O segundo mandamento do Evangelho
SANTA MARIA DE PARIS
tradução de monja Rebeca (Pereira)
Jesus lhe respondeu: Ame o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento: este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo lhe é semelhante: Ame teu próximo como a ti mesmo (Mt. 22, 37-29).
Existe no Cristianismo, uma propensão em recomendar o aprofundamento de si, o desapego, a estação solitária da alma diante de Deus. Como é o caso notoriamente face a grandes catástrofes históricas. Hoje, tal tendência parece se manifestar de novo com muita intensidade. E disto resulta uma situação muito estranha. De uma parte, diversas formas do mal convergem para reforçar o poder do coletivo, da massa, e tornar derisória, insignificante, a alma humana em sua unicidade. De outra parte, almas cristãs, já dispersas e desunidas, se esforçam ainda mais nesta dispersão e desunião. Ao ponto do mundo ter se tornado para eles uma miragem ruim, sobrando somente enquanto realidade Deus e a alma solitária, tremendo diante d'Ele.
Tal estado de espírito me parece escandaloso e redutível, tanto para cada pessoa em particular como para a Igreja como um todo. Devemos absolutamente nos erguer com todas as nossas forcas contra tal atitude, despertar os homens, uns e os outros, chamá-los a uma presença comungante diante de Deus, conduzi-los a levarem juntos suas penas/dores e juntos denunciarem os escândalos. Tal apelo é justificado. Podemos lhe dar facilmente os fundamentos mais irrefutáveis; basta para isto encontrá-los nos diferentes campos da existência cristã.
Gostaria de começar por aquilo que é ressentido como o domínio mais pessoal e mais secreto do ser, aquele do face-a-face solitário da alma com Deus: a oração ortodoxa. Na medida em que seu caráter não individual vai de si, deixaria de lado as orações comunitárias pronunciadas durante os Serviços e a Liturgia. Pegaria-me as orações pessoais que todos conhecem, aquelas que fazemos em casa, por detrás das portas, na câmara interior, digamos. Trata-se da série tradicional das orações da manhã e da noite, que podemos encontrar em não importa qual livro de orações e as quais estamos habituados desde a infância.
Nos textos, o que descobrimos? Uma predominância muito nítida da primeira pessoa do plural (nós) sobre a primeira pessoa do singular (eu). As primeiras começam da seguinte forma: "Glória a Ti, ó nosso Deus, glória a Ti." A invocação ao Espírito Santo, "Rei dos Céus", terminando-se pelos seguintes vocábulos: "Vem e habita em nós, purifica-nos de toda impureza e salva as nossas almas, ó
Tu que és Bondoso". O Trisagion conclui-se por :"Tem piedade de nós. Senhor, purifica-nos de nossos pecados. Mestre, perdoa as nossas iniquidades. Santo, visita-nos e cura as nossas enfermidades..." Vem então a oração do Senhor que começa por "Pai Nosso", na qual pedimos: "O pão nosso essencial, dá-nos hoje, perdoa as nossas ofensas assim como nos perdoamos aos nossos devedores e não nos conduzas a tentação mas livra-nos do maligno."
Nas orações da manhã, o plural é nítido e frequente: "Nós nos prostramos diante de Ti e clamamos: Tem piedade de nós... Nos Te invocamos na noite... Vinde, adoremos nosso Rei e Deus... Aceita as nossas orações... Purifica-nos... Concede-nos... Que nos encontremos prontos... Pois Tu deste à luz o Salvador de nossas almas...
O mesmo acontece com as orações pelos vivos e os mortos bem como as orações da noite; lá também, oramos não para nós mesmos mas pelos outros. Podemos então dizer que tudo que há de mais pessoal e de mais íntimo na vida de um ortodoxo se encontra inteiramente penetrado pelo sentimento de uma comunhão com todos, pela experiência da catolicidade (sobornost) característica da Igreja Ortodoxa. Eis algo de muito significativo e que merece reflexão.
Aquilo que vale para as orações privadas vale, certamente, da mesma forma, para a oração comunitária. Necessidade alguma se apaga aqui. Assim, padre algum pode celebrar a Sagrada Liturgia sozinho; faz-se necessária a presença de pelo menos um fiel, que simbolize então todo o povo. Pois que o mistério da Eucaristia é obra comum da Igreja; realizada em nome de todos e por todos.
Esquecer tais elementos fundamentais da fé representaria para os ortodoxos o fato de sucumbir a uma forma de tentação protestante. Na Igreja Ortodoxa, o homem não está solitário. Ele não segue individualmente o caminho da salvação. Membro do Corpo do Salvador, ele compartilha o destino de seus irmãos em Cristo, se justifica pelos justos, é responsável pelos pecadores. A Igreja Ortodoxa não é um local de presença solitária diante de Deus, antes um local de comunhão que liga todos os fiéis pelo amor de Cristo e o amor pelo próximo. E isto não é uma invenção de teólogos e de filósofos, mas o preceito rigoroso do Evangelho, tal como vivido na experiência secular da Igreja. Vemô-lo bem em autores como Khomiakov, Dostoievski, Soloviev, os quais proclamaram tais verdades nos meios cultivados da sociedade russa: seus propósitos repousam sobre a própria palavra de Deus, o mandamento explicito do Salvador. É somente ao integrá-los no mandamento "bi-unitário" do amor por Deus e do amor pelo próximo que o cristão ortodoxo pode realizar e tornar real os princípios de sua fé. Esta "bi-unidade", decerto, não tem nada de evidente. Seu equilíbrio é frágil e difícil de guardar; tendo sido, todavia, perdida mais ou menos durante épocas inteiras, notoriamente nos períodos de catástrofes e de abalo universal. Na adversidade, o homem, aterrado, tende a buscar a se abrigar, a se esconder, a romper todo laço com o mundo instável que o rodeia. Tem-se a impressão que lembrando-se de Deus e refugiando-se no interior dele próprio, poderá escapar às calamidades, salvar sua alma e permanecer puro no meio a toda impureza generalizada.
A tal homem faz-se necessário repetir incansavelmente as palavras do apóstolo João sobre os hipócritas que pretendiam amar a Deus sem amar o homem: "Como podem amar a Deus que não vêem e odiar seus irmãos que se encontram junto deles?" (I Jo. 4, 20). Na idéia de Cristo, obedecer ao mandamento do amor pelo próximo, é dar sua alma pelos seus amigos. (...) Para realizar tal vontade, Paulo não hesita em afirmar que desejava se separar do Salvador para que seus irmãos fossem salvos (Rm. 9, 3); ele fala ai do sacrifício de sua alma e não somente de sua vida.
No entanto, existe outro ponto, decisivo para a atitude que Cristo espera de nós para com nosso próximo. Trata-se, certamente, das palavras do Senhor acerca do Julgamento Final (Mt. 25, 31-45). Nesta hora redutível, o homem terá que responder não somente como salvou sua alma por meio de um prodígio solitário, mas qual foi sua atitude para com o seu próximo, se o visitou na prisão, alimentou-o quando tinha fome, consolou... Quer dizer, se ele amou seu irmão, viu neste amor o mandamento fundamental de Cristo. Lembrar-se de seu irmão na oração é bom, mas isto não é suficiente para ser justificado. Podemos ser justificados somente pelo amor ativo, fazendo dom de sua alma aos seus amigos, no esquecer de si-próprio.
O que significa dar sua alma por seus amigos? Qual é a medida suprema do amor sacrificial? Para além das indicações particulares do Evangelho, é a obra completa de Cristo que nos traz a resposta. "Deus amou tanto o mundo que deu Seu Filho Unigênito" (Jo. 3, 16). Cristo nos chama a este amor. Não podemos seguir a Cristo sem participar, nem que seja no mínimo, deste "prodígio" do sacrifício do amor. O discípulo de Cristo é aquele que ama o mundo, dá sua alma para outrem, aceita mesmo até estar separado de Cristo pela salvação de seus irmãos. Ao contrário, o homem que segue o caminho do egoísmo - seja ele "sacro" - só se ocupa de sua salvação, não se sente responsável pelo sofrimento e pecado do mundo, ele não ouviu o que disse o Senhor e não compreende porque Cristo assumiu o sacrifício no Gólgota.
Decerto, não é raro que aqueles que seguem a via da salvação individual se entreguem a certas práticas virtuosas em aparência: alimentar os vagabundos, assistir os pobres, etc. Mas só o fazem como uma diversão ascética, um exercício útil à sua própria alma. Ora, não é evidentemente este o gênero de amor que o Evangelho nos ensina, não sendo por tal exercício o próprio Cristo crucificado.
O amor de Cristo que herdamos é um amor sacrificial autêntico: é o dom total da alma, não para encontrar com interesses, em meu proveito, mas para o benefício único do próximo que se revela - pela própria graça deste dom de amor - a imagem de Deus.
Mas, atenção! Aquilo que acabamos de dizer não significa que tem que raciocinar assim: Já que Cristo nos deu a certeza de que O encontramos em cada pobre, testemunhamos do amor aquele que sob a aparência de pobreza não deixa de ser nada a mais do que o Rei Celeste que não desperdiça nossos dons, mas nos dará ao cêntuplo." Não! Se Cristo está bem presente e sofre bem nele, o pobre, aquele que sofre não é nada de menos do que ele próprio, na realidade de sua pobreza e de sua miséria. Devemos acolher o pobre em nome do amor de Cristo e não porque obteremos assim uma recompensa, mas porque pelo amor sacrificial de Cristo nos unimos ao Cristo neste amor, que participarmos em Seu sofrimento sobre a Cruz, que sofremos não para nossa purificação e nossa salvação, mas realmente pelo outro, o pobre, o que sofre, a fim de que nossos sofrimentos possam aliviar os seus. Não podemos amar de forma sacrificial em nosso próprio nome, mas somente em nome de Cristo, em nome da imagem de Deus que se revela a nós em cada homem.
Talvez vão nos reprimir por termos isolado tais preceitos de maneira tendenciosa. Os heréticos e os sectários - como sabemos - demonstram sempre a justiça de suas posições por textos do Evangelho. Deveríamos, sem sombra de dúvidas, apresentar outros elementos para provar a existência de tais interpretações em todas as épocas da Ortodoxia, sua presença junto aos Padres da Igreja, por exemplo na Filocalia.
Isto é possível, mas com algumas reservas. Pois a Filocalia, devemos lembrar não é a Escritura em si - revelação inspirada por Deus - antes uma obra de homens, santas, mas, no entanto, humanas. Por outro lado, os textos que ela reúne não são integrais, mas extratos escolhidos sobre práticas solitárias da ascese. Sendo assim não é surpreendente que os temas que nos interessam aqui estejam muito pouco presentes.
Assim, no primeiro tomo da Filocalia, a questão da atitude para com o próximo ocupa somente duas páginas sobre mais de 600; no segundo volume, somente três páginas sobre 750 páginas. Uma proporção bem diferente daquela que observamos nos Evangelhos e nas Epístolas. Todo o resto, a fora, está longe de se referir diretamente ao mandamento do amor de Deus; os três quartos tratam da luta contra a gulodice, a luxúria e as outras paixões.
Voltemo-nos, todavia, aos textos da Filocalia que se remetem ao amor ao próximo. Se alguns são totalmente ardentes, outros, em contradição com tal ardor, não são sem suscitar perplexidade e embaraço. (...) Assim, São Macário o Grande (aprox. 300-390) conta: "Certo ancião pergunta ao abba Serapião: Por caridade, diga-me, como te vês. Abba Serapião responde: Pareço-me com alguém que se encontra numa torre e que ao olhar para o exterior faz sinal aqueles que passam para que se afastem. E o ancião lhe diz, então: Eu, eu me vejo como se estivesse rodeado de uma clausura tendo me fechado com ferrolhos de ferro, de maneira que quando alguém bate, não ouço quem está lá, donde vem, o que deseja ou como é, e não abro até que tenha partido. Mais adiante, o próprio Macário escreve: "O homem que considera seus pecados não tem língua para falar o que quer que seja."
Outro exemplo: Antônio o Grande (251-356) conversava com um irmão que estimava sobre o fato de não ser necessário sair do mundo para se salvar. Preocupado de advertir perigos que o ameaçavam, Antônio lhe pergunta: Diz-me, meu filho, se afliges com aqueles que estão na dor e se alegra com aqueles que estão na felicidade? Ele diz sentir estes dois sentimentos. O Ancião, então, lhe diz: Saiba que partilhas também no século futuro da sorte destes dois de quem compartilhas a alegria e a dor na vida presente.
Junto a Evágrio (346-399), encontramos textos dificilmente conciliáveis. De um lado, ele escreve: “Melhor encontrar-se na multidão com amor do que sozinho numa gruta com raiva.” Mas, por outro lado, enumera cinco operações com auxílio das quais se obtém a benevolência de Deus: a oração pura, a salmodia, a leitura das Santas Escrituras, a lembrança afligida de seus pecados, o trabalho manual”. O pensamento da multidão em que deve-se levar em conta com tanto amor parece aqui ter desaparecido totalmente.
De maneira geral, as enumerações deste gênero, muito frequentes na Filocalia, não concernem quase nunca o amor ao próximo. Assim, os seguintes textos de São Barsanúfio e São João de Gaza (VI): "Torne-se morto para todo homem e serás um verdadeiro peregrino", "cada um ama seu próximo à sua medida. A medida do amor perfeito, é em razão do amor por Deus, amar seu próximo e frequentes conversas, arriscam se perder. Convém então bem compreender qual deve ser a medida do amor mútuo: não caluniar uns dos outros, não se enfurecer e se denegrir, não buscar unicamente seu interesse, não amar outrem por sua beleza física, não permanecer junto sem necessidade estrita, não deixar ir à temeridade que destruirá todos os frutos da vida monástica e tornará o mundo semelhante a uma árvore dessecada." Encontramos ai atitude que não devemos tomar para com nossos próximos, mas antes o amor que devemos ter por ele.
Existe também na Filocalia textos que decorrem inteiramente do ensinamento de Cristo sobre a necessidade de dar sua alma pelo próximo. O próprio São Macário o Grande diz: “Àqueles que foram julgados dignos de se tornarem filhos de Deus e de nascerem do alto pelo Espírito Santo, chega o momento de chorar e se afligir pelo gênero humano; eles oram pelo Adão total deitando lágrimas, abrasados que estão de amor espiritual pela humanidade. Por vezes também seu espírito se inflama de tal alegria e tal amor, sem distinguir os maus dos bons. Por vezes, ainda, na humildade do espírito, se rebaixam de tal forma diante de cada homem que se consideram como os últimos e os menores de todos.”
Por sua parte, São João Cassiano (350-435) escreve: “Não ter compaixão pelos pecados dos outros, mas pronunciar sobre eles o julgamento severo, é um sinal evidente de que a alma ainda não se purificou das más paixões.”
Particularmente remarcáveis são os pensamentos de São Nilo o Sinaita: “Convêm orar, imitando a existência angélica, não somente por sua própria purificação, mas também pela purificação de todos os homens”. “Bem-aventurado o monge que considera todo homem como deus depois de Deus. Bem-aventurado o monge que olha a realização da salvação dos outros e o progresso de todos como seus próprios. Bem-aventurado o monge que se considera como a escória de todos. O monge é aquele que se separando de todos, torna-se unido a todos. O monge é aquele que sabe que está com todos e considera cada um como ele próprio”. “Não prefere nada ao amor pelo próximo, com exceção se ele te conduzir a se desprender do amor por Deus.” O mesmo espírito sopra nas palavras de Efrém o Sírio (306- aprox. 373): “O sentido do pedido: “Que a tua vontade seja feita assim na terra como no céu”, é o fato de nos unirmos uns aos outros na ausência de ciúmes, na simplicidade, no amor, na paz, na alegria; eis o que consideramos o sucesso de nosso próximo como nosso próprio ganho, suas fraquezas, suas faltas e suas dores como nossa própria chaga. Pois é dito: “Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros.”(Fp. 2, 4). É assim, pela compaixão recíproca e sobretudo aquela dos sadios para com os enfermos, que seremos capazes de realizar os mandamentos de cristo”: “ o sinal do espírito de humildade, é o de satisfazer com ambas as mãos as necessidades do irmão, como se fosse tu próprio que recebesse uma ajuda”; “Atentemos em adquirir os bens eternos que nos foram prometidos. Tenhamos tal cuidado antes que a noite chegue e o Mercado se feche. Façamos, dentre os pobres e indigentes, amigos para a vida do alto. Compremos junto deles o óleo… Pois que aqueles que aqui em baixo, vendem o óleo para as lamparinas do alto, são as viúvas, os órfaos, os doentes, os enfermos, os embriagados, os cegos, todos os pobres que se encontram às portas das igrejas.”
Gostaria, por fim, completar estes textos com algumas citações de Santo Isaac o Sírio (VII): “Eis o sinal da perfeição, tal como provaram Moisés, Paulo cheio de fervor e os outros apóstolos: se, dez vezes por ano, vos entregarem ao fogo por amor pelo próximo, não sereis ainda satisfeitos. Deus entregou seu Filho à morte sobre a Cruz por amor pela criatura. E se houvesse algo de mais precioso ainda, Ele nos teria dado também, a fim de salvar da mesma forma o gênero humano. Todos os Santos imitam isto, e para se alcançar a perfeição buscam se tornarem semelhantes a Deus por meio do amor total pelo próximo”; “Ninguém tem o direito de dizer que progride espiritualmente no amor pelo próximo se negligencia a dimensão que, a medida de suas forças e segundo as urgências do tempo e espaço, deve realizar corporalmente. Pois somente este esforço corporal traz a certeza de que o amor perfeito existe no homem. Quando, segundo nossas possibilidades, somos fiéis e verdadeiros no plano que nossa alma recebe a força de adentrar – nos pensamentos simples e incomparáveis – nas mais altas e divinas contemplações.
Tais palavras justificam plenamente não somente o amor ativo, mas também as possibilidades de atingir “as mais elevadas e divinas contemplações” pela vida do amor ao próximo. E isto não somente verbalmente, mas da maneira mais concreta que seja. Lá se encontra a chave do mistério da comunhão humana como via espiritual.
Para terminar, eis ainda dois textos do mesmo Isaac o Sírio: “O homem verdadeiramente misericordioso não faz somente dom da esmola daquilo que lhe pertence, mas suporta com alegria a injustiça que os outros lhe infligem e lhes faz misericórdia. É verdadeiramente misericordioso aquele que sacrifica sua alma pelo seu irmão e não aquele que, pela esmola, faz a caridade a seu irmão.”
“Deixa te perseguirem, mas não persigas. Deixa te crucificarem, mas não crucifiques, deixa te ofenderem, mas não ofendas. Deixa te caluniarem, mas não calunies… Rejubila-te com aqueles que se rejubilam e chora com aqueles que choram: eis o sinal de pureza. Esteja na dor com aqueles que sofrem. Deite lágrimas com os pecadores. Esteja na alegria com aqueles que se arrependem. Sê o amigo de todos, mas permaneça só, em espírito.”
Tais palavras são realmente de fogo, e pouco importa que ocupem um lugar reduzido nos grandes volumes da Filocalia. O importante, é que existam e possam dar um fundamento patrístico à nossa busca. Neste ponto de nossa reflexão, podemos então dizer que uma tradição patrística existe no domínio que nos ocupa. Simplesmente, e infelizmente, os conselhos práticos e ascéticos são bem menores acerca da conduta para com o próximo do que a atitude do homem para com Deus e para consigo próprio.
Ora, neste domínio da comunhão humana, temos uma enorme necessidade de parâmetros, indicações precisas e justas. Pois o risco é grande de errar se não sigamos somente nossos humores ou nossos sentimentos. Logo, convém tentar definir a aplicação de certos grandes princípios espirituais nos diversos aspectos da comunhão humana.
Partiremos, então, da natureza humana e de sua composição “tri-unitária”: o corpo, a alma e o espírito. Cada um destes planos tem suas regras e exigências ascéticas, parece-me indispensável distinguir, cada vez, a atitude para com si-mesmo e a atitude para com o próximo. Na ascese do amor, em efeito, a regra que consiste em não fazer aos outros aquilo que não desejamos que nos façam, não é suficiente. Devemos ir mais adiante. Impor-mo-nos exigências muito mais severas daquilo que podemos esperar do próximo.
Comecemos pelo primeiro plano: a existência corporal. A ascese do amor nos impõe aqui duas coisas: o labor e a sobriedade. O labor não passa de um mal inevitável, a maldição que pesa sobre Adão. É também cooperação à economia divina. Pode ser transfigurado e santificado. Não pode ser reduzido à obra de nossas mãos, a um trabalho realizado. Ele supõe a responsabilidade, a inspiração e o amor. Deve sempre ser um esforço no campo do Senhor.
Se o trabalho se encontra aqui no coração da façanha ascética corporal, a sobriedade, ela não é também central. Constitui todavia uma ajuda muito útil para liberar a atenção – muito geralmente fixada sobre os limites humanos – e a torna disponível a realidades mais elevadas. O importante, é que tal esforço de temperança não se torne uma paixão. O homem deve ser sóbrio e, simultaneamente, não estar consciente de sua sobriedade.
O homem, de fato, deve prestar mais atenção à carne de seu irmão que à sua própria carne. O amor cristão exige de nós não somente dons espirituais, mas também dons materiais. Devemos dar ao nosso próximo a última camisa e nosso último pedaço de pão. Neste sentido, a caridade pessoal e o trabalho social mais organizado são assim justificados e necessários um ao outro.
A vocação do cristão para o serviço social não traz dúvida alguma. É seu dever de colaborar à organização de uma vida melhor para os trabalhadores, de uma segurança para os idosos. Deve cuidar de crianças e lutar contra a exploração, a injustiça, a miséria, a criminalidade. A maneira com a qual ele o faz, não importa: pode ser ou individual ou social. O que conta é que seu serviço esteja fundado sobre o amor ao próximo e não tenha um objetivo oculto, interessado, que seja em termos de carreira ou de proveito. A partir de então, tudo é legítimo, a ajuda pessoal à assistência do Estado, da atenção concreta pelo homem particular à construção de uma sociedade mais justa. No domínio da ascese ao serviço de necessidades materiais, o amor pelo próximo exige somente de nós um trabalho efetivo e responsável, uma consciência lúcida e não sentimental, por vezes de nossa próprias forças e do bem autêntico do homem.
Aqui, as regras de ascese são simples. Elas se limitam, o mais geralmente, a um trabalho e uma responsabilidade cotidianos. Todavia, não dão espaço a uma inspiração mística. Quer dizer, não escondem grande força e uma grande verdade, baseada no texto evangélico do Juízo Final. Cristo dirá as mesmas palavras a todos aqueles que, por terem visitado a prisão e o hospital, alimentado quando teve fome, vestido quando estava nu, se encontram à sua direita; que tenham feito isto no plano individual ou no domínio social, nada muda.
Conclusão: mesmo se são ternas e laboriosas, ao ponto mesmo de por vezes se confundir com a monotonia do cotidiano, as regras ascéticas em relação a nossa atitude para com as necessidades materiais do próximo já são a promessa da possibilidade de uma comunhão divina; revestem um caráter pneumatóforo.
Entremos então num segundo plano: a existência psíquica. Que atitude devemos ter em relação a seu respeito? Geralmente, não contente em recusar todo valor a tal domínio do ser, o concebemos como uma realidade contra a qual faz-se necessário lutar, quase até sua completa destruição.
Aqui, os intensos esforços que podemos fazer conduzem a resultados bem estranhos: secura, indiferença, frieza, ausência de amor e de inspiração. Numerosas provas de uma ascese mal orientada. Pois, se ele quer ou não, o homem – por parte mesmo da estrutura de seu ser – não pode suprimir sua alma. Ele pode somente deformá-la, esfriá-la, petrificá-la, matá-la.
Sendo justo, a atitude para com a alma humana deve se fundar sempre sobre o mesmo critério. Assim, a “má psiquê”, contestável e que separa o homem do mundo exterior para o fechar em suas próprias emoções, concentrar sua atenção sobre os menores movimento de seu ser. Em contrapartida, a “boa psiquê”, a mais desejada, é aquela que permite ao homem de desenvolver sua atenção e de se abrir ao próximo, lhe fazer pressentir os ritmos profundos de outra alma, criar uma ponte entre ele próximo e seu próximo, traçar o caminho do verdadeiro amor.
Dois perigos opostos ameaçam a alma. De uma parte, a abertura as paixões capturantes; de outra parte, a retirada em si mesmo e a contração mortal da alma. Para evitar ser a presa das paixões, o homem não deve, no plano psíquico, se autorizar culto algum a possessão (o meu), exclusivismo algum. Para evitar toda contração do ser, ele não deve matar sua alma, mas transformá-la inteiramente em instrumento do amor pelo próximo.
Aqui se apresenta o problema de nossa atitude em relação à alma de outrem. Três regras devem ser respeitadas. Primeiramente, faz-se necessário rejeitar todo interesse, curiosidades, deleite pela emoções do outro, aliar tal recusa com uma benevolência intensa, uma atenção infatigável para com sua alma. Em seguida, faz-se necessário aprender literalmente a se “colocar no lugar” do outro, sentir no íntimo o que ele sente, se fazer um pouco de todos. Enfim, não se deve julgar de fora as paixões dos outros, mas, penetrar completamente na atmosfera interior de sua psiquê, sem pré-julgar abstratamente o que lhe convêm ou não, ajudando-o a se liberar de suas emoções e de suas paixões: sem as arrancar brutalmente, antes através de um ultrapassar consciente e total, uma nova orientação, uma verdadeira transmutação do ser.
Aqui também, dois perigos opostos se manifestam. O primeiro, é o de se aproximar do próximo pelo pequena extremidade do binóculo, com critérios redutores, niveladores, que levam sobretudo a dessecar a alma viva e sofredora. O segundo, que não é nada menor, é o de aceitar o outro tal como ele é, de uma maneira sentimental e quase absoluta, com seu deixar-passar, todas as suas chagas e seus crescimentos. A atitude justa se situa entre os dois. Elas se obtêm pela atenção lúcida do amor.
Resta enfim o terceiro plano: o espírito. Um domínio que exige o maior rigor na atitude para com o outro como para com si-próprio. Evidentemente, existe uma multidão de caminhos espirituais, que não saberíamos unificar, reduzir à regras ou leis uniformes. Tal diversidade, todavia, não exclui a possibilidade de definir certo número de princípios comuns, capazes de fundar uma ação espiritual e uma atitude autêntica em relação ao próximo.
Sobre o plano pessoal, a via a seguir é aquela de uma renúncia consciente e sem equívocos, de um esforço permanente para corresponder à vontade de Deus, tornar-se um instrumento em Suas mãos para a realização de Seus desígnios em relação ao mundo. Devemos ser um meio e não um fim. Portanto, nossa mobilização espiritual para o serviço de Deus e do próximo deve ser total, posta em obra até o máximo…
O homem que se vira para o mundo espiritual de outro com seu próprio mundo espiritual encontra o mistério terrível e fecundo do autêntico conhecimento de Deus. Em efeito, ele reencontra não a carne e o sangue, não sentimentos e humores, mas a verdadeira imagem de Deus no homem, o ícone de Deus concreto no mundo, o reflexo do mistério da Encarnação e da divino-humanidade. E o homem deve aceitar sem reservas nem condições tal revelação terrível. Ele deve se inclinar diante da imagem de Deus em seu irmão.
É somente quando terá sentido, visto e compreendido que outro mistério lhe será revelado, que exigirá dele a luta mais violenta, a tensão ascética mais forte. Ele descobrirá então, em efeito, o quanto tal imagem de Deus está manchada, desfigurada pelo poder do mal. Ele verá o coração do homem tal como ele é, preso à uma luta incessante entre o diabo e Deus. Ferido pelo amor, ele vai querer, em nome de tal imagem, levar a cabo o combate contra o diabo, tornar-se o instrumento de Deus nesta obra terrível que lhe consome. E ele poderá, mas com três condições. Primeiramente, que ele ponha em Deus, e não em si mesmo, toda sua esperança. Em seguida, que se despoje de todo desejo desinteressado. Enfim, que tal como David, ele arranque as armaduras e se lance no combate contra Golias com o Nome do Senhor, enquanto única arma.
Eis, brevemente, esboçados os marcos que o homem sedento por prodígios ascéticos de amor pelo próximo deve seguir. Tudo isso pode se resumir na imagem do Cristo crucificado: Ele sofreu em Seu Corpo até o suplício da cruz, sofreu a paixão com a alma humana, rendeu Seu espírito nas mãos do Pai. Ele nos chama a todos e um dom semelhante. Pois que Seu sacrifício, Ele realizou pelo homem total, espírito, alma e corpo.
Outra imagem, particularmente querida à consciência ortodoxa, pode assim simbolizar plenamente a atitude justa para com o próximo: a Mãe de Deus aos pés da cruz de Seu Filho crucificado, acolhendo a seguinte palavra: “Uma espada trespassará tua alma”(Lc. 2, 35). No Crucificado, a Mãe via por vezes Deus e seu Filho. Em cada um de nossos irmãos segundo a carne do Filho do Homem, Ela nos ensina a ver por vezes Deus, quer dizer, Sua imagem e um Filho que nos é dado em adoção para que o amemos com compaixão, que participemos aos Seus sofrimentos e tomemos sobre nós seus pecados.
A Mãe de Deus permanece, até os dias de hoje, trespassada pela Cruz de Seu Filho – que torna-se para Ela uma espada de dois fios – e pelas espadas de todas as nossas cruzes, de todas as cruzes da divino-humanidade. A proteção de Seu véu que cobre o mundo, Sua intercessão por todos os pecados e as misérias dos homens, nos mostram a via segura e verdadeira do amor pelo próximo. A Mãe de Deus nos convida – exigência suprema – a deixar as cruzes de nossos irmãos nos trespassar o coração.
Assim, o mandamento do Filho de Deus – muitas vezes repetido no Evangelho e selado pelo esforço de toda Sua vida terrestre – coincide com a via da Mãe de Deus, que se revela a nós desde a Anunciação até a estação trágica aos pés da Cruz, através de todos os séculos da vida e do caminho da Igreja.
É verdade que o ambiente histórico por vezes conduziu a Ortodoxia a valorizar, de uma maneira unilateral, a via da salvação individual. Isto não significa, em contrapartida, que o outro mandamento do amor pelo próximo, segundo mais semelhante ao primeiro – o amor de Deus – jamais cessou de se dirigir à humanidade. Ele guardou a mesma força que no dia em que foi dado.
Talvez possa ser mais fácil para nós, russos ortodoxos, compreender este segundo mandamento de Cristo. Pois foi ele, precisamente, que magnetizou e animou todo pensamento religioso russo.
Sem tal mandamento, Khomiakov não teria jamais evocado a organização conciliar da Igreja, fundada inteiramente sobre o amor e a comunhão humana mais elevada. Sua teologia prova que a Igreja, em sua totalidade, manifesta por vezes o mandamento do amor de Deus e aquele do amor pelo próximo, que ela é completamente impensável sem um e outro.
Sem o segundo mandamento, a doutrina de Soloviev a respeito da divino-humanidade não teria sentido. A divino-humanidade, em efeito, só se realiza quando a unidade orgânica do Corpo de Cristo é animado pela grande circulação do amor fraternal, quando todos se reunem em torno do mesmo cálice e comungam na unidade do amor divino.
Somente o segundo mandamento, enfim, permite compreender Dostoievski, quando diz que somos todos responsáveis por todos.
O pensamento russo, há mais de um século e de múltiplas maneiras, não cessou de explorar o que significa dar sua alma pelo próximo. Ele tentou mostrar a via do amor, a via da verdadeira comunhão humana que, por sua própria profundeza, torna-se comunhão com Deus. Geralmente, na história do pensamento, da filosofia e da teologia, são primeiramente as primícias teóricas que surgem; a idéia só se encarna mais tarde na vida.
A elaboração dos princípios teóricos da via da comunhão ocupou o essencial do pensamento espiritual russo do XIX século. Geniais e verdadeiros apogeus da tensão criadora do espírito russo, tais idéias se espalharam pelo mundo inteiro. Guerra alguma, revolução alguma não pode destruir o que foi elaborado pelo gênio filosófico e religioso da Rússia. Dostoeivski, com muitos outros ainda, permanecerá pelos séculos. Podemos obter junto a tais filósofos quantidades e elementos, respostas às questões mais trágicas, soluções a problemas aparentemente insolúveis. Ousemos dizer: o tema fundamental do pensamento russo do século XIX foi o segundo mandamento, sob todos os seus aspectos dogmáticos, morais, filosóficos e sociais.
Nossa missão, logo, é clara como permanece para todos os ortodoxos que se enraizaram na Igreja e estão impregnados por tal filosofia religiosa russa: não devemos transformar em indicações concretas para nossa vida interior e nossa ação no mundo todos os princípios teóricos, sistemas filosóficos, conceitos teológicos e expresses novamente sacras tais como “catolicidade”(sobornost) e “divino-humanidade” que tal pensamento desenvolveu.
Somos chamados a encarnar, de uma maneira viva e criativa, os fundamentos de nossa Igreja: a “catolicidade” e a divino-humanidade. Somos chamados a opor o mistério da verdadeira comunhão as falsas relações entre os homens. Eis, em efeito, a única via em que podemos exprimir o amor de Cristo, a única via da vida. Fora dela, só existe a morte pelo fogo e as cinzas, morte pelas raivas múltiplas que dividem a humanidade contemporânea entre as classes, as nações, as raças… Devemos nos opor a todas as formas de totalitarismo de ordem mística por meio de uma única realidade: a pessoa, a imagem de Deus no homem. À todas as formas de individualismo passivo na democracia, devemos nos opor por meio da “catolicidade”, a sobornost.
Assegurem-se. Não existe ai nada de sistemático. Desejamos somente tentar viver como o segundo mandamento de Cristo nos ensina, quer dizer, determinar toda nossa atitude em relação aos homens nesta vida sobre a terra. Desejamos tentar viver de uma maneira tal que aqueles que se encontram de fora possam pressentir na via cristã a única possibilidade de salvação, a beleza suprema, a verdade que ultrapassa toda negação.
Chegaremos a encarnar nossas esperanças? Não sabemos… Ademais, isso é obra de Deus. No entanto, com a vontade de Deus, Sua ajuda e Sua graça, cada um de nós é chamado a se engajar com todas as suas forças, não temendo o mais duro esforço, em dar sua alma por seus amigos. Sim, cada um de nós é, asceticamente e no sacrifício do amor, chamado a seguir Cristo até o Gólgota que lhe é destinado.
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