O Sacramento do irmão - Santa Maria de Paris
Madre Maria morre em Ravensbruk em
1945, tomando o lugar de outra mulher designada ao forno crematório ou talvez
até tenha sido embarcada por acaso. Até mesmo sua morte escapa aos hagiógrafos.
Por muito tempo guardou a esperança de poder sobreviver para obrar ao que a
guerra lhe parecia tornar possível: uma mais profunda aproximação entre o
Ocidente e a Rússia. No entanto, nas últimas semanas, dando o seu pão pelo fio,
põe-se a bordar, tal como um calvário, um estranho ícone representando a Mãe de
Deus trazendo em Seus braços Jesus – Jesus crucificado.
Para muitos, a vida de Madre Maria não passava de um longo escândalo. Essa antiga socialista–revolucionária, por duas vezes casada, tornada cristã sem jamais ter cessado de o ser, permanecia uma intelectual de esquerda, anárquica até em viver sua sensibilidade revolucionária, sua amizade com os judeus, chocando não somente a emigração de direita, mas também muitos jovens ortodoxos nostálgicos de uma ordem total, organizada e sacra.
Esta monja que denunciava na vida da
maioria dos mosteiros uma medíocre imitação de vida familiar escandalizava as
naturezas apaixonadas pela contemplação solitária e de opus Dei;
para ela, a questão era de recusar todo conforto, seja o movimento litúrgico
embalador ou a paz da reserva monástica para viver até o fim, até a morte, o
grande risco da pobreza, a grande invenção do amor. Com o propóstio de se
inserir, sem retorno, na “devastação”, na aniquilação do Deus que Se faz homem,
por loucura de amor.
Imensa, violenta e apaixonada, a
vitalidade desta mulher não cessou de ser um projetar de amor. Um amor não progressivamente apaziguado, mas
crucificado, como que dilatado ao infinito e transformado em maternidade
espiritual. Mãe, essa jovem moça revolucionária já o era, protegendo da polícia
os estudantes pobres em Yalta, ensinando aos operários de São Petersburgo a
ler, casa–se aos 18 anos - por impulso desmedido - com um intelectual
revolucionário, a fim de salvá-lo do álcool e da decadência. O grande poeta
Alexandre Blok, que ela amava de piedade dilacerante, não lhe havia pedido para
passar a cada dia debaixo das janelas de sua casa, pensando nele “como uma
mãe”?
Talvez apenas seu segundo casamento,
no meio da guerra civil, foi pura paixão e desejo de proteção. Mas logo sua
maternidade, ferida pela morte de duas amadas filhas, vai retomar a prioridade
e encontrar todo seu sentido no segundo mandamento do Evangelho - o amor ao
próximo. “Sinto que a morte de minha filha obriga–me a tornar-me uma mãe para
todos”, escrevia ela. Mais tarde, verá o protótipo deste amor naquele da Mãe de
Deus aos pés da Cruz, contemplando no Crucificado, ao mesmo tempo o Seu Filho e
o Seu Deus. Da mesma forma, dizia ela, devemos enxergar em todo homem ao mesmo
tempo a imagem de Deus e o filho que nos é dado “em compaixão”. Tema de seu
último ícone em Ravensbrük.
“Meu sentimento para com todos
é maternal”, escrevia Madre Maria. Para com todos, por todos: os operários do
porto de Marselha, os trabalhadores das minas de ferro dos Pireneus, os loucos,
os drogados e os alcoólatras que ia consolar pela noite nos bares mal falados,
os quais trazia para sua casa a fim de os embalar como
crianças. Todos: os judeus perseguidos, marcados com a estrela amarela e suas
companheiras de Ravensbrük. Quão vã lhe parecia, diante de tanta miséria, a
oposição rebatida entre o amor ao próximo e o amor do “afastado”, entre a
caridade concreta - encontro de duas pessoas - e a ação social metodicamente
organizada.
Para Madre Maria não era somente
necessário opôr-se, mas antes adicionar, multiplicar. O amor não se divide. Ela
que queria amar a cada um como a um filho sabia organizar com eficácia quer a
Ação Ortodoxa – com seus lares de acolhimento e repouso, seu círculo de
amizades - o combate pacífico da resistência espiritual sob a Ocupação alemã,
ou ainda, nos campos de escravidão e de morte, estes humildes círculos de
estudos nos quais as prisioneiras, reencontrando o gosto da beleza e do
pensamento gratuitos, se sentiam supremamente... livres.
Madre Maria toma lugar numa grande
tradição ortodoxa - aquela do amor ao próximo vivido e sofrido ate à
loucura. Ate à loucura em Cristo. Sabemos que no monaquismo
ortodoxo, a tradição organizada tem por motor a contemplação solitária que
consome o homem na realização do primeiro mandamento - o amor por Deus – a fim
de que se torne como uma coluna de intercessão religando a terra e o céu, e que
sua única existência seja para a sociedade e o universo uma benção secreta - às
vezes até manifestada no ministério carismático do Pai espiritual, o Starets.
Contudo, esta tradição ascética
encontra–se sempre ameaçada pelo orgulho e o desencantamento, pela idolatria
das proezas e estados espirituais, pelo desprezo da vida e da natureza. Ela
traz o risco de instalar–se na paz e equilíbrio de um cenobitismo que se isola
- em comum – em vez do amor pelo mundo e o combate espiritual, “mais
duro que a batalha dos homens”. Eis porque Deus não cessa nunca de colocar em
questão esta tradição, de prová-la, e até humilhá-la, fazendo surgir os
testemunhos - simples ou geniais, mas sempre criadores de vida - de um amor
total ao próximo.
As vidas dos Padres do deserto
mostram freqüentemente o próprio Cristo enviar os maiores ascetas a se
instruírem junto a um operário, a uma mãe de família, a um bandido que, vivendo
como homem no meio dos homens, sabem – talvez até, por uma única vez – amar
realmente seu próximo. Humildade, liberdade, louca espontaneidade do amor em
recusa a todo farisaísmo - tal é a “loucura em Cristo” que, na
Rússia do século XX toma freqüentemente a dimensão de um profetismo, não
hesitante em intervir, abruptamente, na vida política e social...
Era nesta tradição que se situava
conscientemente Madre Maria, tal como nos é mostrado nas vidas dos santos que
ela tinha escolhido redigir. A São João Cassiano apressando–se, com os olhos
piedosamente semicerrados, ao seu encontro com o Senhor, preferia, com o povo
russo, São Nicolau retirando da lama - segundo a lenda - a charrete
de um camponês ao risco de perder seu encontro com Deus. Pois Deus estava no
charreteiro. Madre Maria gostava também de contar a história de Serapião, monge
do antigo Egito que, para libertar um homem preso por dívidas, não havia
hesitado em vender o Evangelho - seu único bem.
Os textos publicados no livro O
Sacramento do irmão o provam. Madre Maria viveu a teologia do encontro
bem como o 25° capítulo do Evangelho segundo Mateus com tanta resolução, quanto
um Dietrich Bonhoeffer. Como ele, engajou–se na história, na resistência
organizada - resistência espiritual que ela recusava separar da resistência
militar. No entanto, permanece fundamentalmente “ortodoxa” pelo seu fervor
místico, seu amor pelo Crucificado–Ressuscitado, seu senso da cruz e da cruz de
glória como ponto central da história, sua abertura ao dinamismo do Espírito.
Permanece também ortodoxa pelo seu
sofrimento, seus suspiros, seus gemidos inefáveis, pelo seu rigor ascético,
enfim. Madre Maria, de fato, sabia o quanto o olhar do amor desinteressado
descobre sempre no próximo não somente a imagem de Deus, mas também a ação
caricatural do demônio, e que, por conseguinte, um encontro autêntico não
basta; para que o encontro possa tornar–se “sacramento do irmão”, faz-se
necessário o poderoso exorcismo da Igreja, a mais dura luta espiritual. Eis
porque a ascese do encontro que ela esboça algumas linhas em seu estudo sobre
“O segundo mandamento do Evangelho” constitui uma contribuição importante ao
pensamento cristão de nossa época.
No coração da história espiritual da
Ortodoxia, o destino de Madre Maria recapitula e
profetisa. Pobédonostsev, o temido procurador do Santo Sínodo, de
quem ele própria foi a amada criança-pupila havia-lhe ensinado o amor ao
próximo em detrimento com o amor do “afastado”; ela descobre que ele amava o
homem contra a humanidade. Os revolucionários lhe ensinaram o amor do
“afastado”: a revolução lhe mostra que eles amavam a humanidade contra o homem.
A Renascença russa lhe dá o gosto pelo espiritual - mesmo enquanto
revolucionária, jamais fora materialista - antes um massacre espiritual, sem
compromisso de vida nem poder de criação social.
Eis porque, além de nossos medos e
nossas divisões, Madre Maria nos chama - na diversidade dos carismas - à
totalidade do amor, um amor que não negligencia o condicionamento material e
social do homem. Madre Maria, que não pregava mas amava, jamais se esqueceu que
só vale aquilo que na liberdade e na comunhão torna o homem mais semelhante à
imagem de Deus nele. Encontramos ai, em função do futuro ortodoxo, um
testemunho profético.
Profético também é o destino de
Madre Maria para as relações misteriosas da Igreja e do povo judeu. Para Madre
Maria, o fato de os cristãos aceitarem voluntariamente sofrer e morrer pelos e
com os judeus apressava o momento escatológico em que o velho Israel iria
reconhecer seu Messias no Crucificado. Interrogado por um policial alemão sobre
a ajuda que dispensava aos judeus, o Padre Dimitri Klépinine, companheiro de
serviço de Madre Maria, lhe responde, de maneira doce, mostrando a cruz que ele
trazia sobre sua batina: “E esse Judeu aqui, o senhor conhece?”
Padre Dimitri morre em Dora,
dependência de Buchenwald, em fevereiro de 1944 – este local foi um dos mais
horrendos campos de aprisionamento arbitrário para judeus, franceses,
austríacos, belgas, italianos, poloneses e outros mais, criado pelos alemães e
funcionando desde o fim de 1938 até maio de 1945, data em que os presos são
libertados pela chegada dos soldados americanos e ingleses. Certo amigo deles
em comum, o judeu Élie Bounakov-Fondaminski, um dos mais interessantes
pensadores russos do período entre–guerras pede o batismo no campo de
Compiègne, mas recusa uma evasão que sua doença tornava possível. Ele quis
partilhar a sorte de seu povo. Desaparece nos campos da morte praticando - como
verdadeiro israelita - o que a mística judia e o Pai–Nosso chamam de
“santificação do Nome”. Naquela altura, o Patriarca de Constantinopla pedia a
todos os Bispos que cuja jurisdição se encontrava na Europa ocupada pelos
alemães, de fazer o impossível para salvar os judeus.
Nicolas Berdiaev, filósofo, amigo e
um dos mestres de Madre Maria havia escrito que “os cristãos se
intervêm entre Cristo e os judeus, dissimulando à estes últimos a imagem
autêntica do Salvador”, alguns anos antes. Madre Maria e seus amigos foram
destes cristãos de todas confissões que, durante o grande massacre,
começaram – por meio de um serviço desinteressado - a
revelar aos judeus o verdadeiro rosto de Jesus.
São também proféticas para nós,
ortodoxos do Ocidente, tanto a vida como a morte de Madre Maria, para tantos
jovens que desejam o amor e o risco, mas não sabem mais onde encontrar Deus.
Deus esta no centro, Ele está no coração das coisas e dos seres, na própria
densidade da matéria, no sofrimento e na criação partilhados, nos diz Madre
Maria, significativamente despertado por Tagore - Prêmio Nobel de
literatura - desde 1915, ao poder soberano do segundo mandamento. A Igreja
não é nada além deste mundo em via de deificação; na Igreja, o mundo não é mais
túmulo, antes uma matriz, molde.
Esta transfiguração do mundo exige a
contemplação - mas uma contemplação criativa -, o amor - mas um amor ativo - ,
a mais dilacerante compaixão pela pessoa e a re–invenção da vida; pois é
questão de dar aos homens não apenas o pão, mas também a beleza, o risco e a
festa.
Não podemos esquecer que Madre Maria
sabia criar esses locais privilegiados onde a vida circula e se abraça. Ela os
ornava com ícones e tapeçarias. Escrevia sem cessar: tanto poemas como
verdadeiros “mistérios” que ainda esperam ser apresentados ao público.
Madre Maria não era ativista e sim
poetisa da vida, sempre no coração do lugar criador onde se realiza esta
“santidade que teria algo genial”, tão desejado por uma de suas contemporâneas, Simone
Weil, judia amorosa por Cristo, pela justiça, pela pobreza, pela beleza e cujo
destino - mesmo se está longe de ter conhecido a mesma plenitude - não é sem
analogia como seu.
O destino de Madre Maria sublinha a
extraordinária diversidade da Ortodoxia contemporânea. Ele também coloca um
problema real à Igreja Ortodoxa, tanto para os dias de hoje como para o amanhã,
aquele de novas formas de vida monástica onde o segundo mandamento do Evangelho
ocuparia o lugar central.
Madre Maria quis tornar–se monja não
para assumir a tradição monástica eremítica ou cenobítica - ainda menos esta do
que aquela - mas para manifestar seu compromisso sem retorno. A fim
de se livrar, se doar totalmente. Inevitavelmente, encontra–se em contradição
com as atitudes tradicionais. O que ela desejava, não nos cabe a nós realizar?
Quando o Metropolita Euloge
(Evlógio) recebe sua profissão monástica, ele lhe dá como morada ascética o
“deserto dos corações humanos”. O que Madre Maria desejou, mas com mais
veemência e força criadora, um sentido mais aguçado - quase anárquico - da
liberdade no Espírito Santo, é um pouco o que o Cristianismo Ocidental tem,
doravante, procurado nas pequenas fraternidades carismáticas. Não temos aí um
chamado para os dias de hoje?
Ao lado da tradição dos grandes
“silenciosos” e alimentada por ela - fonte mais do que nunca necessária - não
precisamos de grandes criadores de amor, de grandes criadores de
vida para lavrar e fecundar o “deserto dos corações” humanos? Não é mais tempo
de se opôr.
Uma última palavra, também contrária
aos hagiógrafos. Se amamos, se veneramos Madre Maria, não é apesar de sua
desordem, suas estranhezas, paixões. Mas, em virtude de tudo que fazem
dela - dentre tantos mortos piedosos, tantos mortos suaves - alguém
extremamente vivo. Feia e suja, forte, densa - sim, viva.
Suas paixões, sua compaixão, sua
paixão.
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