A câmara interior do coração
ROSTOV SÃO DMITRI DE
tradução de monja Rebeca (Pereira)
1) ENTRA NA TUA CÂMARA INTERIOR E FECHA A PORTA
Existem muitos dentre vós que não têm
conhcimento algum do esforço que requer a lembrança contínua de Deus. Muitos
ignoram mesmo o que quer dizer: “Lembrar-se de Deus”; nada sabem a respeito da
oração espiritual, porque imaginam que a única via normal para orar consiste em
fazer uso das orações (escritas) que encontramos nos manuais da Igreja. Quanto
à comunhão secreta com Deus no coração, nada conhecem, e nem ainda o proveito
que dela podem gozar; talvez não provarão jamais a doçura espiritual. Aqueles
que ouvem falar da meditação espiritual e da oração, mas no entanto, não têm
nenhum conhecimento direto são como os cegos de nascença que ouvem falar do sol
sem saber o que ele realmente é. Esta ignorância lhes faz perder muitos dos
bens espirituais; eles só conseguem com lentidão adquirir as virtudes que
permitem realizar o bel-prazer de Deus. Eis porque eu gostaria de aqui dar
alguma idéia acerca do que requer a obra espiritual, para a instrução dos
principiantes, a fim de que aqueles que desejam fazer parte, com a ajuda de
Deus, aprendam seus rudimentos.
O esforço principal começa com estas palavras
de Cristo: “Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua
porta, ora a teu Pai que está em oculto; e teu pai, que vê secretamente, te
recompensará” (Mt. 6, 6).
2) A DUALIDADE DO HOMEM E AS DUAS FORMAS DE ORAÇÃO
O homem comporta uma dualidade: ele é exterior
e interior, carne e espírito. O homem exterior é visível, feito de carne, mas o
homem interior, no entanto, é invisível, espiritual, ou como se exprime o
Apóstolo Pedro, “o homem encoberto no coração, no incorruptível trajo de um
espírito manso e quieto, que é precioso diante de Deus” (I Pe. 3, 4). São Paulo
se refere, ele também, à esta dualidade ao dizer: “Mas, ainda que o nosso homem
exterior se corrompe, o interior, contudo, se renova de dia em dia” (II Cor. 4,
16)¸ o Apóstolo fala claramente aqui do homem interior e do homem exterior. O
homem exterior é composto por vários membros, mas o homem interior chega à
perfeição pelo seu intelecto, pela atenção a si mesmo, pelo temor do Senhor e
pela graça de Deus. As obras do homem exterior são visíveis, mas aquelas do
homem interior invisíveis. Segundo o Salmista: “O homem interior e o coração
são abismos” (Sl. 64, 7). O Apóstolo Paulo diz também: “Porque qual dos homens
sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está?” (I Cor. 2,
11). É somente aquele que perscruta o íntimo do (seu) próprio coração que
conhece todos os segredos do (seu) homem interior.
É necessário então que a formação também seja
dupla. Ela deve ser exterior e interior; exterior pela leitura dos livros e
textos espirituais e bíblicos, interior pelo pensamento em Deus; exterior pelo
amor da sabedoria, interior pelo amor de Deus; exterior por palavras, interior
pela oração; exterior pela educação do intelecto, interior pelo calor do
espírito; exterior pela técnica, interior pela visão. O espírito exterior está
“inchado de orgulho” (I Cor. 8, 1), o interior se humilha; o exterior é pleno
de curiosidades e quer saber tudo, o interior está atento a ele-próprio e não
deseja nada além do que conhecer a Deus, dirigindo-Lhe a palavra tal como David
o fazia: “Buscai o Meu rosto; o meu coração Te disse a Ti: o Teu rosto, Senhor,
buscarei” (Sl. 27, 8) e de igual modo: “Como o cervo brama pelas correntes das
águas, assim suspira a minha alma por Ti, ó Deus” (Sl. 42, 1).
A oração ela também é dupla, exterior e
interior; existe uma oração feita em público e uma secreta; uma oração comum e
uma oração solitária; uma oração (regrada) realizada como um dever, em comum
com outras pessoas, observando as regras da Igreja, em certos momentos
definidos: o Ofício da meia-noite, as Matinas, as Horas, a Liturgia, as Vésperas
e as Completas. Estas orações às quais somos chamados pelo tocar do sino são um
tributo de adoração que convém ao Rei do céu e, que deve Lhe ser oferecido a
cada dia. A oração espontânea que se diz em secreto não tem hora fixa, ela pode
ser feita não importa em que momento, não importa em que local, unicamente
segundo a inspiração do Espírito. A primeira, aquela da Igreja, é composta por
um certo número de salmos, de cânones, de tropários e outros hinos,
acompanhados de ritos realizados pelo Padre; mas a outra sorte de oração, sendo
secreta e livre e não tendo tempo definido, não está também limitada a um
número de orações; cada um ora com quer e como lhe é abençoado pelo seu
orientador espiritual, por vezes brevemente, por vezes longamente. A primeira
sorte de oração faz-se em voz alta, com os lábios e a boca; a segunda,
unicamente em espírito; a primeira faz-se de pé, a segunda, não somente de pé,
antes caminhando, como também deitado, em uma palavra, sempre, a cada vez que
elevamos o espírito a Deus. A oração que fazemos com os outros na Igreja ou, em
algumas condições especiais, em uma casa onda muitos estão reunidos; mas a
segunda faz-se quando estamos sozinhos em um quarto fechado, segundo a palavra
do Senhor: “Quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a
teu pai que está em oculto; e teu Pai, que vê secretamente, te recompensará”
(Mt. 6, 6).
A câmara (cela, quarto ou aposento) também é
ambígua, dupla: exterior e interior, material e espiritual; o local material é
feito de madeira ou de pedra; o local espiritual é o coração ou o espírito. São
Teofilácto interpreta a palavra “câmara” como que significando o pensamento
secreto ou a visão interior. A câmara material permanece sempre fixa em um
mesmo local, mas a câmara interior trazemos em nós onde quer que nos dirijamos.
Lá onde o homem se encontra, seu coração está com ele; é assim que recolhendo
seus pensamentos em seu coração, a ele é possível, fechar-se a si e orar a
Deus, mesmo quando fala ou escuta, que ele esteja no meio de um pequeno número
de pessoas ou dentre uma multidão. A oração interior, ao entrar no espírito do
homem, quando ele está em presença de outros, não tem necessidade do concurso
dos lábios; não lhe é necessário nem o movimento da língua nem o som da voz, e
a mesma coisa é verdadeira quando estamos sozinhos. Tudo o que é necessário é
elevar o seu coração a Deus e descer profundamente em si-próprio, e isto,
podemos fazer em toda a parte.
A câmara material do homem de silêncio só
contém o próprio homem, enquanto a câmara interior espiritual, contém Deus e
todo o Reino dos Céus, de acordo e conforme as palavras do próprio Cristo, no
Evangelho: “O Reino de Deus está entre vós” (Lc. 17, 21).
Comentando este texto, São Macário do Egito
diz: “O coração é um pequenino vaso, mas todas as coisas estão nele contidas.
Deus está lá, e também os Anjos e a vida, e o Reino, as cidades celestes e os
tesouros da graça”.
O homem tem necessidade de se fechar na câmara
interior de seu coração mais geralmente do que entre paredes; e recolhendo lá
todos os seus pensamentos, que ele ponha o seu intelecto diante de Deus,
orando-O em secreto com todo o calor do espírito e uma fé viva; que ele
aprenda, ao mesmo tempo, a dirigir a Deus os seus pensamentos, de sorte que ele
possa crescer até a estatura do homem perfeito.
3) UNIÃO DE AMOR COM DEUS
É necessário compreender antes de tudo que o
dever de todo cristão, e mais particularmente daqueles cuja vocação é a de se
consagrar a Deus e à vida espiritual, é o de se esforçar sempre e de todas as
formas à união com Deus, o Criador. Isto provém de que a razão de ser e o fim
último da alma, que Deus criou, deve ser Deus, Ele-Mesmo, Deus somente e nada
mais além; o Deus de quem a alma recebeu a sua vida e a sua natureza, e por
quem ela deve viver eternamente. Todas as coisas visíveis que, sobre a terra,
são amáveis e desejáveis, a riqueza, a glória, o amor, os filhos, em uma
palavra, todas as coisas deste mundo, belas, boas, atraentes, não pertencem à
alma, mas ao corpo. E assim, por serem temporárias e efêmeras, são destinadas a
passarem tão rapidamente como uma sombra, enquanto que a alma, sendo criada (e
destinada a ser) eterna em sua natureza, só pode encontrar o repouso eterno no
Deus Eterno. Este é o seu bem mais elevado, mais perfeito que toda outra
beleza, doçura ou amabilidade; esta é a sua habitação eterna, de onde ela vem e
para onde deve retornar. Enquanto a carne, vindo da terra, deve retornar à
terra, a alma, vindo de Deus, retorna a Deus e permanece com Ele para sempre.
Em efeito, a alma fora criada por Deus a fim de sempre permanecer com Ele. Por
consequência, durante esta vida temporária, devemos de todas as nossas forças
procurar atingir a união a Deus a fim de nos tornarmo-nos dignos de estarmos
eternamente com Ele e n’Ele na vida futura.
Não é impossível atingir a união a Deus; basta
um grande amor. Isto é ilustrado pelo relato envangélico da mulher pecadora.
Deus, em Sua misericórdia, lhe concede o perdão de seus pecados e a união com
Ele “porque ela muito amou” (Lc. 7, 47). Ele ama aqueles que O amam, Ele Se
relaciona com aqueles que com Ele se relacionam e concede, generosamente, a
plenitude da graça àqueles que desejam desfrutar de Seu amor.
Para acender em seu coração a chama de um tão
ardente amor, para unir-se a Deus de uma inseparável união de amor, é necessáro
que o homem ore frequentemente, que ele eleve o seu espírito a Deus. Da mesma
maneira em que a chama cresce quando é constantemente alimentada, a oração
frequente – o espírito enraizando-se sempre e mais profundamente em Deus – faz
crescer o amor divino no coração. O coração inflamado aquece todo o homem
interior, o ilumina, o ensina, revela-lhe toda a sabedoria desconhecida e
oculta, fazendo dele como que um serafim de brasa, sempre de pé diante de Deus
no interior de seu espírito, olhando-O sem cessar e tirando desta visão a
doçura e a alegria espirituais.
4) EM GUISA DE CONCLUSÃO
“Orai
sem cessar”. Estas palavras podem ser tomadas no sentido de uma oração
realizada pelo intelecto, qualquer que seja a ocupação de um homem, seu
intelecto pode sempre estar dirigido a Deus, e desta maneira, ele pode orar sem
cessar.
Comecemos então agora, pouco a pouco, o esforço
necessário a realizar, comecemos em Nome do Senhor, segundo a instrução do
Apóstolo: “E, quando fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo em Nome do
Senhor Jesus, dando por Ele graças a Deus Pai” (Cl. 3, 17).
Fazei tudo, não somente para o vosso proveito,
mesmo espiritual, mas pela glória de Deus, em todas as vossas palavras, vossas
ações e vossos pensamentos, em Nome e nosso Senhor Jesus Cristo, nosso
Salvador, que seja glorificado.
Todavia, antes de começar, explicai-vos a
vós-próprios brevemente o que é a oração. A oração consiste em dirigir-se a
Deus: o intelecto e os pensamentos. Orar significa permanecer diante de Deus
pelo intelecto, olhá-Lo mentalmente e conversar com Ele no temor e na
esperança.
Desta forma, então, reuni todos os vossos
pensamentos, pondo de lado toda preocupação mundana, dirigindo o vosso
intelecto a Deus, concentrando-o inteiramente n’Ele.
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