SIGNIFICADO DA GRANDE QUARESMA - PARTE V

                              Extraído do Livro “The Lenten Triodion”, 
                          pelo arquimandrita Kallistos WARE e Madre Mary, 
    Faber and Faber, Londres, 1978 



5. A unidade interna do Triódio
O Triódio possui uma coerência interna e uma unidade que não são evidentes de imediato. Por que, por exemplo, S. Teodoro de Tiro deve ser comemorado no sábado da primeira semana, os santos ícones no primeiro Domingo e S. Gregório Palamas no segundo? Que conexão especial possui estas três observâncias com o jejum ascético da Quaresma? Vamos considerar brevemente o padrão que une num todo único as diferentes comemorações durante as dez semanas do Triódio. Não entraremos em detalhes, mas procuraremos simplesmente indicar o lugar de cada observância na estrutura geral da Quaresma.

O período pré-quaresmal
O Domingo do Zaqueu. Uma semana antes do Triódio entrar em uso há uma leitura de Evangelho de Domingo, que olha em direção à Quaresma que está por vir – Lc 19, 1-10, descrevendo como Zaqueu subiu em uma árvore ao lado do caminho onde Cristo iria passar. Nesta leitura nota-se o senso de ansiedade, de expectativa, de intensidade do seu desejo de ver nosso Senhor e, nós aplicamos isto a nós mesmos. Se, enquanto nós nos preparamos para a Quaresma, existe uma real ansiedade em nossos corações, se nós temos um desejo intenso de uma visão clara de Cristo, então nossas esperanças serão realizadas durante a Quaresma; na verdade, nós deveremos, como Zaqueu, receber muito mais do que esperamos. Mas, se não existe dentro de nós nenhuma expectativa ansiosa e nenhum desejo sincero, nós não iremos ver nem receber nada. E, então, nós nos perguntamos a nós mesmos: “Qual é meu estado de espírito e se eu estarei preparado para embarcar na jornada da Grande Quaresma?1

O Domingo do fariseu e do publicano (Lc 18, 10-14). Neste e nos dois domingos seguintes o tema é o do arrependimento. O arrependimento é a porta através da qual nós entramos na Quaresma, o ponto de partida de nossa jornada para a Páscoa. E arrepender-se significa mais que auto-piedade ou remorso fútil sobre coisas feitas no passado. O termo grego metanoia significa “mudança de espírito”: arrepender-se é estar renovado, estar transformado em nosso ponto de vista interior, atingir uma nova maneira de olhar para nosso relacionamento com Deus e com os outros. O erro do fariseu é que ele não deseja mudar sua perspectiva; ele é complacente, auto-satisfeito e, então, ele não deixa espaço para Deus agir dentro dele. O publicano, por outro lado, procura verdadeiramente por uma “mudança de espírito”: ele está auto-insatisfeito, “pobre de espírito” e, onde há esta “auto-insatisfação” redentora há espaço para Deus atuar. A menos que aprendamos com a secreta pobreza interna do publicano nós não poderemos participar na primavera da quaresma. O tema do dia pode ser resumido por uma sentença dos Padres do Deserto: “Melhor o homem que pecou, se ele sabe que pecou e se arrepende, que o homem que não pecou e considera-se um justo”2.

O Domingo do Filho Pródigo (Lc 15, 11-32). A parábola do Filho Pródigo forma uma imagem exata do arrependimento em seus diferentes estágios. O pecado é o exílio, a escravização aos estrangeiros, a fome. O arrependimento é o retorno do exílio ao nosso verdadeiro lar; é receber de volta nossa herança e a liberdade na casa do Pai. Mas arrependimento implica ação: “Levantar-me-ei e irei a meu pai...” (v.18). Arrepender-se não é apenas sentir-se insatisfeito, mas tomar uma decisão e agir de acordo com ela.

Neste e nos dois domingos seguintes, após as solenes e jubilosas palavras do Polieleos em Matinas, nós acrescentamos os pesarosos versículos do Salmo 136 (137), “Às margens dos rios da Babilônia nos assentávamos chorando, lembrando-nos de Sião...”. Este Salmo do exílio, cantado pelos filhos de Israel em seu cativeiro na Babilônia, possui uma adequação especial ao Domingo do Filho Pródigo, quando nos vem à memória nosso exílio atual no pecado e a resolução de voltar ao lar.

O Sábado dos defuntos. No dia anterior ao Domingo do Julgamento Final e, em íntima conexão com o tema deste domingo, há uma comemoração universal dos defuntos ‘de todas as épocas’. Existem comemorações dos defuntos adicionais no segundo, terceiro e quarto sábados da Grande Quaresma. Antes de relembrarmos a Segunda Vinda de Cristo nos ofícios de Domingo, nós confiamos a Deus todos aqueles que partiram antes de nós, que estão agora esperando o Julgamento final. Nos textos deste sábado há um forte senso de continuidade, de ligação, de amor mútuo que interliga todos os membros da Igreja, sejam vivos ou mortos. Para aqueles que acreditam na Ressurreição de Cristo, a morte não constitui uma barreira intransponível, uma vez que todos estão vivos n’Ele; os que partiram são ainda nossos irmãos, membros da mesma família conosco e, então, nós estamos conscientes da necessidade de rezar insistentemente a seu favor.

O Domingo do Julgamento Final. (Mt 25, 31-46). Os dois domingos anteriores falam-nos da paciência de Deus e sua ilimitada compaixão, de Sua prontidão em aceitar qualquer pecador que retorne para Ele. Neste terceiro domingo, nós somos intensamente lembrados de uma verdade complementar: ninguém é tão paciente e tão misericordioso como Deus, mas mesmo Ele, não perdoa aqueles que não se arrependem. O Deus do Amor é também o Deus da Retidão e, quando Cristo vier novamente em glória, Ele virá como nosso juiz. “Vê então a bondade e a severidade de Deus...” (Rm 11, 22).Tal é a mensagem da Quaresma para cada um de nós: vire-se enquanto ainda há tempo, arrependa-se antes que o Fim chegue. Nas palavras do Grande Cânon:

O fim aproxima-se, minh’alma, ele aproxima-se e tu te descuidas de te preparares: o tempo urge, levanta-te, porque o Juiz está às portas: como um sonho ou uma flor, a nossa vida se desvanece e nós nos agitamos em vão.3

Este Domingo situa diante de nós a dimensão ‘escatológica’ da Grande Quaresma: a Grande Quaresma é a preparação para a Segunda Vinda do Salvador, para a eterna Páscoa na Era por vir. (Este é um tema que será retomado nos primeiros três dias da Semana Santa). Não é o julgamento meramente no futuro. Aqui e agora, a cada dia e a cada hora, ao endurecer nossos corações em relação ao próximo e ao falhar em responder às oportunidades que nos são dadas de ajudá-lo, nós já estamos estabelecendo a sentença sobre nós mesmos.

No sábado da semana anterior ao início da Grande Quaresma, há uma comemoração geral de todos os santos ascetas da Igreja, tanto homens como mulheres. Como partimos na jornada do jejum da Quaresma, nós somos lembrados que não seguimos sozinhos, mas como membros de uma família, apoiados pela intercessão de muitos auxiliares invisíveis.

O Domingo anterior ao início da Grande Quaresma. O último dos domingos preparatórios possui dois temas: A expulsão de Adão do Paraíso e, é também, o Domingo do Perdão. Existem razões óbvias por que estas duas coisas devem ser trazidas à nossa atenção enquanto estamos no limiar da Grande Quaresma. Uma das imagens básicas do Triódio é a do retorno ao Paraíso. A Quaresma é o tempo quando choramos com Adão e Eva diante das portas fechadas do Éden, arrependidos como eles de nossos pecados que nos privaram de nossa livre comunhão com Deus. Mas a Quaresma é também um tempo em que nos preparamos para celebrar o evento salvífico da morte e Ressurreição de Cristo, que reabriu o Paraíso mais uma vez para nós (Lc 23, 43). Então, o pesar por nosso exílio é suavizado com nossa esperança de re-entrada no Paraíso:

Ó precioso Paraíso, insuperado em beleza,
Tabernáculo criado por Deus, interminável felicidade e delícia,
Glória do justo, júbilo dos profetas, e morada dos santos,
Com o som de tuas folhagens rogue ao Criador de tudo:
Que Ele abra-me as portas que eu fechei com minha transgressão,
E que Ele possa considerar-me digno de participar da Árvore da Vida
E do júbilo que era meu, quando eu habitava em ti anteriormente4.

Nota-se que o Triódio fala aqui não de “Adão”, mas de “mim”: “Que Ele abra-me as portas que eu fechei...”. Aqui, assim como ao longo de todo o Triódio, os eventos da história sagrada não são tratados como acontecimentos distantes no passado ou futuro, mas como experiências vivenciadas por mim aqui e agora dentro da dimensão sagrada do tempo.

O segundo tema, o do perdão, está enfatizado na leitura do Evangelho deste Domingo (Mt 6, 14-21) e na cerimônia especial do perdão mútuo no final do ofício de Vésperas no domingo à noite. Antes de entrarmos no jejum da Quaresma, somos lembrados que não pode haver verdadeiro jejum, nenhum arrependimento genuíno, nenhuma reconciliação com Deus, a menos que estejamos ao mesmo tempo reconciliados uns com os outros. Um jejum sem amor mútuo é o jejum dos demônios. A comemoração dos santos ascetas do sábado anterior tornou claro para nós que nós não trilhamos a estrada da Quaresma como indivíduos isolados, mas como membros de uma família. Nosso ascetismo e jejum não devem nos separar de nossos companheiros, mas ligar-nos a eles com vínculos ainda mais fortes. O asceta da Quaresma é convocado para ser um homem para os outros.

Os quarenta dias. Os dois domingos precedentes, o do Julgamento Final e o do Perdão, juntos constituem – ainda que em ordem inversa – uma recapitulação de toda a extensão da história sagrada, desde seu ponto inicial, Adão no Paraíso, até seu ponto final, a Segunda Vinda de Cristo, quando todo o tempo e toda a história estão contidos na eternidade. Durante os quarenta dias que agora se seguem, embora esta ampla perspectiva não se perca, há uma crescente concentração no momento central da história sagrada, no evento salvífico da Paixão de Cristo e de Sua Ressurreição, que tornam possível o retorno do homem ao Paraíso e inaugura o Fim. A Quaresma é, deste ponto de vista, uma viagem com uma direção precisa; é uma viagem para a Páscoa5. O objetivo da viagem é concisamente expresso na oração de encerramento da Liturgia dos Dons Pré-Santificados: “...sair vitoriosos do pecado e conseguir, sem perigo de condenação, adorar também a Tua Santa Ressurreição”. Ao longo dos quarenta dias somos chamados a lembrar que nós estamos em movimento, viajando no caminho que leva diretamente ao Gólgota e ao Túmulo Vazio. Então, nós dizemos no começo da primeira semana:

Vamos nos por a caminho com alegria,...
Tendo navegado pelo grande mar do Jejum,
Possamos alcançar o terceiro dia, a Ressurreição de nosso Senhor.
Vamos nos apressar para a Santa Ressurreição ao terceiro dia....
Enquanto nossa viagem prossegue, como viajantes nós regularmente lembramos o quão distante nós avançamos:
Quando começamos o segundo dia...
Vamos iniciar a terceira semana de Quaresma, ó fiéis...
Vamos glorificar a Santíssima Trindade,
E alegremente atravessar o tempo que ainda resta...
Acenando com guirlandas de flores para o rei dos dias
o dia da Ressurreição do Senhor. Então, continuamos:
Agora que nós ultrapassamos a metade do período da Quaresma,
Vamos nos apressar ansiosamente em direção ao fim da jornada...
De modo que possamos ser considerados dignos de venerar a divina Paixão de Cristo nosso Deus,
E alcançar Sua Venerável e Santa Ressurreição.

Durante cada semana da Quaresma, nossas faces são direcionadas para o objetivo de nossa jornada: o sofrimento do Salvador e Sua Triunfante Ressurreição.

Os quarenta dias da jornada da Quaresma relembram, em particular, os quarenta anos que o Povo Escolhido vagou pelo deserto. Para nós, como para os filhos de Israel, a Quaresma é um tempo de peregrinação. É um tempo de libertação de nossas amarras do Egito, de nosso domínio pelas paixões pecaminosas; um tempo para progredir pela fé através de um deserto estéril e sem água; um tempo para uma inesperada certeza restabelecida, quando em nossa fome nós somos alimentados pelo maná dos céus; um tempo no qual nós nos aproximamos da Terra Prometida, de nosso verdadeiro lar no Paraíso cujas portas o Cristo Crucificado e Ressuscitado reabriu para nós.

Os dias de semana da Quaresma. Uma característica do período é dada aos dias de semana da Quaresma pelas grandes metanoias freqüentemente repetidas, usadas especialmente em conjunção com a Oração de Santo Efrém (Senhor e Mestre de minha vida...)6. Breve e sóbria, ainda que notavelmente completa, esta oração leva-nos ao âmago do que a Quaresma significa.

Um outro aspecto significativo dos dias de da Quaresma é a Liturgia dos Dons Pré-Santificados, celebrados de acordo com a prática atual a cada quarta-feira e sexta-feira, mas em certa época em todos os dias de semana da Quaresma7. Estritamente falando, o termo ‘Liturgia’ é uma denominação incorreta, uma vez que não há consagração eucarística neste ofício; é um simples ofício de Vésperas, seguido da distribuição da Santa Comunhão de elementos consagrados no Domingo anterior. A completa celebração da Eucaristia, sendo sempre um evento triunfante e festivo é considerada inconsistente com a austeridade dos dias de semana da Grande Quaresma; e, então, já no século IV foi declarado que não deveria haver a completa celebração da Liturgia durante a Grande Quaresma exceto aos sábados e domingos8. Mas de modo a possibilitar ao fiel receber a Comunhão nos dias de semana da Grande Quaresma, pois na Igreja Primitiva era normal comungar freqüentemente e, em alguns lugares até mesmo diariamente, o ofício da Liturgia dos Dons Pré-Santificados foi estabelecido.

Muitos momentos na Liturgia dos Dons Pré-Santificados rememoram o período quando a Grande Quaresma era um período de treinamento final antes da recepção do Batismo, o Sacramento da luz ou da “iluminação”. Assim, entre as duas leituras do Antigo Testamento, o presbítero segurando o turíbulo e uma vela abençoa a assembléia, dizendo: “A Luz de Cristo é manifestada a todos”; e, em seguida à Litania pelos Catecúmenos e sua despedida, há durante a segunda metade da Grande Quaresma uma Litania adicional ‘para aqueles que estão prontos para a iluminação’. A cada vez que nós tomamos parte na Liturgia dos Dons Pré-Santificados, nós devemos nos perguntar: Em um mundo que está cada vez mais alienado de Cristo, o que eu tenho feito desde a última Quaresma para disseminar a luz do Evangelho? E onde estão os catecúmenos nas nossas igrejas ortodoxas hoje?

Às quartas e sextas-feiras na Quaresma, assim como ao longo de todo o ano, os hinos normais à mãe de Deus ‘Theotokia’ são substituídos pelos ‘Stavrotheotokia’, isto é, hinos que se referem tanto à Cruz quanto à Theotokos, que descrevem a aflição da Mãe que permanece ao lado da Cruz de seu filho. Através destes hinos, nós nos tornamos conscientes da participação da Bendita Virgem na nossa prática da Quaresma.

Vamos agora considerar a seqüência dos quarenta dias com mais detalhes.

A primeira semana da Grande Quaresma: de segunda à sexta-feira. Em Completas nos primeiros quatro dias da Quaresma, o Grande Cânon de Santo André de Creta é lido, dividido em quatro seções; na quinta-feira da quinta semana ele será lido novamente, mas desta vez por completo. Com seu constante refrão: “Tem piedade de mim, ó Deus, tem piedade de mim”, o Grande Cânon forma uma prolongada confissão de pecados, um incessante chamado ao arrependimento. Ao mesmo tempo, é uma meditação sobre o conjunto total da Escrituras, abarcando todos os pecadores e todos os justos desde a criação do mundo até a Segunda Vinda de Cristo. Aqui, mais que em qualquer outro lugar do Triódio, nós experimentamos a Quaresma como uma reafirmação de nossas “raízes Bíblicas”. Ao longo de todo o Grande Cânon os dois níveis, o histórico e o pessoal, são habilmente entrelaçados. ‘Os eventos da história sagrada são revelados como eventos da minha vida; os atos de Deus no passado como atos direcionados a mim e à minha salvação; a tragédia do pecado e traição como minha tragédia pessoal9. O apelo do Grande Cânon é muito amplo: o escocês presbiteriano Alexander Whyte o considerou ‘a coisa mais bela: a coisa, de todas as categorias, que eu mais gosto de todos os Ofícios da Igreja Grega’.

O sábado da primeira semana. Após o jejum penitencial dos cinco primeiros dias da Quaresma, o sábado e o domingo são mantidos como festas de agradecimento jubiloso. No Sábado comemoramos o grande mártir São Teodoro de Tiro, o Recruta, um soldado romano na Ásia Menor, martirizado no começo do século IV sob o imperador Maximiano (286-305). Isto aqui pode ser visto ao serviço de uma regra aplicada pela Igreja desde o século IV: como a Liturgia completa não pode ser realizada nos dias de semana na Quaresma, a memória de santos que no calendário fixo ocorrem durante a semana é transferida para o sábado ou domingo10. Então, a memória de São Teodoro de Tiro, cuja festa cai em 2 de março, tem sido transferida para o primeiro sábado. Os textos para o dia no Triódio fazem referência ao significado literal do nome de Teodoro, “Dádiva de Deus”. Há uma razão específica por que São Teodoro tem sido associado com a primeira semana da Quaresma. De acordo com a Tradição registrada no Sinaxário11, o imperador Juliano, o Apóstata (reinou de 361 a 363), como parte de sua campanha contra os cristãos tentou perverter sua prática da primeira semana da Quaresma ordenando que todos os alimentos à venda no mercado de Constantinopla fossem respingados com sangue de sacrifícios pagãos. São Teodoro, então, apareceu em sonho a Eudóxio, arcebispo da cidade, ordenando a ele aconselhar o seu rebanho a não comprar nada do mercado; em vez disso, disse o santo a ele, eles deveriam cozinhar trigo (kolyva) e comer apenas isso. Em memória a este evento, após a Liturgia dos Dons Pré-Santificados na primeira sexta-feira, um cânon de intercessão é cantado a São Teodoro e um prato de trigo é abençoado em sua honra12.

Porém, fora esta associação histórica do grande Mártir Teodoro com a primeira semana da Quaresma, é também espiritualmente adequado que ele deva ser comemorado durante estes dias. O Grande Jejum é um período de luta não observável, de martírio invisível, quando por nossa morte ascética para o pecado nós parecemos imitar o auto-sacrifício dos mártires. É por isso que, em adição a tais comemorações como a de São Teodoro no primeiro sábado, existam também hinos freqüentes aos mártires em todos os dias de semana da Quaresma. Seu exemplo tem um significado especial para nós em nossos esforços ascéticos durante os Grandes Quarenta Dias.

O Domingo da Ortodoxia. O sentido de alegria e gratidão já evidente no sábado de São Teodoro é ainda mais aparente no primeiro Domingo da Quaresma, quando celebramos o Triunfo da Ortodoxia. Neste dia a Igreja comemora o fim da controvérsia Iconoclasta e a definitiva restituição dos santos ícones às igrejas pela imperatriz Teodora agindo como regente de seu filho Miguel III. Isto teve lugar no primeiro Domingo da Quaresma a 11 de março de 84313. Há, entretanto, não apenas um elo histórico entre o primeiro domingo e a reinstituição dos ícones, mas também, no caso de São Teodoro, uma afinidade espiritual. Se a Ortodoxia triunfou na época da controvérsia iconoclasta, isto se deu por que muitos dos fiéis estavam preparados para sofrer o exílio, a tortura e até mesmo a morte, a favor da fé. A Festa da Ortodoxia é acima de tudo uma celebração em honra dos mártires e confessores que lutaram e sofreram pela fé: daí sua adequação para o período de Quaresma, quando nós empenhamos em imitar os mártires por meio de nossa auto-negação ascética. A determinação do Triunfo da Ortodoxia no primeiro Domingo é, por isso, muito mais que o resultado de uma conjunção de acasos históricos.

O Triódio fornece o texto de um “Ofício da Ortodoxia” especial, que é lido no final de Matinas, ou mais comumente, no final da Divina Liturgia deste domingo. O Ofício celebra não apenas a reinstituição dos santos ícones, mas de um modo geral, a vitória da verdadeira fé sobre todas as heresias e erros. Uma procissão é feita com os santos ícones e, após isto alguns trechos do decreto sinodal do Sétimo Concílio Ecumênico (787) são lidos. Então, sessenta anátemas são pronunciados contra vários heréticos do terceiro-quarto séculos; ‘Memória Eterna’ é cantada em honra de imperadores, patriarcas e padres que defenderam a fé Ortodoxa; e ‘Muitos Anos’ é proclamado em favor de nossos atuais bispos e governantes14.

O segundo domingo. Desde 1368 este domingo tem sido dedicado à memória de São Gregório Palamas, arcebispo de Tessalônica (1296-1359). Esta comemoração forma uma continuação da festa celebrada no domingo anterior: A vitória de São Gregório contra Barlaão, Akindinos e outros heréticos desta época é vista como um renovado Triunfo da Ortodoxia. Anteriormente neste dia era comemorado o grande mártir São Policarpo de Esmirna (+c. 155), cuja festa foi transferida para o calendário fixo a 8 de março. Esta comemoração, como a de São Teodoro sublinha a conexão entre o ascetismo quaresmal e a vocação do mártir. O segundo domingo também tem relação com o Domingo do Filho Pródigo como modelo de arrependimento, com o primeiro dos dois cânones de Matinas sendo dedicado a esta parábola.

O terceiro Domingo (o Domingo da Cruz). Neste dia o ofício de Matinas termina com a solene veneração da Preciosa e Vivificante Cruz; as cerimônias são bastante parecidas entre si: a deste Domingo, a da Festa da Exaltação da Cruz (27 de setembro) e a da Procissão da Cruz (14 de agosto). A veneração da Cruz neste terceiro Domingo da Quaresma prepara-nos para a comemoração da Crucifixão que ocorre logo a seguir à Semana Santa e, ao mesmo tempo, recorda-nos que a Quaresma inteira é um período em que nós estamos crucificados com Cristo: como o Sinaxário em Matinas diz, ‘Durante os quarenta dias de jejum, nós também estamos de certa maneira crucificados, morrendo para as paixões’. A nota dominante deste domingo, assim como dos dois domingos precedentes, é de alegria e triunfo. No cânon de Matinas, os irmoi (plural de irmos) são os mesmos da noite de Páscoa, ‘Este é o dia da Ressurreição....’, e os tropários são, em parte, uma paráfrase do Cânon Pascal de São João Damasceno. Nenhuma separação é feita entre a morte de Cristo e Sua Ressurreição, mas a Cruz é considerada como um emblema de vitória e o Calvário é visto à luz túmulo vazio.

O quarto domingo. Neste dia é comemorado São João Clímaco, o abade do Sinai (sexto-sétimo século), a quem é designado um domingo especial na Quaresma porque pelas virtudes de seus escritos e sua própria vida, ele constitui um modelo de verdadeiro asceta cristão. São João é o autor de “A Escada do Paraíso”, um dos textos indicados para ser lido na igreja durante a Quaresma. Sua memória, como a de São Teodoro foi transferida do calendário móvel para o fixo, onde é comemorado a 12 de abril. O primeiro cânon em Matinas deste domingo é baseado na parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 30-35): o cristão penitente é semelhante ao homem que caiu nas mãos dos ladrões.

A Quinta semana. Durante esta semana, ocorrem dois ofícios especiais.
Em Matinas na quinta-feira, o Grande Cânon de Santo André de Creta é lido inteiramente, junto com um Cânon de Santa Maria do Egito; e a vida de Santa Maria do Egito também é lida durante o ofício.

Em Matinas no sábado, é cantado o Hino Acatiste à Mãe de Deus. Uma das maiores maravilhas da poesia grega religiosa, com uma riqueza de imagens que são o desespero de qualquer tradutor, o Hino Acatiste possui 24 estâncias principais, alternadamente longas e curtas: cada estância longa recebe o nome de ‘ikos’ e termina com o refrão ‘Rejubila, Esposa inesposada’ enquanto cada estância curta é denominada ‘kontakion’ e termina com o refrão ‘Aleluia’. O título Acatiste significa literalmente ‘não sentado’, o hino é assim chamado porque todos permanecem de pé enquanto ele é cantado. A maior parte do hino é feita de louvores endereçados à Santíssima Virgem, cada um deles começando a saudação do Arcanjo Gabriel: Rejubila (Lc 1, 28). O Hino revê os principais eventos relacionados com a Encarnação de Cristo, começando com a Anunciação (primeiro ikos) e terminando com a Fuga para o Egito (sexto ikos) e a Apresentação no Templo (sétimo kontakion).

O Hino Acatiste, supõe-se, foi originalmente composto em uma época quando a Anunciação era ainda celebrada junto com o Natal e não tinha ainda se tornado uma festa separada15. Talvez ele tenha sido, a princípio, cantado a 8 de janeiro na Sináxis da Santíssima Mãe de Deus. E foi, provavelmente, durante o reinado do imperador Justiniano (527-565) que a Anunciação tenha começado a ser celebrada a 7 de abril; e, ou quando isto aconteceu ou ainda logo depois - e em qualquer caso não mais tarde que 718 – o Hino Acatiste foi indicado para ser cantado a 7 de abril. Mais recentemente, talvez durante o período da turcocracia após a queda de Constantinopla (1453), o Hino tenha sido transferido do calendário fixo para o móvel e, ao invés de ser cantado a 7 de abril, foi indicado para o Sábado da quinta semana. O costume de cantar uma parte do Hino em Completas nas primeiras quatro sextas-feiras da Quaresma é mais recente ainda: enquanto realizada pelos gregos, tal prática não faz parte do uso eslavo. A relação entre o Hino Acatiste e a Festa da Anunciação continua a ser ainda mais evidente: por exemplo, a maioria dos textos das Vésperas de sexta-feira antes da Vigília do Acatiste são tirados diretamente do ofício da Festa de 7 de abril. A Anunciação sempre cai dentro do período da Grande Quaresma16 e é por isso que este ofício especial de louvor à Mãe de Deus tomou lugar no Triódio de Quaresma. No início do Hino Acatiste, é cantado um kontakion muito amado pelo povo ortodoxo: ‘Que ressoem os acentos da vitória em tua honra....’ celebrando a libertação da cidade de Constantinopla de seus inimigos através da ajuda da Mãe de Deus. Parece que este kontakion originalmente não fazia parte do Hino Acatiste, pois no Hino em si não há em nenhum lugar qualquer alusão a tal libertação. Muito provavelmente, o kontakion foi escrito pelo Patriarca Sérgio para celebrar a salvação da capital bizantina do ataque dos persas em 62617; neste caso, o Hino Acatiste é certamente mais antigo que o kontakion. Talvez este kontakion e o Hino Acatiste em si mesmo eram também cantados nas celebrações de ações de graças por outras libertações de Constantinopla: dos árabes na metade da década de 670, dos árabes novamente em 717-718 e dos russos (ainda não convertidos à Ortodoxia) em 860. Entendido num sentido mais amplo o kontakion expressa, na consciência do fiel ortodoxo, seu sentido de contínua dependência da protetora intercessão da Santíssima Virgem em todos os momentos de crise e perigo.

O quinto domingo. Este domingo corresponde precisamente ao domingo anterior: uma vez que o quarto domingo é dedicado a São João Clímaco, o modelo dos ascetas, o quinto domingo celebra Santa Maria do Egito, o modelo dos penitentes. Como o Domingo de São João Clímaco, a festa dela foi transferida do calendário fixo, onde é comemorada a 14 de abril. Sua vida, recontada por São Sofrônio, Patriarca de Jerusalém, é lida, como já mencionamos, na quinta-feira da quinta semana – coloca diante de nós um verdadeiro ícone verbal da essência do arrependimento. Em sua juventude Santa Maria viveu de uma maneira dissoluta e pecaminosa em Alexandria. Movida pela curiosidade viajou com alguns peregrinos para Jerusalém, chegando a tempo para a Festa da Exaltação da Cruz. Entretanto, quando ela tentou entrar na Igreja do Santo Sepulcro com os outros, uma força invisível empurrou-a para trás para o átrio. Isto aconteceu três ou quatro vezes. Caída em súbita contrição por esta estranha experiência, ela rezou por toda a noite para a Mãe de Deus com lágrimas e na manhã seguinte, para sua alegria, conseguiu entrar sem qualquer dificuldade na igreja. Após venerar a Santa Cruz ela partiu de Jerusalém naquele mesmo dia, seguindo pelo rio Jordão e estabeleceu-se como eremita numa remota região do deserto. Lá, permaneceu por quarenta e sete anos, escondida do mundo até que finalmente foi encontrada pelo asceta São Zózimo, que pode lhe dar a comunhão pouco antes de sua morte. Alguns escritores modernos têm questionado a acuracidade histórica da narrativa de São Sofrônio, mas não existe nada em si mesmo de impossível sobre tal história. No ano de 1890 o sacerdote grego Joachim Spetsieris encontrou uma ermitã no deserto além do Jordão vivendo quase exatamente como Santa Maria do Egito deve ter vivido18. Neste domingo o primeiro cânon de Matinas é baseado na história de Lázaro e o homem rico (Lc 16, 19-31): como a parábola do Bom Samaritano do domingo anterior, esta é aplicada, simbolicamente, ao cristão penitente.

A sexta semana. Durante os ofícios desta semana e, ainda em uma extensão maior durante a Semana Santa, o Triódio assume a característica de uma narrativa histórica. Dia após dia nós acompanhamos Cristo: estamos com Ele à medida que se aproxima de Jerusalém, quando chega a Betânia para ressuscitar Lázaro, quando Ele entra na Cidade Santa no Domingo de Ramos, enquanto se aproxima de Sua Paixão. Os ofícios diários são marcados por um sentido de movimento progressivo e realismo dramático. A cada dia nos recordamos, o mais exatamente possível, das coisas que devem ter ocorrido no dia correspondente durante o último ano do ministério terreno de Cristo.

Tudo isso não é para ser visto meramente como simples comemoração de ocorrências no passado distante. Ao contrário, através da celebração litúrgica nós revivemos estes eventos. Participando deles como contemporâneos. Nós somos elevados do nível do tempo secular, como medido pelo relógio ou calendário, a um nível de tempo ‘sagrado’ ou ‘litúrgico’; somos transferidos para o ponto onde a dimensão vertical da eternidade intercepta o tempo linear. Esta transposição do passado no presente, de lembrança em realidade é expressa acima de tudo pela palavra Hoje. Então, nós cantamos no Sábado de Lázaro: “Hoje Betânia proclama antecipadamente a Ressurreição de Cristo”. “Hoje Cristo entra na Cidade Santa”, nós afirmamos no Domingo de Ramos. “Hoje Cristo vem à casa do fariseu”, nós declaramos na Quarta-feira Santa, “e a mulher pecadora se aproxima e cai a Seus pés...”. “Hoje Judas faz um pacto com o chefe dos sacerdotes”. “Hoje o Mestre da Criação fica diante de Pilatos”, nós dizemos na Sexta-feira Santa: “...Hoje Ele, que sustenta a terra sobre as águas, está pendurado na Cruz”. Então, na noite de Páscoa nós afirmamos: “Ontem eu estava sepultado conTigo, ó Cristo, e hoje eu ressuscito conTigo. Ontem eu estava crucificado conTigo...”. Nós não compreenderemos o significado destas duas últimas semanas do Triódio a menos que escutemos esta palavra Hoje que ressoa em cada ofício. Não é uma mera metáfora ou uma instância de licença poética, mas incorpora uma experiência espiritual específica. Tudo aquilo que foi testemunhado pelas multidões na Semana Santa, todas as palavras endereçadas aos discípulos, todos os sofrimentos sofridos por Cristo – tudo isso é para ser vivenciado por mim aqui e agora.

A Semana Santa
O Sábado de Lázaro. Este dia, junto com o Domingo de Ramos, ocupa uma posição especial entre a Quaresma e a Semana Santa. Seguindo os quarenta dias de penitência que terminaram e imediatamente antes dos dias de escuridão e lamento que estão por vir na semana da Paixão, seguem-se dois dias de alegria e triunfo nos quais a Igreja festeja. O sábado anterior ao Domingo de Ramos celebra a ressurreição de Lázaro em Betânia (Jo 11, 1-46). O milagre realizado por Cristo como uma reafirmação aos Seus discípulos anterior à Paixão por vir: eles têm que compreender que, mesmo que Ele sofra e morra, ainda assim Ele é o Senhor e Vitorioso sobre a morte. A ressurreição de Lázaro é uma profecia na forma de ação. Isso prenuncia a própria Ressurreição de Cristo oito dias mais tarde e, ao mesmo tempo, antecipa a ressurreição dos justos no Último Dia: Lázaro é ‘.... dos primeiros frutos da regeneração do mundo’.

Como os textos litúrgicos enfatizam, o milagre de Betânia revela as duas naturezas de Cristo, o Deus-homem. Cristo pergunta onde Lázaro está sepultado e chora por ele e, assim, Ele mostra a plenitude de sua humanidade como faz a ignorância humana e o genuíno pesar por um amigo amado. Então, revelando a plenitude de Seu divino poder Cristo ressuscita Lázaro dos mortos, apesar de que seu cadáver já tenha começado a se decompor e a cheirar mal. Esta dupla plenitude da Divindade do Senhor e Sua humanidade deve ser mantida em vista ao longo de toda a Semana Santa e, acima de tudo, na Sexta-feira Santa. Na Cruz nós vemos uma agonia genuinamente humana, tanto física como mental, mas nós vemos mais que isso: nós vemos não apenas um homem sofredor, mas um Deus sofredor.

O Domingo de Ramos. ‘Bendito é Aquele que vem...’: esta é a Festa de Cristo, o Rei – saudado pelas crianças em Sua entrada em Jerusalém e para ser saudado de igual modo por cada um de nós em nosso próprio coração. ‘Bendito é Aquele que vem...’ – não tanto do passado como do futuro: pois no Domingo de Ramos nós saudamos não apenas ao Senhor que entrou em Jerusalém há muito tempo atrás, montado num jumento, mas o Senhor que vem novamente em poder e grande glória, como Rei da era futura. Palmas e ramos são abençoados após a leitura do Evangelho em Matinas e segurados com velas acessas durante o restante do ofício19. Apesar de, em certa época a Igreja Oriental, como a Igreja Ocidental até hoje, costumava fazer uma procissão no Domingo de Ramos, esta prática caiu em desuso e não há menção dela no Triódio atual20.

Repetido muito freqüentemente nesta festa está o stikeron inicial, ‘Hoje a graça do Espírito Santo reuniu-nos a todos...’. É possível ver refletida aqui a prática de S. Eutímio, S. Sawa e outros monges palestinos no quinto e sexto séculos. Logo após a Festa da Teofania eles deixavam seus mosteiros para fazer a Quaresma em retiro no deserto, separadamente ou em grupos, não comendo nada além de raízes selvagens. Então, no sábado pela manhã da sexta semana da Quaresma, todos eles retornavam aos seus mosteiros para a Vigília do Domingo de Ramos, a fim de celebrar a Semana Santa junto com seus irmãos. Em paróquias ortodoxas isoladas por todo o mundo ocidental, algo similar ocorre a cada ano. Membros espalhados da comunidade da paróquia vivendo longe e raramente podendo freqüentar os ofícios em outros períodos começam a aparecer na Vigília do Domingo de Ramos e a medida que se segue a Semana Santa seu número aumenta gradativamente. Como os monges da antiga Palestina nós, no século XX, também podemos dizer com verdade no Domingo de Ramos, ‘Hoje a graça do Espírito Santo reuniu-nos a todos...’

Semana Santa: Segunda, Terça e Quarta-feira. Nos dias que se seguem à Sua entrada em Jerusalém, Cristo fala a Seus discípulos em particular sobre os sinais que precederão o Último Dia (Mt 24 e 25); e, então, isto forma o tema da primeira parte da Semana Santa. Por outro lado, a veneração Ocidental rememora as “coisas finais” principalmente durante o período Pré-Natalino do Advento. O desafio escatológico dos três primeiros dias da Semana Santa é resumido no tropário e exapostilário em Matinas, ambos são repetidos três vezes em uma solene e lenta melodia. O tropário, ‘Olhem, o Noivo vem no meio da noite....’ é baseado na parábola das três virgens (Mt 25, 1-13); e o exapostilário, ‘Eu vejo Tua câmara nupcial...’, sobre a parábola do homem expulso das núpcias por não estar vestido adequadamente (Mt 22, 11-13). Aqui, apresentado em termos especialmente urgentes, está o chamado que nós temos escutado em muitas ocasiões durante a Quaresma: o fim está próximo; estejamos atentos!; arrependam-se enquanto ainda há tempo.

Cada um dos três dias possui seu tema próprio:
1) Na segunda-feira comemora-se o Patriarca José, que sendo inocente sofreu (Gn, capítulos 37, 39 e 40) e prefigura a Paixão de Cristo. Também recordamos a figueira estéril amaldiçoada por Cristo (Mt 21, 18-20) – um símbolo do julgamento que cairá sobre aqueles que não mostrarem nenhum fruto do arrependimento; um símbolo, mais especificamente, da incrédula sinagoga judaica.

2) Na terça-feira os textos litúrgicos referem-se, principalmente, à parábola das Dez Virgens, que forma o tema geral destes três dias. Os textos também se referem à parábola dos Talentos que vem imediatamente após (Mt 25, 14-30). Ambas são interpretadas como parábolas do julgamento.

3) Na Quarta-feira nós relembramos a mulher pecadora, que ungiu os pés de Cristo enquanto Ele estava sentado na casa de Simão. Na hinografia do dia, a narrativa de Mateus 26, 6-13 está combinada com a de Lucas 7, 36-50 (conforme também João 12, 1-8). Um segundo tema é o acordo feito por Judas com as autoridades judaicas: o arrependimento da prostituta pecadora é contrastado com a trágica queda do discípulo escolhido. O Triódio torna isso claro, que Judas pereceu não apenas porque havia caído no pecado da traição, mas porque se recusara a acreditar na possibilidade de perdão: “Em sofrimento ele perdeu sua vida, preferindo uma corda ao invés de se arrepender”21. Se nós deploramos as ações de Judas, então, nós devemos agir não com vingativa auto-justiça, mas com consciência de nossa própria culpa: ‘Livra nossas almas, ó Senhor, da condenação devida a ele’22. Em geral, todas as passagens do Triódio que parecem ser estar direcionadas contra os judeus devem ser entendidas da mesma maneira. Quando o Triódio denuncia aqueles que rejeitaram a Cristo e entregaram-No à morte, nós reconhecemos que estas palavras aplicam-se não apenas aos outros, mas a nós mesmos: pois não traímos o Salvador muitas vezes em nossos corações e crucificamo-Lo de novo?

Na noite da Quarta-feira Santa o sacramento da Unção dos Enfermos é normalmente celebrado na Igreja e todos são ungidos, estejam fisicamente doentes ou não, pois não há uma demarcação nítida entre as doenças físicas e as espirituais, e este sacramento confere não apenas a cura física mas, também, a espiritual, servindo assim como uma preparação para a recepção da Santa Comunhão no dia seguinte23.

Quinta-feira Santa. Neste dia quatro eventos são celebrados, a lavagem dos pés dos discípulos, a instituição do Mistério da Santa Eucaristia na Última Ceia, a agonia no jardim de Gethsemane (mas os textos litúrgicos não dão ênfase a este tema) e a traição de Cristo por Judas. Em certas catedrais e mosteiros, há uma cerimônia especial de lava-pés ao final da Liturgia, com o bispo ou o superior do mosteiro assumindo o papel de Cristo e doze padres representando os apóstolos. No Patriarcado Ecumênico em Constantinopla, em outros Patriarcados e em Igrejas Autocéfalas, o Santo Óleo de Crisma é abençoado durante a Liturgia deste dia; mas o rito não ocorre todos os anos. O significado da Quinta-feira Santa é resumido em um texto de beleza singular, repetido muitas vezes na Liturgia, que combina os temas da Comunhão Eucarística, a traição de Judas e a confissão de Bom Ladrão:

Na Tua Mística Ceia, ó Filho de Deus,
Hoje recebe-me como participante:
Pois eu não desvendarei o mistério a Teus inimigos;
Eu não Te darei um beijo como Judas
Mas como o ladrão eu Te confesso:
Lembra-Te de mim, Senhor, quando vieres em Teu Reino.

Sexta-feira Santa. Neste dia nos recordamos dos sofrimentos de Cristo: o escárnio, a coroa de espinhos, os açoites, os pregos, a sede, o vinagre e o fel, o grito de desolação e tudo que o Salvador suportou sobre a Cruz; também a confissão do Bom Ladrão. Ao mesmo tempo, a Paixão não está separada da Ressurreição; e mesmo neste dia da mais profunda auto-humilhação de Nosso Senhor, nós olhamos em direção à revelação de Sua eterna glória:

Nós veneramos a Tua Paixão, ó Cristo:
Mostra-nos, também, a Tua gloriosa Ressurreição.
A Cruz e a Ressurreição, como nós a vemos, são aspectos de um único e indiviso ato de salvação:
A Tua Cruz, ó Senhor, é Vida e Ressurreição...

As Matinas de Sexta-feira são normalmente ‘antecipadas’ e realizadas na noite de Quinta-feira. Elas tomam uma forma especial, com uma série de 12 leituras de Evangelho que começam com o discurso de Cristo na Última Ceia e terminam com a narrativa de Seu sepultamento. Na prática grega aqui ocorre um ‘clímax’ imediatamente antes do sexto Evangelho, quando o presbítero carrega uma grande cruz do santuário para colocá-la no centro da igreja. Esta cerimônia, que se originou na Igreja de Antioquia foi adotada em Constantinopla somente em 182424; esta prática não é encontrada nas Igrejas eslavas. Aqui nós achamos o princípio de uma representação dramática conduzida até um ponto além do mostrado até aqui, através do uso não apenas de palavras, mas também, de ações visíveis. Na Sexta-feira pela manhã, as Horas (Horas Reais) tomam uma forma solene, como nas Vigílias do Natal e Teofania, com leituras do Antigo Testamento, uma Epístola e um Evangelho em cada uma das Horas. As Vésperas seguem-se, imediatamente após as Horas (uso grego normal) ou à tarde (prática eslava). No final das Vésperas, como feito anteriormente em Matinas na prática grega, os eventos da Sexta-feira Santa são representados não apenas por palavras, mas, também, através de ações dramáticas25. O Epitáfio – um pedaço retangular de tecido encorpado no qual está pintada ou bordada a figura de Cristo morto deitado para o sepultamento – é carregado em procissão do santuário para o centro da igreja e é, então, venerado pelos fiéis. Existem mais uns poucos momentos de movimentação ao longo do ano da Igreja. Os Triodia grego e eslavo não mencionam nada sobre esta procissão com o Epitáfio ao final de Vésperas, nem sobre a correspondente procissão no final de Matinas no Sábado Santo. Parece que esta prática de conduzir o Epitáfio em procissão nestes dois momentos foi originada num período relativamente recente, no século XV ou XVI.

Na prática atual nenhuma Liturgia é celebrada na Sexta-feira Santa (exceto quando cai a Festa da Anunciação) – nem a Liturgia completa nem a Liturgia dos Dons Pré-Santificados. Mas em tempos passados havia uma Liturgia dos Dons Pré-Santificados neste dia26.

Sábado Santo. Neste dia nós rememoramos o sepultamento de Cristo e Sua descida ao Inferno. Em Matinas, normalmente realizada na Sexta-feira à noite, o ofício começa com as Laudes (em grego, Enkomia) sendo cantada diante do Epitáfio no centro da igreja. A nota predominante neste ofício não é tanto de lamentação, mas de atenta expectativa. Para o tempo vindouro Deus observa um repouso sabático no túmulo, enquanto nós ansiamos pelo momento quando Ele se levantará de novo, trazendo nova vida e recriando o mundo:

Hoje Tu santificas o sétimo dia que outrora abençoaras ao cessares toda obra; Tu reanimas todas as coisas, ó meu Salvador, e renová-as observando o Sábado e recriando tudo por ele.

Ao final do ofício, todos vão com o Epitáfio em procissão em volta da igreja, cantando “Deus Santo, Santo Forte...” exatamente como fariam em um funeral, ainda que isto não seja, de fato, uma procissão de um funeral. Deus que morreu na Cruz, e ainda assim Ele não está morto. Ele que morreu, o Verbo de Deus, é a Vida em Si Mesmo, Santo e Imortal; e nossa procissão pela noite significa que Ele está agora prosseguindo pela escuridão do Inferno, anunciando a Adão e a todos os mortos Sua vindoura Ressurreição, na qual eles são, também, chamados a compartilhar.

Na manhã e no começo da tarde do Santo Sábado seguem-se as Vésperas e a Liturgia de São Basílio27. Originalmente este ofício começava mais tarde, à noite, e continuava até as primeiras horas da manhã do Domingo de Páscoa; mas agora foi antecipado e seu lugar tomado pelo atual ofício à meia-noite das Matinas Pascais, com o Cânon de São João de Damasco, ‘Hoje é o dia da Ressurreição ...’, seguido pela Liturgia de São João Crisóstomo. O mais antigo ofício de vigília, agora celebrado no Sábado pela manhã, possui um caráter fortemente batismal, refletindo o período quando este sacramento era administrado na noite de Páscoa. Os textos em Vésperas estão dominados por três temas relacionados: Páscoa, Ressurreição e iniciação batismal. Das 50 leituras do Antigo Testamento constituindo o estágio final de instrução destinada aos catecúmenos antes que fossem batizados, as leituras 3, 5, 6 e 10 referem-se diretamente ou simbolicamente à Páscoa; as leituras 4, 7, 8 12 e 15 referem-se à Ressurreição; e as leituras 4, 6, 14 e 15 referem-se simbolicamente ao Batismo. O caráter batismal do ofício do Santo Sábado é, também, evidente no hino cantado em lugar do Trisághion, ‘Vós todos que fostes batizados em Cristo...’, e na escolha da leitura da Epístola (Rm 6, 3-11). Com o versículo que se segue à Epístola ‘Levanta-Te, ó Deus..........’, a celebração da Ressurreição inicia-se.

Na noite do Sábado Santo o povo gradualmente começa a reunir-se na igreja escura enquanto os Atos dos Apóstolos são lidos e, então, o Ofício da Meia-noite é cantado. À medida que se aproxima a meia-noite, as luzes no corpo da igreja são apagadas. Todos esperam pelo momento em que o padre sairá do santuário com a vela acesa que simboliza a luz do Cristo Ressuscitado. Então, o período do Triódio de Quaresma encerra-se numa intensa e ansiosa expectativa. “Sim! Eu venho em breve” nos diz o Salvador (Apocalipse 22, 20) e, em nossos corações, nos apressamos em responder ao Cristo Ressuscitado: “Amém! Vem, Senhor Jesus!”

1 No Domingo anterior ao do Zaqueu a leitura do Evangelho é, às vezes, o encontro de Cristo com a mulher cananéia (Mt 15, 21-28). Aqui o significado espiritual é o mesmo que o do Domingo do Zaqueu. A filha da mulher foi curada pela fé e persistência de sua mãe. Do mesmo modo, na Quaresma precisamos deixar a fé em Cristo nos curar e para isso nós temos que aliá-la à persistência da oração. Então, todas as coisas são possíveis.
2 Apophthegmata Patrum, alphabetical colection, Sarmatas I.
3 Cântico 4, tropário 2.
4 Vésperas do Sábado à noite (Domingo do Perdão).
5 A frase é tomada de Schememann, A Grande Quaresma, p.11.
6 Aos sábados e domingos, quando a rigidez do jejum é relaxada, a Oração de Santo Efrém não é dita, nem se faz grande metanoia, mas apenas pequenas metanoias.
7 Ver o Concílio em Trullo, cânon 52. Sobre a Liturgia dos Dons Pré-Santificados, ver D. N. Moraitis, I Leitourgia ton Proigiasmenon (Thessalonica, 1955).
8 Concílio de Laodicéia, cânon 49. Quando a Festa da Anunciação da Santíssima Virgem Maria foi fixada em 7 de abril, foi decidido que a Liturgia completa deveria ser celebrada neste dia (Concílio em Trullo, cânon 52).
9 Schememann, A Grande Quaresma, p. 71.
10 Ver o Concílio de Laodicéia, cânon 51. Atualmente esta regra não é mais aplicada rigorosamente, pois os textos do Menaia comemorando o santo do dia são freqüentemente incluídos nos dias de semana da Quaresma.
11 Sinaxário para o sábado da primeira semana, no Triodion Katanyktikon (ed. Apostoliki Diakonia), p. 128; ver também Narrative atribuída a São Nectário, Patriarca de Constantinopla (381-397), especialmente os parágrafos 4-13 (P.G. xxxix, 1825A-1832D).
12 N.T. Na Polônia esta prática é realizada, sendo o trigo integral cozido misturado com mel e consumido pelos fiéis após a benção do mesmo.
13 Provavelmente a celebração anual deste evento não foi estabelecida de imediato. Ver J. Mateos, Le Typicon de la Grande Eglise. Ms. Saint-Croix no 40, Xe siècle (Orientalia Christiana Analecta 165-6:Rome, 1962-3), vol. i, pp. x-xiv; J. Gouillard, Le Synodikon de l’Orthodoxie. Edition et commentaire (Travaux et Mémoires 2: Paris, 1967), pp. 129-38.
14 Para uma tradução em inglês deste Ofício, como celebrado pela Igreja Russa no século XVIII, ver J. G. King, The Rites and Ceremonies of the Greek Church, in Russia (London, 1772), pp. 399-407. A forma grega do ofício é consideravelmente mais longa.
15 Ver R. ª Fletcher, ‘Três hinos bizantinos antigos e seus lugares na Liturgia da Igreja de Constantinopla’, Byzantinische Zeitschrift li (1958), pp. 53-65; J. Grosdidier de Matons, Romanos le Mélode: Hymnes, vol ii (Sources chrétiennes 110: Paris, 1965, pp. 15-16).
16 De acordo com o Tipikon de São Sawa, o mais cedo que no calendário móvel a Festa da Anunciação pode ocorrer é na terceira semana da Quaresma; o mais tarde na quarta-feira da Semana Jubilosa (quarta-feira após a Páscoa). O Tipikon de São Sawa também especifica que a Festa da Anunciação nunca deva ser transferida, mesmo se cair na Sexta-feira Santa. Estas regras estão modificadas na atual prática grega.
17 Ver o Sináxario no Triodion Katanyktikon (ed. Apostoliki Diakonia), pp. 302-303. Também tem sido sugerido que o kontakion ‘Que ressoem os acentos da vitória em tua honra...’ tenha sido escrito em 532 para celebrar a salvação da cidade dos chamados distúrbios NIKA. Com esta hipótese, o kontakion pode ter sido contemporâneo do resto do Hino Acatiste, e pode até mesmo ter sido obra de São Romano, o Mélodo. Mas o Sinaxário não fala nada sobre os tais distúrbios NIKA.
18 Ver seu vívido relato: I erimitis Photeini eis tin erimon tou Iordanou (6ª ed., Volos, 1971).
19N.T. Após a veneração do Evangelho os fiéis recebem do celebrante os ramos recém-abençoados e velas que acendem e os seguram até o final do ofício. Esta prática é adotada na Polônia.
20 Tal procissão ocorria em Constantinopla no século XI: ver, Mateos, Le Typicon de la Grande Eglise, vol. ii, pp. 66-67.
21 Completas da Quarta-feira Santa.
22 Matinas da Terça-feira Santa.
23 N.T. O que não exime o doente de se confessar antes da recepção da Eucaristia, conforme atestado em seu período na Polônia.
24 Ver A. Couturier, Cours de Liturgie grecque-melkite, vol. ii (Jerusalém, 1914), p. 270.
25 No uso grego moderno há uma cena de representação dramática mais cedo nas Vésperas. Na conclusão da leitura do Evangelho, à medida que a deposição de Cristo vai sendo descrita o sacerdote retira a figura de Cristo da Cruz que havia sido colocada no centro da igreja. Por isso esta cerimônia é chamada em grego de Apokathilosis (N.T. algo como “descrucificação”, ou retirada dos cravos).
26 Tal era a prática em Constantinopla na metade do século XI; mas até 1200 não havia Liturgia dos Dons Pré-Santificados (Mateos, Le Typicon de la Grande Eglise, vol. ii, pp. 82-83).
27 Ver G. Bertonière, The Historical Development of the Easter Vigil and Related Services in the Greek Church (Orientalia Christiana Analecta 193: Roma, 1972).

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