A CONFISSÃO DA FÉ NA TRADIÇÃO ICONOGRÁFICA ORTODOXA


DESEILLE Arquimandrita Placide
Lumière et Théofanie – l'icône, conaissance des religions, 1999
tradução de Mônica Boitte



Para a Tradição Ortodoxa, a própria existência das imagens e sua veneração nas igrejas é uma confissão da Encarnação de Cristo e de toda a economia da salvação. Este aspecto da doutrina da veneração da imagem permanece bastante distante no Ocidente. Porém, se encontra no cerne da disputa iconoclasta que agitou o mundo cristão de 726 a 787 e de 815 a 843, guardando sempre uma importância primordial para a Ortodoxia (1).


1. O Ícone, confissão da economia da salvação
Segundo a tradição ocidental, a presença das imagens nas igrejas se justifica pela utilidade catequética e pedagógica. Desde o ano 600, numa carta destinada ao Bispo Sereno de Marseille (2), o papa Gregório o Grande legitimava o uso das pinturas alegando serem elas para os iletrados o que as Escrituras representa àqueles que conhecem as letras. Não há então motivo para destrui-las, nem deixar de venerá-las. Este texto permanecerá como autoridade fundamental para o Ocidente. Para os gregos, ao contrário, este ponto de vista pedagógico é secundário. O recurso as imagens é uma exigência que emana do mistério da própria Encarnação. Tal como nos ensina São João Damasceno e os doutores bizantinos: se o Filho de Deus realmente tornou–Se homem para a nossa salvação, então, sem dúvida alguma, podemos representá-Lo pela imagem, bem como os Seus Santos, que são Seus membros. Rejeitar a imagem é rejeitar toda a economia da salvação realizada pela Encarnação de Cristo. Em seu segundo discurso pela defesa das santas imagens, João Damasceno escreve: "Se tivéssemos feito uma imagem do Deus invisível, teríamos cometido um pecado grave; de fato, é impossível representar pela imagem o que não tem carne, o que é invisível, inconcebível e sem forma. Mas quando Deus assume a carne e aparece encarnado sobre a terra, vivendo no meio dos homens; quando em Sua indizível bondade, Ele toma a natureza, o volume, o aspecto e a cor da carne, nós não cometemos pecado ao representá-Lo, pois que desejamos ardentemente contemplar o Seu rosto”(3).

O laço entre o ícone e o seu protótipo, tal como concebido pela teologia ortodoxa, traz uma importante conseqüência. A carne de Cristo não é apenas unida à natureza divina na pessoa do Logos; em virtude desta união, ela é intimamente penetrada e transfigurada pelo esplendor incriado da natureza divina.

Por estar representando a pessoa do Cristo segundo a Sua humanidade, o ícone participa desta impregnação divina, sendo portador de graça para aqueles que o veneram (4).

2. A representação dos Concílios, confissão de fé iconográfica
Se, da consideração da própria natureza do ícone, passamos aos assuntos que os pintores e os mestres de mosaico ortodoxos representaram, constatamos que na tradição iconográfica existem várias maneiras de expressar a fé cristã.

A primeira é a representação dos Concílios Ecumênicos, que tem o significado de uma confissão de fé iconográfica. Em Constantinopla, estas representações estavam colocadas num edifício chamado milion, que marcava o ponto de partida das vias imperiais levando em todas as províncias do Império. Estas representações tinham por objetivo proclamar a fé ortodoxa definida pelos Concílios, e fazer conhecê-la a todos; a presença dos ícones no milion expressava bem a vontade do Imperador de fazer reconhecer as decisões conciliares Império à fora.

Nas igrejas, o costume era o de afixar as decisões dos Concílios no nártex. Isso explica que a partir do séc. XII, pelo menos, numa época em que a série dos grandes Concílios estando concluída, tomou–se o hábito pintar no nártex das igrejas a série destes Sete Concílios Ecumênicos. Estas representações evocavam as decisões dos Concílios figurando personagens de tal acontecimento. Habitualmente, podemos ver o Concilio realizando–se num dado local. O livro dos Evangelhos está freqüentemente exposto sobre um trono sobrepujado por uma cruz. Esta presença do Evangelho manifesta a presença do próprio Cristo que preside invisivelmente o Concilio, cuja Palavra se devem conformar todas as decisões. De pé ou sentado sobre um trono, o imperador que convoca o Concilio como árbitro dos debates, respeitando em princípio a autonomia doutrinal dos Padres; Ele confere às decisões força de lei no Império. Os Padres são representados sentados em várias fileiras. Os heresiarcas condenados estão prostrados por terra, “esmagados”, como os símbolos do poder de Satã nos ícones da Ressurreição. A heresia comprometendo a própria substância do mistério da salvação, o julgamento dos Padres aparece como uma re-atualização na vida da Igreja do triunfo pascal de Cristo sobre os poderes malévolos.

Colocadas no nártex das igrejas, estas representações dos grandes Concílios Trinitários e Cristológicos definiam de certo modo o conteúdo de todo o culto cristão celebrado no edifício. De fato, o culto ortodoxo, particularmente na Divina Liturgia, não está apenas centrado sobre a morte sacrificial de Cristo, como foi o caso, durante muito tempo, na Igreja latina. Cada liturgia evoca toda “a economia”, toda a obra da salvação. A anáfora eucarística - sempre precedida, imediatamente, pela recitação do Símbolo de Nicéia-Constantinopla – recapitula esta divina economia; “Foste Tu que do nada nos trouxe à vida, e nos levantastes de termos caído no pecado, e não cessaste de fazer tudo para nos elevares ao céu e feito o dom de Teu Reino futuro...” Mais adiante: “Em memória de tudo o que foi realizado para/por nós: a cruz, o sepulcro, a Ressurreição ao terceiro dia, a Ascenção aos Céus, o trono à direita do Pai, a segunda e gloriosa vinda. Aquilo que é Teu, recebendo-o de Ti, nós to oferecemos por todos e por tudo.” (6).

Definida como “memorial”, a celebração litúrgica não é apenas um simples chamamento simbólico de um acontecimento passado pela participação ao mistério, a assembléia se torna contemporânea, de certo modo, dos acontecimentos da economia redentora e os vive com seu Senhor. Ao mesmo tempo e da mesma maneira, ela penetra junto com Ele, desde já, no mundo da Ressurreição, cujo o advento definitivo coincidirá com a Parusia ou retorno de Cristo no fim dos tempos.

3. O programa da decoração iconográfica das igrejas
É justamente esta economia da Salvação, em todas as suas dimensões, que representa o programa da decoração iconográfica das igrejas (7). Estas de fato, são normalmente cobertas de mosaicos ou afrescos – como também o foram as igrejas romanas ou góticas no Ocidente – ou pelo menos ornamentadas com ícones portáveis, que não são dispostos ao acaso. Portanto, a pintura mural das igrejas é uma segunda maneira de expressar, de modo plástico, o conteúdo da fé.

A arte do ícone é então uma arte essencialmente teológica e litúrgica. O pintor não busca representar um acontecimento passado tentando reconstituir assim o detalhe anedótico; ele não busca ainda expressar sua própria visão deste acontecimento, nem criar um estado de alma correspondente no espectador. O ícone é o equivalente plástico de uma celebração litúrgica, ou melhor, ele é um elemento de ordem plástica da própria celebração. Além de toda subjetividade, visa evocar o evento representado em sua atualidade permanente e trans–histórica. O pintor não opera como indíviduo, mas como membro, e, num certo sentido, ministro da Igreja. É a visão e a ação da Igreja que passa através dele.

Por via de conseqüência, o conjunto do programa da decoração de uma igreja constitui uma expressão iconográfica da confissão da fé, cujo objeto essencial é a economia da Salvação, segundo a concepção ortodoxa, graças a esse realismo místico próprio ao ícone. Esta iconografia não tem apenas uma utilidade didática; ela é um elemento da celebração litúrgica e contribui à atualização dos mistérios representados em favor da assembléia eclesial.

Sabemos muito pouco acerca do programa iconográfico das igrejas anterior ao período iconoclasta. Provavelmente, já comportava o essencial do que encontramos em seguida. Em sua forma clássica, este programa desenvolve–se logo depois do triunfo da Ortodoxia sobre o Iconoclasmo (843), e atingiu o seu pleno desenvolvimento nos séculos XI e XII. Com inevitáveis variações de detalhes, não cessou de presidir a decoração das igrejas nos séculos seguintes.

Podemos traçar então as grandes linhas deste programa. Trata-se aqui, é claro, de um ideal que sempre comporta variações. No nártex, além da representação dos Concílios Ecumênicos (que aparece apenas a partir do séc.XIII) encontramos a figuração da volta de Cristo no fim dos tempos (Parusia), com a cena do Julgamento Final e a entrada dos eleitos na cidade celestial. Desde a entrada da igreja, é o termo de toda a economia da Salvação, da qual cada liturgia é antecipação, sendo-nos assim proposta. Notamos que os escultores romanos, colocando tão freqüentemente no tambor do relógio das igrejas representações da Parusia e do Julgamento Final seguem esta tradição.

Franqueando as Portas Reais que permitem acessar do nàrtex à nave, descobrimos o ícone do Pantocrator (Mestre de todas as coisas, Aquele Que tudo mantém), geralmente pintado em busto sobre fundo de ouro da cúpula. “O tipo iconográfico do Pantocrator exprime, nos traços humanos do Filho encarnado, a majestade do Criador e do Redentor que preside aos destinos do mundo” (8), sendo então o princípio e o fim de toda a economia da Salvação. Freqüentemente, o Pantocrator está cercado por Anjos e Profetas do Antigo Testamento, que figuram sobre o tambor da abóbada. Os quatro Evangelistas, anunciadores do desígnio da Salvação são representados sobre os pendentes - parte da abóbada suspensa entre os arcos que sustentam a cúpula.

A concavidade da abside traz habitualmente a imagem de Virgem Maria, Mãe de Deus. É por meio d´Ela que o desígnio da Salvação se realiza, e é n´Ela que primeiramente e em plenitude dá frutos. Ela é assim como a imagem pessoal da Igreja. Na parede da abside, a comunhão dos Apóstolos pelas mãos de Cristo vem manifestar Seu papel de celebrante invisível à cada liturgia, representado pelo Bispo ou o sacerdote. Abaixo, cercando o altar, os ícones dos Santos Hierarcas, com os quais o sacerdote parece concelebrar, proclamam a unidade do sacrifício litúrgico no tempo e no espaço.

A abóboda acima do altar traz, na maioria das vezes, a representação da Ascensão de Cristo e, por vezes, do Pentecostes, o envio do Espírito Santo pelo Cristo ressuscitado e “sentado à direita do Pai” corresponde à epiclese eucarística; é pelo Espírito que os santos Dons são santificados e que a Assembléia litúrgica é soldada (reunida) em um só Corpo de Cristo.

Na parte anterior do santuário, à esquerda e a direita, são representados a Virgem da Anunciação e o Arcanjo Gabriel. A Anunciação marca o momento da Encarnação do Cristo e constitui a porta do mistério da Salvação (Ela é representada sobre as portas da Iconostase, bem como os Evangelistas). A Dormição da Mãe de Deus (Assunção) se encontra em face, acima das portas reais, como prefiguração do destino celeste de toda a Igreja, figurada pela Mãe de Deus. As outras cenas evangélicas são representadas sobre as abóbadas ou sobre a parte alta das paredes: Nascimento, Batismo, Transfiguração, Crucificação, Ressurreição... A escolha destas cenas pode variar, sem preocupação de correspondência com o número das grandes festas do ano litúrgico.

Enfim, nas paredes, longas teorias de Santos unem a Igreja celeste com a assembléia presente, manifestando sua compenetração e identidade mística. Estas representações dos Santos encontram–se imediatamente acima das cadeiras do côro – stalas – (eram venerados no fim do ofício); esta disposição faz lembrar os dorsos pintados e esculpidos das stalas do côro no Ocidente. Por outro lado, podemos remarcar que estas cadeiras só aparecem na Europa Ocidental depois das Cruzadas; sua origem é oriental, pois que nas igrejas cristãs do Oriente, representam uma evolução do bastão em forma de Tau dos “Anciãos” do deserto que neles se apoiavam durante os extensos ofícios.

De modo geral, apenas conhecemos os ícones na forma de ícones portáteis, destacados de todo contexto de arquitetura. Com certeza, a existência e a veneração de tais ícones é perfeitamente legítima na Igreja Ortodoxa e pode-se autorizar por uma tradição muito antiga. Todavia, como busquei mostrar, os ícones se revestem de todo seu sentido para compôr a decoração de uma igreja e se harmonizam com a arquitetura, fazendo de todo edifício uma manifestação do conjunto da obra de Salvação. É somente então, que sua dupla função de confessar a fé nesta divina economia e torná-la presente dentre nós na plenitude do mistério litúrgico.


NOTAS
1. Existiu no Oriente uma tradição que religava as prescrições canônicas da Igreja aos Apóstolos, ou mesmo tal ou tal Apóstolo em paricular: cf. Les Constitutions apostoliques, 1 (SC 320), 1985, p. 34-38.
2. GREGOIRE le Grand, Épître à Serenus de Marseille, Cité dans F. BŒSPFLUG et coll., Nicée II, 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. 1987, p. 275-277.
3. S. JEAN DAMASCENE, Discours II ; PG 94, 1288 AB.
4. Sobre a Teologia do Ícone, ver sobretudo: Léonide OUSPENSKY, La théologie de l’icône dans l’Église orthodoxe, 1980 ; Christoph VON SCHÔNBORN, L’icône du Christ. Fondements théologiques, Fribourg, 1976.
5. Cf. Christopher WALTER, L’Iconographie des conciles dans la tradition byzantine, 1970.
6. La Divine liturgie de saint Jean Chrysostome, Nice, 1976, p. 44-46 (com modificação na tradução).
7. O programa iconográfico das igrejas bizantinas foi notavelmente analisado e interpretado por P. Éphrem QUERET, O sistema de ambientação das igrejas bizantinas na época das dinastias Macedônia e Comneme, ou a Mistagogia da Salvação, Memória de mestreza, Universidade de Ciências Humanas de Strasbourg, S.l.n.d. Amplamente utilizado aqui .
8. Léonide OUSPENSKY e Vladimir LOSSKY, Le sens des icônes, 2003, p. 73a.

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