Nazareno não ser reconhecida pela hierarquia eclesiástica. Os fariseus O censuravam porque Ele “testemunhava sobre Si mesmo”. Certa vez, Jesus respondeu a esta censura. “Eu dou testemunho de Mim mesmo e Me dá testemunho também o Pai que Me enviou” 8. Para acolher o Filho do Homem, é necessário um ato heroico da fé. Só os puros de coração “verão a Deus”, que a eles se revelará em Jesus de Nazaré, o mesmo Cristo que os “chefes” da Igreja oficial condenaram como falso mestre.


Foram exatamente os mestres e hierarcas da Igreja da Antiga Aliança que permaneceram surdos ao Seu anúncio, e isto não foi por acaso: eles continuaram prisioneiros da tradição que, segundo eles, Deus dera ao povo, uma vez por todas.  Eles não admitiam dúvidas sobre a própria infalibilidade e, como consequência, tornaram-se inimigos da obra de Deus. Isso aconteceu não tanto porque Anás e Caifás, ou mais precisamente Ananias e Caiafás 9, fossem péssimos sumos sacerdotes; a condenação proferida pela hierarquia eclesiástica em relação ao Cristo é, em si mesma, a maior tragédia da história religiosa do mundo, e é uma eterna admoestação a quem quer que esteja investido de uma autoridade espiritual. Na “lenda” de Dostoiévski ecoa uma verdade terrível, quando o escritor representa Cristo que volta à terra e é novamente condenado pelos “príncipes” de Sua própria Igreja... 10.


“Ele estava no mundo e, embora o mundo tivesse começado a existir por meio Dele, o mundo não O conheceu. Ele veio para os Seus, mas os Seus não O acolheram. Mas a todos aqueles que O acolheram, a todos aqueles que creram Nele, Ele deu o direito de se tornarem filhos de Deus”.


Os discípulos diante do mistério

Se as pessoas de Igreja, os escribas e os teólogos, não reconheceram Jesus, como Ele conseguiu assim mesmo encontrar seguidores? Também aqui a lógica humana, ou, na linguagem dos evangelistas, “a carne e o sangue”, demonstra toda a sua limitação. Com efeito, este é um mistério de fé, uma sancta sanctorum em que a alma encontra o próprio Salvador. Os Apóstolos viviam atormentados pelas dúvidas, mas o amor iluminado deles coroou a fé deles, e eles reconheceram naquele peregrino o errante Messias, o Filho do Deus Vivo.


Respondendo à profissão de fé de Pedro, Cristo profetizou que a Igreja resistiria, mesmo quando todas as forças do mal se desencadeassem contra ela 11. Jesus deu a Simão o nome novo de “Pedra”; ele é a pedra sobre a qual a Igreja se funda. Qualquer valor que se dê a estas palavras e como quer que sejam interpretadas, é difícil duvidar que Cristo tenha confiado ao Apóstolo uma missão ímpar. Por isso, Pedro foi reconhecido pela Igreja “chefe originário” 12. Alguns contrapõem que o Apóstolo não teve autoridade absoluta sobre a primeira comunidade. Com efeito, ele não foi ditador, nem “príncipe” da Igreja no sentido humano; mas será que o próprio Cristo não rejeitara com pulso forte qualquer possível pretensão a este tipo de autoridade? “Deixai pois que os reis exerçam a seu modo o poder sobre os povos – dissera Jesus –, mas entre vós, não façais assim”.  Exatamente por isso é que as palavras “apascenta as Minhas ovelhas” não foram ditas a um líder carreirista e orgulhoso, mas a um humilde pescador. Foi a ação do Espírito de Deus que transformou mais tarde aquele pescador em um pastor de Cristo. Mas, então, quando houve aquele diálogo em Cesareia de Filipe, Pedro, não se tornou ainda a “pedra” da Igreja. Por isso, Jesus deu logo outra direção aos seus pensamentos, proibiu os Apóstolos de dizerem publicamente que Ele era o Messias e começou a falar dos sofrimentos e da morte que O esperavam.


Ouvindo o Mestre, Pedro se entristeceu, tomou Jesus à parte e, na sua simplicidade, procurou encorajá-lo:


- Deus Te livre disso, Mestre. Isso jamais Te acontecerá.


Mas as palavras do discípulo só podiam ferir o ânimo de Jesus. Por acaso, não desejava Ele mesmo evitar “aquele cálice”? Por acaso, queria que os homens se manchassem com o sangue do Messias? Mas Ele devia beber voluntariamente o cálice do resgate...


- Afasta-te! Para trás de Mim, Satanás! – disse-lhe olhando os discípulos. – Queres me fazer pecar, pois não pensas nas coisas de Deus, mas nas dos homens!


Embaraçado, Pedro calou-se e Jesus continuou a falar, dirigindo-Se a todos os onze. Eles deveriam estar prontos a tudo, pois o tempo da tentação se aproximava. “Se alguém quiser Me seguir deve renegar-se a si mesmo, tomar uma cruz e vir atrás e Mim” . A estrada que conduz ao Reino passa pela vitória sobre si mesmo, e se o Messias for a vítima, os Seus discípulos também devem imitá-Lo. Só assim eles participarão do triunfo do Messias. “Digo-vos a verdade: alguns de vós não morrereis enquanto não virdes o Filho do Homem vir no Seu Reino”.


Queriam estas palavras dizer para o povo da sua geração que o fim do mundo chegaria dali a pouco? Muitos discípulos entenderam exatamente assim. Mas, Jesus não falava tanto do futuro, quanto do que já estava acontecendo então, de algo que começara desde os primeiros dias de Sua pregação. O grão que Cristo semeou cresce, a semente torna-se árvore, e nisto o juízo já está se cumprindo, o novo tempo já começou.


Passaram-se alguns dias. Aproximava-se a festa do Sukkot, que, segundo o costume, era preciso passar, como o nome diz, em pequenas cabanas feitas de ramos. Naqueles dias, os mais devotos se preparavam para ir a Jerusalém em peregrinação. Mas Jesus ficou além do Jordão, onde aconteceu um fato extraordinário. Três Apóstolos, Pedro, Tiago e João, puderam contemplar, por alguns instantes, a glória sobrenatural de Cristo, como que por trás de uma cortina que se abriu durante poucos segundos. Talvez, já no limiar da paixão, Jesus quisesse reforçar espiritualmente os Seus mais íntimos, consciente das provocações que os aguardavam no futuro.


Assim, naquele dia tomou Consigo os três Apóstolos e subiu com eles a um alto monte, deixando os demais descansando no sopé 13. Enquanto Jesus rezava, Pedro, Tiago e João se ajeitaram ao Seu lado e adormeceram. Ao acordarem, ficaram espantados diante da mudança que se dera no Mestre: o Seu rosto resplandecia com uma luz que não parecia terrena e Suas vestes eram de um branco ofuscante. Dois desconhecidos conversavam com Ele, e os Apóstolos entenderam misteriosamente que aqueles eram antigos profetas vindos a Ele do além. O pavor inicial deu lugar a um sentimento de paz, de alegria, de aproximação com Deus... Vendo que os dois profetas se preparavam para ir embora, os Apóstolos se angustiaram, temendo perder a suprema felicidade daqueles momentos. “Mestre” – Pedro rompeu o silêncio, - “que bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, uma para Moisés e outra para Elias.” Ele não sabia o que dizer e pensava que aquele fosse o momento de celebrar o rito da iminente festa das Tendas...


O que aconteceu depois daquelas palavras de Pedro, nenhum dos presentes se lembrava com exatidão. Contudo, sabiam que tinham assistido à própria glória do Eterno, tinham-se sentido como que envolvidos pela nuvem luminosa da presença de Deus e, em seus corações, acima de qualquer sensação, tinham ouvido ecoar as palavras: “Este é o Meu Filho amado, escutai-O!”


Mas, um segundo depois, o esplendor já se ofuscara e os Apóstolos viram o Mestre de sempre. Ele estava só, no topo da montanha. Pedro, Tiago e João conseguiram, a muito custo, retomar consciência. Jesus aproximou-Se deles e os encorajou de novo: “Levantai-vos, não tenhais medo!”, e começou a descer a montanha. Eles O seguiam como em um sonho. Ao longo do caminho, Jesus rompeu o silêncio e ordenou-lhes que nada dissessem do que haviam visto, enquanto o Filho do Homem não tivesse “ressuscitado dos mortos”.


Perturbados como estavam, os discípulos não ousavam questionar o Mestre e só se perguntavam uns aos outros: “O que é mesmo ressuscitar dos mortos?”



NOTAS:
 1)    Nos arredores de Tiro, Jesus curou a filha de uma mulher fenícia, embora a princípio quisesse negar o milagre para a mãe. Este episódio causou espécie a muitos teólogos. É natural perguntar como é que Cristo, que curara sem hesitar o servo de um centurião romano e se recusara a atender alguns gregos que queriam falar com ele, tenha manifestado tanta severidade neste caso. Encontramos uma explicação plausível no que conhecemos da religião siro-fenícia. Tratava-se de uma forma de paganismo extremamente brutal que conquistara uma fama sinistra através os sacrifícios humanos em massa que praticavam, do homicídio ritual de crianças e de orgias cultuais desenfreadas. Para os israelitas, a religião destes seus vizinhos era sinônimo de absoluta impiedade. Talvez justamente por isso, Jesus se tenha expresso de modo tão duro, para mostrar claramente a diferença entre quem professava o Deus único e quem seguia esta religião diabólica. E só quando a mulher concordou humildemente com Ele e continuou a implorá-Lo, é que fez o milagre para retribuir a confiança que ela Nele depositava.

2)    Ainda que os sábios hindus tenham falado às vezes da própria experiência de se confundirem com a divindade, na realidade isto era apenas uma consequência lógica de sua teologia, que via justamente Deus como essência interior de toda criação.

3)    Theodor Mommsen (1817-1903), historiador, arqueólogo e filólogo alemão de grande renome. Dirigiu várias publicações relativas ao mundo clássico, ocupando-se sobretudo de direito romano. Entre suas obras mais famosas estão a História de Roma, praticamente uma síntese de suas diversas atividades como estudioso, e o Direito público romano. Um ano antes de sua morte, recebe o Prêmio Nobel de Literatura [N.d.T]

4) Sb. 2, 24. A figura do monstro do Caos (chamado Leviatã, Raab ou Dragão) aparece na literatura bíblica antes da figura de Satanás (cf. Is. 51, 9-10; Sl. 3, 13-14; 88, 11; Job. 9, 13; cf. também Ap. 12, 9; 20, 2; Jo. 8, 44; I Jo. 3, 8).

5) Trata disso o Primeiro Livro de Enoc.

6) Cf. p. ex. o capítulo 3 do Livro de Habacuc.

7) A maior parte destas frase de Cristo constam no Evangelho de João, por diversos motivos: a) estes discursos de Jesus eram dirigidos aos pastores e aos chefes espirituais de Israel, enquanto os Sinóticos registram primordialmente as palavras de Jesus dirigidas ao povo; b) a atenção teológica de João é concentrada de modo particular no mistério da encarnação; c) todo o quarto Evangelho é dedicado a um público mais preparado do que os leitores dos Sinóticos. Contudo, também nos três primeiros Evangelhos há numerosas declarações de Cristo sobre Si mesmo, muito próximas das palavras reproduzidas pelo quarto Evangelho na forma e no espírito (cf. p. ex. Mt. 10, 12-37; 11, 27-30; 24, 35; 28, 18). A teoria, segundo a qual o autor do quarto Evangelho teria sido um teólogo grego liberado da tradição e da cultura semítica, pode ser considerada obsoleta em nossos dias. Com efeito, foram postas em evidência as raízes aramaicas do texto, foi identificado o vínculo de João com o Antigo Testamento, a tradição rabínica e a literatura de Qumrã. Este conjunto de fatores prova que o quarto evangelista pertencia ao ambiente judaico da primeira metade do século I. (cf. Robert e Feuillet, 1959, pp. 658-661; Dodd, 1972, pp. 74 ss; Brown, 1966, pp. LXII-LXIV).

8) Ao falar do testemunho de dois, Jesus certamente aludiu a um antigo princípio de direito judaico que exigia o testemunho de duas pessoas ao menos para mover uma ação contra alguém (cf. Dt. 19, 15; Talmude, Pesahim, 113v).


9) Fiéis à escolha do autor, deixamos numa transcrição mais próxima do original hebraico os nomes dos sumos-sacerdotes. Portanto, adotamos Ananias para o que devia ser Hanan, não obstante o grego e o latim Annas, que deu origem ao Anás. Quanto ao outro nome, diz-se Kaiaphas no texto grego dos Evangelhos, nome que translitera o original Qajapha. A forma Caifás segue o Caiphas da Vulgata (N.d.T).


10) O autor aqui faz alusão à conhecida lenda do grande inquisidor no romance Os irmãos Karamázov (N.d.T).

11) As “portas do inferno” de Mt. 16, 18 significam a potência do mal. Nas línguas semíticas a palavra “portal, portas” é sinônimo de “força”. A imagem deriva da terminologia da construção civil: portas maciças constituíam a melhor garantia para uma cidade fortificada ser inexpugnável.

12) Alguns estudiosos supõem que Jesus, na verdade, não tenha aqui empregado a palavra “cruz” mas “jugo”. Seja como for, os judeus a seu tempo conheciam bem a cruz como símbolo de sofrimento, dado que tanto os romanos como os governantes locais recorriam com frequência a este tipo de suplício (Cf. Antiguidades judaicas, XVIII, 10; Guerra judaica, II, 5).

  
13) A tradição oriental identifica o Tabor como a montanha da Transfiguração. O antigo Evangelho dos Judeus conta que Jesus foi transportado àquele monte pelo Espírito Santo (cf. Orígenes, Comentário sobre João, II, 6). Contudo, os exegetas modernos põem em dúvida a identificação deste monte. O Tabor não é, de modo algum, um “alto monte” (cerca de trezentos metros) e, na época evangélica, havia no topo uma pequena cidade fortificada, o que fazia da colina um lugar pouco propício para se isolar (cf. Guerra judaica, IV, 8). Além disso, o Tabor se situa na Galiléia e não na região de Filipe. Hoje se considera que os evangelistas queriam dizer um dos cumes da montanha do Hermon.

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