Sobre a democracia

SANTA MARIA DE PARIS
tradução de monja Rebeca (Pereira)


O quê mais caracteriza, na minha opinião, a democracia atual é a sua recusa (de princípio) em ter uma visão plenária do mundo. Há muito tempo, vem considerando a política não como o meio de fazer aplicar certos princípios essenciais na vida, mas somente como um jogo de interesses práticos, um concreto levar em conta de forças em presença e uma escolha de compromisso; há tempos que a economia funciona independentemente da política e que a igualdade política se acomoda numa monstruosa desigualdade econômica. O que toca, sobretudo atualmente, é a ruptura total entre palavras e ações: se ela declara até agora, de maneira um pouco pomposa seu apego aos valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, faz reinar, no entanto, nos fatos um poder não dissimulado de interesses. A moral social, também pomposamente postada, se acomoda perfeitamente enquanto amoralidade individual. A vida privada de um indivíduo pode estar em aberrante contradição com suas atividades sociais. Uma visão plenária do mundo é simplesmente desnecessária, ela não existe, sendo vantajosamente substituída, lá também, por interesses bem entendidos e rigorosamente levados em consideração.

Donde provém este desmatelamento assustador da democracia, esta deslocação de cada pessoa concreta, esta recusa diante de qualquer princípio unificador? É o fato da democracia ter perdido o sentido de suas origens, ela renunciou aos princípios que a geraram, a saber a cultura cristã, a moral cristã, a atitude cristã para com a pessoa humana e a liberdade. Não as substituíndo por nada. Na concepção democrática do mundo, não existe atualmente raíz alguma, centro algum, ela parece fazer unicamente proposições subordinadas, cuja principal foi extraviada. E este desmigalhamento da sociedade democrática engendra um tipo bem particular de homem: não existe mais nenhuma convicção religiosa, sua participação à vida social não repousa sobre nenhuma profunda idéia comum e, sua vida privada, enfim, é inteiramente autônoma, ela não está unificada por nenhuma vocação religiosa ou comunitária. Da mesma forma que cada indivíduo na democracia é uma combinação mecânica de princípios fortuitos e geralmente contraditórios, assim como o corpo inteiro da democracia é como que privado de coluna vertebral, de espinha dorsal e ao mesmo tempo de fronteiras claramente definidas. Decerto, os motivos são outros além daqueles dos sistemas totalitários, onde se diz: "a lei não se aplica a mim, pois que a lei sou eu, eu sou a medida suprema das coisas"; aqui, não existem leis imutáveis, nem medida alguma das coisas, tudo é flutuante, convencional, tudo se encontra submetido ao único critério dos interesses do momento perpetualmente modificados. Tudo é, então, permitido, por ser tudo relativo, e em suma, não tão importante. Hoje, concluímos uma aliança - tais são os interesses atuais; hoje, pregamos a igualdade econômica, amanhã, votamos pelo reforço do capitalismo; hoje, nos inclinamos ao totalitarismo comunista, amanhã, ao totalitarismo racista.

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