Igreja - Fonte da identidade do homem e do mundo

RADOVITCH Metropolita Amfilohije
tradução de monja Rebeca (Pereira)


Segundo seu ensinamento e sua experiência seculares, a Igreja de Deus enquanto “reunião (assembléia) em torno de Cristo” – o Logos Eterno de Deus “por Quem todas as coisas foram feitas” (Jo. 1, 3) e que, por Sua Encarnação, Sua Transfiguração, Sua Crucifixão e Sua Ressurreição tornou-Se um de nós – a Igreja, logo, é a própria identidade do mundo e do homem. Isto significa que a Igreja é justamente este fundamento, este “firme fundamento das coisas que se esperam” (Hb. 11, 1); o que está fixado, sempre o mesmo, mas sempre novo no mundo, no homem. No tempo, na história, a Igreja é o fermento da eternidade; na eternidade, a Igreja é o Reino Celeste. O escathon é a medida, o critério e a plenitude de sua existência e de sua senda históricas. Por isso, não é por acaso que o Apóstolo das Nações, o Apóstolo Paulo, chama a Igreja “Coluna e firmamento da Verdade”. Em torno da Igreja como Coluna e firmamento da Verdade se reúnem o tempo e o espaço, tudo que aconteceu, tudo que acontece e tudo que nela acontecerá. Para Igreja, o que é mutável e efêmero, recebe um sentido verdadeiro e a força de imutabilidade. O mundo não foi criado para si mesmo. Ele foi criado para tornar-se Igreja, da mesma maneira com que o homem foi criado com potencial do “Deus-homem”. É por esta razão que São Gregório de Nissa afirma de maneira clarividente que “a criação do mundo é a criação da Igreja”.

A Igreja, enquanto atelier da vida, é tecida na natureza da criação do ser, ela alimenta toda criação e, em primeiro lugar, o homem como sua coroa, pelo Pão de Vida “que desce do céu” (Jo. 6, 48-50). E cada homem que come deste Pão de Vida “não morre, mas tem a vida eterna” (Jo. 6, 50). O que significa isto? Isto significa que o mundo, a criação em sua integridade, sem o Logos de Deus, sem o Deus-homem não tem e não pode ter verdadeira identidade. A comunhão com o Logos de Deus e a possibilidade desta comunhão se encontram na plenitude do ser e da existência, o próprio ser, sem comunhão com Ele e com os outros seres não pode ter verdadeira identidade. Não é por acaso que São Cipriano de Cartago, na Igreja antiga,  diz ao viver que ia a existência na comunhão como o único princípio verdadeiro de existência: “Unnus Christianus – nullus Christianus”, o que significa que o cristão isolado, o cristão sem comunhão com os outros cristãos não pode ser cristão.

A Igreja é o excesso do princípio individual da existência pela vida na comunhão. É o que, corretamente, é chamado de “existência personificada”, quer dizer a existência na comunhão. Por comunhão, não podemos sub-entender aqui a simples existência na sociedade, na comunidade social. O homem é “um ser social”. Todavia, esta sociedade histórica e esta sociabilidade humana têm um sentido e são dignos de respeito somente se esta “sociabilidade” do homem sugere a sociabilidade sobre o plano eterno, sobre o plano do Reino de Deus.

A comunidade da Igreja não é a mesma coisa que a sociedade biológica, ainda que contenha nela própria este plano biológico da existência humana. A comunhão da Igreja não pode se identificar nem com a sociedade-psicologia humana, ainda que contenha em si mesma e preserve este nível biológico da existência humana.

A Igreja, enquanto comunhão divino-humana contém e guarda em si tudo isto, mas lhe dá um conteúdo e um sentido novos, ela lhe traz um novo dinamismo no Espírito Santo, conferindo-lhe um novo e eterno nível de existência. O dinamismo do princípio biológico e socio-psicológico da existência, sem a novidade eterna do dinamismo do Espírito Santo, não passa em si-mesmo, definitivamente, de um dinamismo trágico, um “salto no vazio”, uma “transferência do abismo ao vazio”. A medida deste dinamismo, desta progressão e desta crença segundo o Deus-homem, segundo o Espírito Santo, é infinita e ilimitada.

Quando Cristo diz: “Eis que faço novas todas as coisas” (Apocalipse 21, 5) não é uma simples afirmação filosófica, nem uma metáfora poética. É a verdade de base, a verdade fundamental da vida, precisamente pela razão de ser a verdade fundamental da Igreja. Cristo não abrogou “a Lei e os Profetas” (Mt. 5, 17), quer dizer que Ele não aboliu nem ameaçou a Lei do Antigo Testamento. Conservando tudo, Cristo cumpre e dá a plenitude à todas as coisas, através da possibilidade de crer “à medida da estatura completa de Cristo “ (Ef. 4, 13), a qual, como já dizemos, é infinita e toda perfeita.

Vista à luz desta novidade e deste dinamismo, a história da Igreja até nossos dias, não passa do princípio de sua manifestação e de Sua Encarnação na vida do mundo e do homem, quer dizer na vida da humanidade. Isto significa que a história da Igreja e, por via de consequência, a história do mundo e do homem, seu progresso e sua crença, não estão no fim, antes no início. A história duas vezes milenar da Igreja não passa do início de seu efeito divino-humano e de sua presença eficaz na vida da humanidade. Em relação a esta perfeição da qual a Igreja testemunha, e à qual chama os homens e os povos, ela é sempre o fermento adicionado na massa deste mundo e do homem. A plenitude de sua verdade e de sua vida foi realizada até agora por um pequeno número de homens santos de Deus. E mesmo até junto deles, não passa de um ante-gosto daquilo que Deus prometeu e “preparou para aqueles que O amam” (I Cor. 2, 9).

A plenitude da vida em geral e também da vida da Igreja, a plenitude da comunhão com Deus, mas também com toda criação divina, não se realizam em totalidade na história, mas somente de forma parcial e antecipada. Esta plenitude só se realiza na meta-história, no escathon. Provada de maneira antecipada  na comunhão histórica da Igreja, pelos Santos Mistérios e as Santas Virtudes, e antes de tudo na Santa Eucaristia, na comunhão ao Corpo e Sangue de Cristo. O escathon é revelado de maneira oculta aos homens. Como tal, como estado “final” do mundo, para além, o escathon permanece o desafio constante para o homem e o apelo a uma perfeição sempre mais profunda.

Segundo esta imagem vetero-testamentária, o escathon “se renova como a águia”, como a juventude eternamente nova do mundo e do homem. O renovo e a novidade eterna está na natureza de tudo que existe, da criação inteira pois que, pela Encarnação, a Transfiguração, a Crucifixão e a Ressurreição de Cristo, “o quê é unicamente novo sob o sol” derramou-se uma vez por todas na criação. Aquele que é “o único novo sob o sol” é o Deus-homem Cristo, e por Ele, o poder eternamente renovador e vivificante e a energia da Divindade Trinitária – do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

Neste enrraizamento e neste conceito dinâmico da história do mundo e do homem, e logo da história da Igreja, somente é essencial Aquele que é plenitude, Aquele que é Omega – o Fim de todas as coisas (Apocalipse 21, 6). Ele é ao mesmo tempo o Começo de todas as coisas (Apocalipse 1, 8). Isto significa então que a identidade de tudo que existe, de tudo que é, se encontra na Pessoa do Deus-homem Cristo, na comunhão das pessoas à imagem de Deus com o Deus-homem Cristo, na relação e na comunhão personificadas com o Deus-homem Cristo. E é isto que é a Igreja, como organismo divino-humano e apelo a realizar, segundo as palavras de São Gregório o Sinaita “o estado divino-humano do Filho” na vida do mundo e do homem. Como tal, a Igreja é o “Mistério de Cristo” e simultaneamente, ela é “sacramentum mundi”, o Santo Mistério do mundo.

A IGREJA COMO VIDA DO HOMEM E DO MUNDO
A questão da Igreja e da identidade do homem e do mundo pode ser ainda colocada à luz da seguinte questão: “A identidade do homem e do mundo constitui uma categoria mutável ou imutável?

A identidade do mundo e do homem se revela tanto no princípio de seu futuro como no princípio de sua existência. O mundo e o homem foram criados desde o início por Deus como “muito bons” (Gn. 1, 31), mas também como destinados e chamados, na livre sinergia com Deus, a crerem até à perfeição. O homem e o mundo, por eles mesmos, não podem existir de maneira perfeita. A imperfeição do próprio modo de existência é a causa do caráter mutável do mundo e do homem. Esta instabilidade está “incorpordada” na própria natureza do mundo e do homem como pré-condição e possibilidade de uma “progressão ao melhor”, quer dizer de seu crescimento e perfeição. Diante do homem e diante do mundo se destaca o apelo de Cristo, inscrito em sua própria natureza como possibilidade: “Sede perfeitos, como vosso Pai Celestial é perfeito” (Mat. 5, 48).

A Santíssima Trindade – o Deus Vivo que Se revela ao mundo e ao homem em Cristo Deus-homem, como Comunhão absolutamente perfeita de Pessoas perfeitas, é o fundamento e o objetivo final da vida do homem e da comunhão humana, e de toda comunidade no mundo. De lá o homem e a sociedade humana, bem como a qualidade de mudança  neles, dependem de sua orientação e de sua relação para com o Deus-homem Cristo, na qual “habita toda plenitude da Divindade” (Co. 2, 9), quer dizer que eles dependem de sua relação existencial para com Cristo. Todavia, o homem e o mundo podem subsistir apesar da imperfeição da natureza.

A substância apesar da imperfeição da natureza ou, pelo menos, a orientação desta instabilidade do homem e do mundo “ao pior”, constituem outra possibilidade do homem e do mundo. Desta maneira, o homem e, no homem, o mundo do ser criado para a vida eterna e a comunhão com Deus, movendo-se por esta orientação ao “pior” se transforma, segundo as palavras do célebre filósofo Martin Heidegger em “ser-para-morte” (Sein zum Tode). Neste caso, ele nasce e resulta da imperfeição e do caráter mutável do mundo e do homem, segundo a liberdade humana, a pecaminosidade (orientação ao mal) e a corrupção do homem e do mundo. Pelo uso abusivo do dinamismo dado por Deus, o homem e a sociedade humana, no lugar de se edificar e se aperfeiçoar, se desagregam, se destróem, se obscurecem e tornam-se insensatos, perdendo sua verdadeira identidade. Assim, como diz “o ensinamento dos doze Apóstolos”, existem duas vias sobre as quais o mundo e a humanidade caminham: a via da vida e a via da morte (Didaquê 1,1). Não existe uma terceira. A via da vida é a via do amor para com o Deus Criador e o amor, como por si mesmo, pelo próximo à imagem de Deus (Didaquê 1, 2). A via da vida é a via da Igreja de Cristo, a via da verdadeira identidade do homem e do mundo na Igreja como Corpo do Cristo.

A Igreja “não é deste mundo” (Jo. 8, 23), quer dizer deste mundo decaído – deste mundo aos desígnios maléficos, deste mundo “que jaz no poder do mal” (I Jo. 5, 19), deste mundo que perdeu sua verdadeira identidade. Todavia, a Igreja está ao mesmo tempo no mundo, como o fermento Divino da nova comunidade, da nova sociedade que se aperfeiçoa sem cessar nesta comunhão com Deus, comunhão crescente à perfeição. Iluminando o mundo  e trazendo-lhe luz de dentro, a Igreja lhe revela sua verdadeira identidade. Ela lhe revela pela sua presença e pelo seu testemunho o caráter momentâno e o ao que ele é chamado a ser.

A Igreja não existe para si própria. Assim como Seu Senhor e Chefe Eterno, a Igreja está no mundo “para servir e dar sua vida em resgate de muitos” , “pela vida do mundo” (Mt. 20, 28; Jo. 6, 51). Toda alienação da Igreja em relação à vida do homem, à sociedade e aos seus problemas, significaria e significa sua alienação em relação a ela própria, à sua própria natureza, ao seu sentido e sua missão no mundo e na história da humanidade.

Terminamos esta curta reflexão acerca da Igreja e da identidade do mundo e do homem pelas palavras da célebre oração sacerdotal que contém tudo, e que Cristo pronuncia nas vésperas de Sua Paixão, ao saber de Seu sacrifício “pela vida do mundo” (Jo. 6, 51): “Para que todos sejam um, como Tu, ó Pai, o és em Mim, e Eu em Ti; que também eles sejam um em nós” (Jo. 17, 21).

 

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