A IGREJA ORTODOXA - ESTADO E EUROPA, PONTO DE VISTA DA RÚSSIA



KIRILL Patriarca de Moscou e Toda Rússia



Entrevista com o Metropolita Kirill de Smolensk e Calingrado, Responsável pelo Departamento das Relações Exteriores do Patriarcado de Moscou, ao periódico “Diplomatie” (no. 16, setembro-outubro 2005)

O que é o mundo ortodoxo hoje? Quais são suas prioridades?
O mundo ortodoxo hoje consiste nos países, cuja cultura foi moldada sob a decisiva influência da nossa fé. Estes são Bulgária, Belarus, Grécia, Chipre, Moldávia, Republica da Macedônia, Montenegro, Rússia, Romênia, Sérvia e Ucrânia. Todavia, as realidades culturais e políticas nos territórios históricos do mundo ortodoxo estão sujeitas a mudanças consideráveis. Como resultado da migração e intensificação de contatos entre diferentes continentes, o mundo ortodoxo não é mais homogêneo como o era há um século atrás. Ao mesmo tempo, fortes comunidades ortodoxas aparecem em países que nunca tiveram uma população ortodoxa. Hoje, estes países constituem uma parte integral de americanos, árabes, albaneses, tchecos, finlandeses, poloneses, eslovenos e outras nações.

As pessoas ortodoxas nos dias de hoje estão mais unidas pela Igreja Ortodoxa Local do que pelos estados. Todavia, uma ideia mais precisa das fronteiras do mundo ortodoxo pode ser dada pelo número de crentes de Igrejas Ortodoxas em diferentes países do mundo.  A tarefa das Igrejas Ortodoxas é primeiramente e antes de tudo o trabalho dentre as pessoas que nos são confiadas por Deus. Isto é particularmente importante para as Igrejas, que realizam sua missão em países que se liberaram dos grilhões do ateísmo estatal há pouco tempo. Existe muito trabalho a ser feito nestes países para que nosso povo possa compreender novamente que são portadores da civilização ortodoxa.

Quais são as relações entre a Igreja e o Estado em países ortodoxos?
A civilização ortodoxa desenvolveu seu próprio modelo padronizado de relações entre a Igreja e o Estado, chamado de ‘sinfonia’ no código legal do Imperador Justiniano. Todavia, não me apressaria a autorizar tal princípio das relações Estado-Igreja como uma tradição especificamente cristã-oriental.  No século VI, altura em que o Imperador Justiniano codifica a Lei Romana e Bizantina, uma tradição cristã existia na Europa, e a ideia de “sinfonia, todavia, como uma herança da Europa Ocidental e Oriental.

Faz-se necessário reconhecer que tal modelo influenciou a compreensão ortodoxa das relações Igreja-Estado. Todavia, devemos discernir entre um ensinamento histórico de “sinfonia”, que pertence inteiramente ao passado e seus fundamentos metodológicos, que podem ser aplicados hoje. Compreensão histórica de “sinfonia” está relacionada com a forma monárquica de governo e com o papel ideológico da Ortodoxia. A Igreja e o estado eram compreendidos como as duas instituições equivalentes, como os dois dons de Deus com diferentes domínios de cuidado para o mesmo corpo social e cultural – o povo. O Estado se poe a defender a Igreja, e a Igreja se poe a sustentar o Estado. Tal modelo nunca foi realizado; enquanto  modelo democrático nunca será realizado em sua forma autêntica.

O modelo de “sinfonia” hoje tem um valor metodológico importante. Devo lembrar que fora formulado enquanto resultado de uma busca de quase 200 anos por um modelo padrão das relações entre a Igreja e o Estado. A Igreja e o Estado estavam em inimizade um com o outro antes mesmo do IV século, quando o Cristianismo fora proclamado religião do Estado e uma séria questão se ergue a partir do tipo de relação entre a Igreja e o Estado com ambas as instituições em harmonia, o que quer dizer “sinfonia” em grego. No século IV, o Imperador apresenta sua própria solução para tal tarefa listando os deveres da Igreja e do Estado diante de cada um. Ainda mais, os conteúdos de tais deveres podem mudar em diferentes tempos da história, enquanto o princípio metodológico de coexistência pacífica entre a Igreja e o Estado permanece o mesmo. Quando a Igreja Ortodoxa Russa adotou os “Fundamentos de Conceito Social” em 2000, foi guiada pela metodologia de uma “sinfonia” modelo em uma parte do documento dedicado às relações com o estado secular e listando ponto a ponto as condições e campos da possível cooperação harmoniosa entre a Igreja e o Estado secular presente.

Existem países ortodoxos hoje, tais como a Grécia e Geórgia, cujas constituições declara um estado especial da Igreja Ortodoxa, como a esmagadora maioria da população de tais países é ortodoxa. Na minha opinião, não há nada de mal ou ameaçador à liberdade de pessoas de outras religiões, se o Estado declara publicamente suas relações especiais com as religiões da maioria de seus países. Nesse caso, as regras claras e compreensíveis das relações Igreja-Estado aparecem, o que pode ser controlado pelo público. Acredito ser útil para a Rússia definir relações especiais com as quatro religiões tradicionais de nosso país: ortodoxia, islamismo, judaísmo e budismo. Isso permitiria que o Estado e as comunidades religiosas cooperassem em várias esferas públicas em proporção ao número de crentes que pertencem a essa ou aquela religião tradicional.

Qual o papel da Ortodoxia nas políticas internacionais?
Não existe mundo ortodoxo algum no aspecto político hoje. A unidade entre as tradições religiosa e cultural nos permite falar sobre um potencial para contatos mais próximos bem como interação entre países. Na minha opinião, o mundo ortodoxo pode ser consolidado com sucesso nos solos, que permitirão com que ele preserve sua identidade no mundo de hoje. Isto pode encontrar sua expressão em contatos humanitários mais ativos no campo da educação, mass media e cultura.

A ideia principal, que os representantes do mundo ortodoxo devem juntos defender, é a afirmação da importância de tradições nacionais e religiosas nas políticas internacionais nos dias de hoje. Alguns países do mundo ortodoxo, como a Rússia por exemplo, conseguiram desenvolver durante séculos um modelo de relações pacíficas entre civilizações. Todavia, a Ortodoxia em políticas internacionais pode jogar um papel de assistência para a construção de um mundo multipolar, no qual diferentes sistemas de visão do mundo encontrarão espaço.

Quais são os pontos de vista da Igreja Ortodoxa sobre o crescente número de membros da União Europeia?
Na altura em que os referendums para inserção na União Europeia estavam ocorrendo nos países bálticos, nos quais existem igrejas ortodoxas do Patriarcado de Moscou, a Igreja Ortodoxa Russa na pessoa de Sua Santidade o Patriarca Alexis II declarou que ela suportava o desejo de tais povos em viver numa comunidade politica e econômica com outras nações europeias. Ao mesmo tempo sempre declaramos que o alargamento da União Europeia não deveria criar uma nova cortina de ferro no Leste da Europa. Todavia, nossa Igreja não deseja permanecer um observador exterior do processo de integração europeu. Estamos convencidos de que a tradição ortodoxa é chamada a fazer sua própria contribuição ao desenvolvimento do espaço europeu em unidade.

Os ortodoxos esperam que em resposta a sua prontidão em participar no desenvolvimento da integração do mundo ocidental haverá uma abertura à percepção dos valores considerados pela tradição cristã oriental. Gostaria de lembrar que com a propagação da União Europeia aos países de tradição ortodoxa (Romênia, Bulgária) os fiéis ortodoxos irão constituir um número significante de cidadãos europeus. Se os países ocidentais da União Europeia estiverem abertos à percepção da identidade espiritual destas nações, então a integração europeia pode ser um sucesso. Se isto não acontecer, este grande projeto geopolítico vai conhecer um colapso.

Um problema similar surge em conexão com os possíveis membros provenientes da Turquia na União Europeia. Cada um entende que não somente o nível econômico e social de seu desenvolvimento está em questão. Antes de tudo, o problema é como os valores das civilizações cristã e islâmica podem combinar. No presente, certos processos estão em vigor na sociedade turca que aponta a perda de uma atitude aberta e justa as tradições religiosas e étnicas minorias nisto.

Certos políticos europeus dizem: “A União Europeia não é um clube cristão”. Todavia tais palavras devem ser seguidas por atos reais pelos europeus no que concerne receber valores da civilização islâmica. Imigrantes vindouros de países muçulmanos e nativos europeus ainda não conseguem se conciliar nos próprios países da União Europeia. Melhora alguma na situação financeira resolve o problema de sua adaptação cultural e por vezes faz crescer sua identidade étnica e religiosa. Será que a Europa está preparada para isso? Faz-se necessário que uma larga discussão nas sociedades de países europeus possa preceder a decisão da entrada da Turquia na União Europeia. Com isso, a resolução final no que concerne esta questão deve ser tomada não somente a nível político, mas deve ser um claro desejo das nações da União Europeia.

A Igreja Russa não se afastou da discussão que se desenrolou na Europa. O Departamento de Relações Exteriores da Igreja fez uma declaração direta acerca deste assunto antes da Comissão da União Europeia ter decidido iniciar negociações com a Turquia e seus membros na União Europeia. Deixe-me citar um pequeno extrato deste documento que aufere nosso ponto de vista sobre um possível caminho para se resolver tal problema: “Decerto, a proximidade dos mundos muçulmano e cristão pode criar não apenas divisões, mas pode, no processo de superação, ajudar a desenvolver um modelo de coexistência pacífica entre essas duas civilizações. Pode acontecer que a adesão da Turquia à União Europeia coloque uma pedra fundamental numa ponte entre os mundos cristão e muçulmano. O exemplo da Rússia e das repúblicas da Ásia Central, onde cristãos e muçulmanos viveram em paz lado a lado durante séculos, prova que é possível assegurar a compatibilidade das civilizações dentro da mesma entidade política”.

Estamos convencidos de uma coisa: coexistência pacífica com outra civilização não deve significar rejeição de sua própria tradição. Isso é possível, e foi demonstrado pela rica experiência da Igreja Russa em construir pacíficas relações com a civilização islâmica num mesmo estado.

Qual é a atitude ortodoxa no diálogo inter-cristão?
Em 2000, a Igreja Ortodoxa Russa adotou o documento chamado “Princípios básicos da Atitude da Igreja Ortodoxa Russa a não-ortodoxos”. Tais linhas-mestras formularam os objetivos e métodos do diálogo inter-cristão aceitável para a Igreja Ortodoxa. O objetivo mais importante do diálogo, o documento afirma, é a restauração da unidade (cf. Jo. 17:21) tal como ensinado por Jesus Cristo. Reconhecendo a necessidade de restaurar a unidade rompida, a Igreja Ortodoxa sustenta ser somente possível alcança-la no interior do rebanho de Santa e Una Igreja Católica e Apostólica, isto é, dentro da estrutura daquela tradição cristã que existia antes das Igrejas se dividirem no século XI.

Todavia, a comunicação dentre representantes de várias confissões acerca de assuntos públicos já se faz possível nos dias de hoje e já é até esperado pelo tempo. Desafios do mundo de hoje criaram pré-condições para à ativa cooperação entre cristãos no que concerne a resolução de problemas comuns. Talvez, a maior preocupação das Igrejas cristãs seja o papel da cosmovisão religiosa na Europa unida. A maioria dos cristãos no continente tem feito grandes esforços para fazer das tradições cristãs uma parte orgânica da identidade europeia. Durante os trabalhos sobre o projeto de Constituição da União Europeia, as Igrejas atuaram juntamente para obter um artigo que estabelecesse o diálogo entre as autoridades da UE e as organizações religiosas nela incluídas. Este é um testemunho importante da importância do diálogo inter-cristão e das ações comuns para afirmar o testemunho cristão comum.

O combate ao terrorismo é outro item na agenda comum cristã. A fim de privar os pregadores do extremismo de uma oportunidade de usar a motivação religiosa para justificar os ataques terroristas, cristãos e muçulmanos devem unir seus esforços, desenvolvendo o diálogo inter-religioso. Lembrando, a Igreja Ortodoxa Russa iniciou o estabelecimento de um Conselho Inter-Religioso na Rússia e um Conselho Inter-Religioso na Comunidade dos Estados Independentes. Nesses órgãos, procuramos nos opor ao terrorismo e enfrentar juntos outros desafios dos dias atuais.

Gostaria de dizer algumas palavras sobre os obstáculos que surgem no caminho do diálogo entre as igrejas cristãs. Nossa Igreja está preocupada com a atividade intensificada que as confissões ocidentais têm realizado entre as nações pertencentes à tradição ortodoxa. Essas ações de nossos irmãos, que há muito são descritas como "proselitismo", violam o princípio consagrado pelas relações entre várias igrejas cristãs. São Paulo já havia mencionado tal princípio em sua Epístola aos Coríntios, ao não querer “ se gloriar de coisas já realizadas em campo alheio” (II Cor.10:16). Este princípio pressupõe consideração pelos interesses de uma Igreja local em realizar quaisquer atividades missionárias ou religiosas em geral, em uma terra onde já exista uma Igreja Cristã por si só.

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