Liberdade humana face a Deus
LOSSKY Vladimir
tradução de monja Rebeca (Pereira)
A filosofia antiga conhecia a condição
central do homem e a exprimia pela noção do “microcosmo”. Para os estóicos, em
particular, se o homem é superior ao cosmos é pelo fato de poder resumi-lo e dar-lhe
um sentido: pois, de fato, o cosmos é um grande homem, assim como o homem um
pequeno cosmos.
A idéia do microcosmos foi retomada pelos
Padres, mas com uma rigorosa ultrapassagem de todo imanentismo. “Não há nada de
mais remarcável, diz São Gregório de Nissa, do fato de o homem ser à imagem e
semelhança do universo: pois que a terra passa, o céu muda e todo seu conteúdo
é tão efêmero quanto o contentor”.
A verdadeira grandeza do homem não está em
sua incontestável parentela com o universo, mas em sua participação à plenitude
divina, no mistério nele da “imagem” e da “semelhança”. “Em minha qualidade de
terra, estou ligado à vida daqui de baixo, escreve São Gregório de Nazianzo:
mas sendo também uma parcela divina, trago em meu seio o desejo da vida
futura.”
O homem é um ser pessoal como Deus, e não uma
natureza cega. Tal é o caráter da imagem divina nele. Sua relação com o universo
se encontra, de qualquer forma, invertida em relação as antigas concepções: no
lugar de se “desindivialuzar” para “se cosmizar” e assim se fundir no divino
impessoal, sua relação absoluta de pessoa com um Deus pessoal deve lhe permitir
“personalizar” o mundo. O homem não se salva mais através do universo, mas sim
o universo através do homem. Pois o homem é a hipostáse do cosmos inteiro que participa
à sua natureza. E a terra encontra seu sentido pessoal, hipostático, no homem.
O homem, para o universo, é a esperança de receber a graça e de se unir a Deus,
mas também o perigo da derrota e da decadência. “A criação espera ansiosamente
esta revelação dos filhos de Deus, escreve São Paulo. Em efeito, é à vaidade
que a criação foi sujeitada, não por sua vontade, mas em virtude daquele que a
sujeitou, com outrora a esperança de que a criação também fosse liberada da
escravidão da corrupção para participar à liberdade gloriosoa dos filhos de
Deus” (Rom. 8, 19-21). Submetida à desordem e à morte pelo homem, a criação
espera do homem, tornado por graça filho de Deus, sua libertação.
O mundo segue o homem, por ser como sua
natureza: “a antroposfera”, poderíamos dizer. E este laço antropocósmico se
realiza quando se realiza aquele da imagem humana com Deus seu protótipo: pois
a pessoa não pode, sem se destruir, pretender possuir sua natureza, sua
qualidade notoriamente de microcosmo no mundo, mas encontrar sua plenitude
quando a dá, quando assume o universo para oferecê-lo a Deus.
Somos então responsáveis pelo mundo. Somos a
palavra, o logos, no qual ele se fala, e ele só depende de nós, que o blasfemamos
ou o rogamos. Através de nós o cosmos, tal como o corpo que o prolonga, pode
receber a graça. Pois não somente a alma, mas o corpo do homem foi criado à
imagem de Deus. “Juntos, foram criados à imagem de Deus”, escreve São Gregório
Palamas.
A imagem não pode, então, ser objetiva,
“naturalizada”, poderíamos dizer, sendo atribuída a qualquer parte do ser
humano. Ser à imagem de Deus, afirmam os Padres em última análise, é ser um ser
pessoa, quer dizer um ser livre, responsável. Por que - poderíamos perguntar -
Deus criou o homem livre e responsável? Justamente porque queria chamá-lo a uma
vocação suprema: a deificação, quer dizer, tornar-se pela graça, num elan
infinito com Deus, o que Deus é por Sua natureza. Ora, este apelo exige uma
resposta livre, Deus quer que este elan seja um elan de amor. A união sem amor
seria automática, e o amor implica a liberdade, a possibilidade de escolha e de
recusa. Decerto, existe um amor não pessoal, cego movimento do desejo, servo de
uma força natural. Mas este não é o amor do homem ou do Anjo por Deus: senão,
seríamos animais que se ligam a Deus por meio de uma atração obscura de tipo
sexual. Para sermos o quê devemos ao amarmos Deus, é necessário admitir que
possamos ser o contrário, é necessário admitir que possamos nos revoltar. A
resistência à liberdade dá seu sentido à adesão. O amor que Deus reclama não é de
ordem física, mas tensão viva dos contrários. Esta liberdade vem de Deus: ela é
o sêlo de nossa participação divina, o chefe-de-obra
do Criador.
Um ser pessoal é capaz de amar qualquer um
mais do que sua própria natureza, mais do que sua própria vida. A pessoa, quer
dizer a imagem de Deus no homem, é, logo, a liberdade do homem em função de sua
natureza, “o fato de estar liberto da necessidade e de não estar submisso à
dominação da natureza, mas do poder se determinam livremente” (São Gregório de
Nissa). O homem age muito geralmente sob impulsões naturais: ele é condicionado
pelo seu temperamento, seu caráter, sua hereditariedade, o ambiente cósmico ou
psico-social, ver sua própria historicidade. Mas a verdade do homem está para
além de todo condicionamento, e sua dignidade, de poder se liberar de sua
natureza, não para consumi-la ou abandoná-la a si mesma como a sabedoria antiga
ou oriental, mas transfigurá-la em Deus.
O objetivo da liberdade, explica São Gregório
de Nazianzo, é que o bem pertença, em próprio, àquele que o escolhe. Deus não
quer permanecer possuidor do bem que criou: Ele espera do homem mais do que uma
cega participação, toda natural. Ele quer que o homem assuma conscientemente
sua natureza para possui-la livremente como boa, para reconhecer com gratidão
na vida e no universo os dons do amor divino.
Os seres pessoais constituem o apogeu da
criação, pois que podem tornar-se Deus por livre escolha e pela graça. Com
eles, o todo-poder divino suscita uma “intervenção” radical, uma novidade
integral: Deus cria seres que, tal como Ele, podem – lembremos o Conselho Divino
da Gênesis – decidir e escolher. Mas estes seres, no entanto, podem decidir
contra Deus: não é para Ele o risco de destruir Sua criação? Este risco, faz-se
necessário responder, deve
paradoxalmente se registrar, no auge da onipotência. A criação para inovar
“verdadeiramente suscita o outro”: quer dizer um ser pessoal capaz de recusar
aquele que o criou. O auge do todo-poder é detido assim como uma impotência de
Deus, como um risco divino. A pessoa só é a mais alta criação de Deus pelo fato
de Ele colocar nela a possibilidade do amor, logo da recusa. Deus arrisca a
ruína eterna de Sua mais alta criação, a fim de que ela seja justamente a mais
alta. O paradoxo é irredutível: em sua própria grandeza, que é do poder de
tornar-se Deus, o homem é falível: mas sem falibilidade, nada de grandeza. Eis
porque, como afirmam os Padres, o homem deve passar pela provação, a peira, a fim de tomar consciência de sua
liberdade, do livre amor que Deus dele espera.
“Deus criou o homem como um animal que recebe
a ordem de tornar-se Deus”, diz uma grave palavra de São Basilio que São
Gregório de Nazianzo relata. Para executar tal ordem, é necessário poder
recusá-la. Deus torna-Se impotente
diante da liberdade humana; Ele não pode violá-la por ela proceder de Seu
todo-poder. Decerto, o homem fora criado pela única vontade de Deus, mas não
pode ser deificado por ela somente. Uma única vontade para toda criação mas
duas para deificação. Uma única vontade para suscitar a imagem, mas duas para
fazer da imagem a semelhança. O amor de Deus pelo homem é tão grande que não
pode contrariar: por não ser um amor sem respeito. A vontade divina se
submeterá sempre aos tateamentos, aos desvios, e as próprias revoltas da
vontade humana para conduzi-la a um livre consentimento: tal é a providência
divina, e a imagem clássica do pedagogo parecerá fraca a qualquer que
pressentir Deus como um mendigo de amor esperando à porta da alma e não ousando
jamais forçá-la.
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