Teologia Ortodoxa e Modernidade

NAHAS Georges
tradução de monja Rebeca (Pereira)


A problemática:
· Existe alguma contradição entre a Teologia Ortodoxa e a Modernidade?
· Existe realmente um empecilho entre a Tradição e o Pensamento Moderno?
· Será que a Ortodoxia é feita para um testemunho que ultrapassa em seus fundamentos o tempo e o espaço?

Teologia Ortodoxa: que definição?
Esta é uma falsa problemática. Muito geralmente existe uma confusão entre a mensagem e os mensageiros: a mensagem é estável e deve guardar sua limpidez: os mensageiros são “anunciadores” passageiros e limitados. A Teologia Ortodoxa é a maneira que a Mensagem é traduzida na Oração, para o serviço do Mundo, pela Linguagem própria ao Tempo e Lugar do Testemunho. A confusão entre Mensagem e mensageiros induz os seguintes erros:

· Dar um valor de absoluto ao que não é;
· Relevar ao lugar de mensagem o quê não passa de uma tradução temporária e pessoal;
· Trocar o fim pelas formas.

A Igreja, enquanto comunidade de fiéis através do tempo deve diferenciar entre estes dois constituintes complementários, mas não iguais em valor.

Modernidade, História e Pensamento
A modernidade é uma noção relativa que depende: da dimensão histórica, da dimensão conceitual e da dimensão social. No século XX, a noção da modernidade tornou-se uma noção filosófica; em nossos dias, falamos de pré-modernismo, de modernismo e de pós-modernismo. Em sua essência, a questão gira em torno do papel do pensamento humano na evolução da Humanidade. Eis porque, os ensaios de diabolização da modernidade e/ou do pensamento são anacrônicos e não podem ter fundamento na Teologia Ortodoxa. A modernidade é independente da Igreja, mas esta deve levá-la em conta. Não se trata de tudo aceitar, mas não se deve também diabolizar tudo. Este fato levanta três questões interdependentes:

·  Devemos denegrir o papel do Pensamento tomando a Revelação como pretexto?

·  Podemos denegrir o papel do Pensamento em nome da teologia?
· Uma integração entre Pensamento e Teologia é possível a partir da Tradição Ortodoxa?

Do ponto de vista ortodoxo, as respostas a tais questões só podem decorrer de uma compreensão aprofundada da teologia e um conhecimento objetivo dos questionamentos do Pensamento moderno. Toda tentativa redutiva risca de ter consequências nefastas sobre o testemunho cristão. Donde a questão de saber quais são os imperativos que podem permitir à Teologia Ortodoxa de dar conta do amor de Deus pelo Mundo e a eminência de sua Presença?

Algumas reflexões sobre a Teologia Ortodoxa
1) Teologia Ortodoxa e vida em Cristo

Não existe Teologia na Ortodoxia que não seja inerente à crença das pessoas e da comunidade em Cristo. O canto do batismo é muito revelador em seu sentido. A abordagem da teologia não é uma abordagem adicionada como um produto de luxo. A teologia está lá para ajudar fiéis e Igreja a melhor assumir o fato de que são “cristóforos”. Assim, TODO batizado é potencialmente chamado a crer em Cristo assumindo sua vida e as condições nas quais ele evolui. A vida em Cristo perde um sentido se for uma vida à qual somente os eleitos são chamados. O que vai de par com a noção da “Salvação” tal como defendida pela Tradição Ortodoxa. É por isso que o cristão não pode se subtrair ao mundo, e assim fugir da modernidade; ela é, ao contrário, lugar de testemunho, ocasião de viver sua fé e horizonte para valorizar a presença de Deus no mundo. Na Igreja Ortodoxa, não existe eleitos, separação entre Igreja que ensina e Igreja ensinada: somos todos chamados a testemunhar na Igreja.

2) Teologia Ortodoxa e Dimensão Comunitária

Outro aspecto fundamental da Teologia Ortodoxa é seu aspecto comunitário. O encontro das teologias latina e protestante (sendo a primeira uma teologia “descendente” e a segunda uma teologia “individualizante”), a Teologia Ortodoxa está baseada sobre a interação entre as pessoas e a comunidade num espírito de comunhão. A Consciência da Igreja é o penhor da perenidade da Presença de Deus no mundo. É esta dialética contínua que faz com que os indivíduos guardem sua especificidade e engajem a comunidade a melhor assumir suas responsabilidade e a comunidade permanece garantia pelo seu julgamento e sua sabedoria que seus membros respeitam a essência da Fé e da Tradição. É por isso que a noção sinodal de “Sobornost” é inerente à Práxis ortodoxa. Esta dimensão comunitária toma mais valor num mundo moderno, cujos limites se diminuem e que tem cada vez mais necessidade de desenvolver laços de comunicação. Os cristãos vivem e testemunham num espaço secularizado mas não necessariamente em posição de adversidade.

A visão dialética da dimensão comunitária dá então aos indivíduos a possibilidade de se fortalecer nos fundamentos da Fé dos quais a Comunidade é a garantia e à Comunidade de permanecer presente no mundo e alerta às necessidades por meio dos crentes que ai testemunham de sua fé.

O individualismo defendido pelas teorias filosóficas modernas (baseadas por vezes sobre abordagens teológicas ocidentais) é diametralmente oposto à esta visão ortodoxa.

3) Teologia Ortodoxa e testemunho

Uma terceira dimensão inerente à Teologia Ortodoxa é  o fato da Redenção ser indispensável. A Redenção não é para os ortodoxos um simples acontecimento histórico, mas um dogma de fé e logo de vida: não testemunhar equivale a não crer. Tal é o grande dilema atual da Ortodoxia. Isto é tão válido para Comunidade com para seus membros.

Os membros devem poder ligar suas vidas à sua fé e serem capazes de dar conta disto enquanto a comunidade deve, ela também, ser uma comunidade que testemunhe em seus atos estando consciente de seus membros em sua prática. É uma lástima que alguns meios ortodoxos reduzam o fato do testemunho somente à vida litúrgica de Igreja.

Enquanto profundamente litúrgica, a vida da Igreja não é menos bíblica. E neste sentido, deve ser traduzida hoje, sempre, e nas condições do mundo e do homem atuais, a mensagem evangélica. A própria Teologia Ortodoxa reside em sua defesa da Unidade trinitária através de sua Visão dela própria e de seus membros.

O indivíduo é chamado a ser totalmente “íntegro” em todas as suas dimensões, à imagem da Trindade. A comunidade deve também ser “íntegra” em sua vida “à imagem do Cristo encarnado (da qual ela constitui a Mensagem) a fim de que sua face visível seja reveladora da força que nela está (aquela do Espírito Santo) e pela qual ela reconhece o Pai como sendo a Fonte de todo bem no mundo.

A Igreja deve ser responsável pelo mundo: esta responsabilidade é um dever divino. A Igreja Ortodoxa possui em sua teologia as bases necessárias para ser um válido interlocutor da Modernidade. Cabe à Igreja, enquanto “anunciadora” de ir a diante do mundo fazendo-lhe passar a mensagem da Vida.

Algumas problemáticas da Modernidade
1)Existe algum denominador comum?

A partir do século das Luzes do famoso “penso logo existo” de Descartes, um individualismo excessivo se estabelece no pensamento moderno, ao qual a teologia protestante não é estrangeira. Por outro lado, os “magister dixit” da teologia latina são levados em questão sobretudo após a Revolução Francesa que proclama nos Direitos do Homem um novo registro de mandamentos. A Igreja do Oriente, sob pressão de todas as partes onde é maioria não podia fazer parte de sua especificidade e fazer ouvir um som de sino cristão diferente. Por outra parte, podemos gravar os seguintes macro fenômenos:

· O desenvolvimento das Ciências exatas e aplicada a partir do XX século com a questão de certos fundamentos éticos;
· A ausência de espaço de comunicação entre o Mundo em curso de modernização e as Igrejas;
· O fim do XX século viu nascer a informática e a Revolução das comunicações, o que deu novamente ao Homem um porte planetário.

As Igrejas (sobretudo a Igreja Ortodoxa) não fizeram evoluir paralelamente seu discurso. Quando o fizeram, o fizeram em reação – e não em harmonia com – a Evolução do mundo moderno. Eis porque todas as problemáticas atuais da Modernidade parecem ter por denominador comum a confusão filosófica entre “pessoa” e “indivíduo”, fazendo do indivíduo um fim em si, independentemente de seu meio, de sua comunidade e do mundo, a primazia dada a tudo que é quantificável (logo visível e mesurável) em detrimento ao que é qualitativo (logo ligado à natureza das coisas e ao seu valor), a importância relativa dada por toda parte ao discurso religioso confinando-o no que é propriamente intrínseco as religiões, o retorno ao sagrado que falamos aqui ou lá não é no sentido da integração, mas naquele do interesse intelectual ou pietista que certas comunidades ocidentais conheceram.

Algumas abordagens optam por um discurso legislador, estando em desacordo com a abordagem ortodoxa e imerso em fundamentalismo.

Alguns casos
1)   Pessoa e sociedade

A noção de “Direito” fez sua aparição com as revoluções americana e francesa. O XX século viu a publicação de uma série de cartas sobre os direitos. Apesar da importância destes textos, não podemos deixar de remarcar a precedência dada ai ao “direito” face à noção de “dever” ou de responsabilidade.

A triangular Liberdade-Igualdade-Fraternidade é questionável. Pois, de fato:

·  Que liberdade tem o indivíduo no quadro social e como esta liberdade está ligada à noção de responsabilidade?
· Que igualdade exaltar num mundo onde as sociedades são múltiplas e não harmoniosas intrinsecamente?
· Que fraternidade existe num mundo dividido pela pobreza, a luta das classes, a ausência de critérios humanos de responsabilização?

Tais questões são raramente colocadas num mundo excessivamente politizado e regulado apenas por interesses econômicos.

Por um lado, o indivíduo considera que sua identidade afirma “contra” o outro; eis porque ele insiste sobre seus direitos e minimiza a importância de suas responsabilidades.

A sociedade tem para consigo própria um olhar individualista em relação as outras sociedades e normativo para como seus membros, o que se traduz por seus antagonismos externos e internos. Lá ainda, as abordagens cristãs não são idênticas.

Enquanto a teologia protestante se satisfaz do individualismo como princípio na própria base de sua teologia, a teologia latina faz a opção de um discurso ambíguo que historicamente conheceu muitas mudanças e na qual a pessoa humana é reduzida a uma dimensão receptiva. A Teologia Ortodoxa defende claramente a noção de peso numa abordagem antropológica, infelizmente muito pouco conhecida e ainda menos vivida.

Isto não impede que a Teologia Ortodoxa proponha, de fato, uma triangular de substituição baseada sobre um princípio da Encarnação. Isto não está em oposição com o conteúdo, mas como complemento em nível de seus atos.

A liberdade só tem valor no contexto da Responsabilidade que lhe cria limites.

A Igualdade só tem valor no Serviço que a materializa ao cotidiano. De um ponto de vista ortodoxo, pessoas e sociedade são chamadas a dar a mesma importância aos triangulares.

Liberdade-Igualdade-Fraternidade: Responsabilidade-Amor-Serviço (é uma medida que a Igreja deveria adotar para si mesma)

2)   Ética e Moral

Uma questão fundamental que portanto é colocada com uma dimensão muito pequenina no pensamento moderno e no pensamento religioso é aquela da Ética, em suas relações com as normas e os valores:

A ética é sinônimo de Moral?
As normas substituem os valores?
Existe um absoluto a se defender no discurso da Ética?

Em nome da liberdade do indivíduo, a Modernidade é para relativização da abordagem. O aspecto social é colocado em valor para criar um quadro jurídico muito mais do que para dar elementos de resposta. Muitos casos de figura do pensamento moderno só podem ser discutidos no contexto desta oposição, como por exemplo:

· A noção de Justiça quando colocada em paralelo com o Legal cria uma oposição entre Ética e Moral;
· A noção de Democracia quando colocada em paralelo com a noção de “rightness”;
· A noção de Propriedade quando colocada em paralelo com aquela do Bem comum.

O problema reside justamente no fato de que a Ética tornou-se sinônimo de Moral, em virtude da individualização do pensamento, as normas substituíram os valores por causa do materialismo ambiente e o pensamento religioso ocidental tem duas escolhas muito opostas.

Estas escolhas são: a teologia latina argumenta por uma abordagem jurídica a partir da casuística e a teologia protestante argumenta por uma abordagem baseada sobre uma moral individual em nome da liberdade da pessoa. A Teologia Ortodoxa se recusa claramente em qualquer tomada de decisão que tornasse impossível uma flexibilidade dando conta das situações e considerações em causa.

É uma posição de fraqueza no quadro da Teologia Ortodoxa? Sim e não. É uma posição de fraqueza quando esta “economia” não tem critérios. Isto (e é o caso hoje) dá a impressão que a Igreja Ortodoxa não tem nada a dizer do mundo de hoje e não desenvolveu um discurso de diálogo com a modernidade, resumindo-se a uma Igreja pietista na qual a práxis está em contradição com seu discurso sobre a Encarnação.

É uma posição de força em duas condições complementares: se a Igreja Ortodoxa desenvolve um processo de reflexão contínua sobre os problemas de Ética concernindo o mundo de hoje e se a Igreja Ortodoxa desenvolve práticas de enquadramento (a todos os níveis) que colocam em destaque a realidade de seu acompanhamento dos interesses das pessoas e das sociedades.

Corpo, Carne e Ser
O problema do Corpo é um problema central na abordagem moderna.A objetivação do Corpo é um sintoma visível e corrente, a banalização da relação ao Corpo é aceita de maneira simples sendo um resultado natural da visão de que o mundo moderno tem o Homem em geral e os indivíduos em particular.

Quando o mundo moderno se interessa pelo aspecto corporal, ele o faz no sentido da moral ambiente, no sentido das “éticas de salvaguarda” da sociedade, no sentido científico para afastar as derivas potenciais.

A abordagem cristã é diametralmente oposta àquela do mundo moderno. Ela recusa tanto a objetivação como a banalização, respeita a expressão corporal como sendo parte integrante da especificidade humana, denuncia toda deriva em nome da Ciência e por este meio se implica no cuidado mundial da Bioética.

Apesar disto, o discurso cristão não é unânime em relação ao mundo moderno: o discurso protestante, mais aberto permanece focado sobre o aspecto individual enquanto o discurso latino permanece moralizante e não leva em consideração as dimensões sociais atuais. O pensamento ortodoxo, quanto a ele, está longe de ser claro e adaptado ao diálogo com o mundo hoje. Portanto, a Teologia Ortodoxa tem a possibilidade de produzir um discurso inovador, apresentando sua visão antropológica que defende a unidade da pessoa humana; recapitulando a diferença a fazer entre Corpo e Carne (cf. São Paulo), aliando seu discurso ético à sua concepção de Ser como sendo chamada a “ser”, sustentando a dimensão social sem no entanto tornar-se dela escrava, considerando a vida em comunidade como uma condição sine qua non da pedagogia da Igreja.

Mas, de fato, o problema todo permanece, porque não tivemos até então a coragem de rever nosso discurso ambíguo a propósito do Corpo. Nosso sistema paroquial de acompanhamento pedagógico é embrionário e esparso. Não fazemos da Ética um afazer sério em nossa reflexão teológica.

Conclusão
A Teologia Ortodoxa tem o potencial de entrar em diálogo com a Modernidade. Ela tem uma especificidade que lhe permite ter um discurso permanecendo, no entanto, em conformidade com a Tradição. A Igreja Ortodoxa tem necessidade de fóruns de discussão entre pastores, homens e mulheres de ciência, homens e mulheres de boa fé, jovens rapazes e donzelas, sociólogos e pedagogos, a fim de elaborar na continuidade uma visão do futuro.

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