Arquimandrita Sofrônio, um homem sedento de absoluto
COSSEC Arquimandrita Symeon
tradução de monja Rebeca (Pereira)
I |
Pela força dos acontecimentos, um testemunho é algo de subjetivo, e por vezes mesmo parcial, algo que não é e não pode ser completo, que não é sempre exato no sentido da exatidão fotográfica, mas, de certo, verdadeiro – da verdade do retrato, no qual penetram-se facilmente alguns traços daquele que é retratado. É nesta perspectiva que arriscaria dizer algumas palavras a respeito do Padre Sofrônio; consciente de que não passarão de algumas gotas no oceano.
Eu nada sabia acerca do Padre
Sofrônio, além de ser ele um monge russo, vindo do Monte Atos, e que se encontrava
na região parisiense. Eu não conhecia nem o seu nome, nem, a fortiori, o seu endereço. É em busca deste “monge desconhecido” que,
vindo de Lausanne, cheguei a Paris no final de dezembro de 1950 – em busca de
suas coordenadas. Eu me dirigi, então, aos Lossky (família russa que se
estabelece em França no início do século XX, em virtude da turbulenta situação
na Rússia), onde celebravam justamente uma festa de família em seu espaçoso
apartamento situado na Ile Saint-louis, de frente para o Seine. Lá, encontrei
as coordenadas que buscava: era o hieromonge Sofrônio, residente em Donjon, em
sainte-Geneviève-des-bois (aproximadamente a 25 Km ao sul de Paris).
Eu conheci o Padre Sofrôno nos
primeiros dias de janeiro de 1951. Ele devia ter uns cinqüenta e cinco anos.
Não o encontrei em seu domicílio, em Donjon, mas antes na Maison Russe, situada
ela também em sainte-Geneviève-des-bois. O encontro fora muito breve pois ele
estava ocupado com um grupo de pessoas idosas, do qual pode, todavia,
ausentar-se por alguns instantes para me saudar. Permanecemos em pé no
corredor, mas estes alguns poucos minutos foram suficientes para mudar o curso
de minha vida.
No dado momento, eu não o sabia com
tamanha evidência: é somente retornando ao meu passado, que agora, eu o posso
afirmar.
O Padre Sofrônio me acolhe com uma
cortesia extrema, em seguida me diz algumas palavras que revelavam que o seu
amor havia penetrado até os confins mais secretos do meu ser. Eu sabia desde
então que nele eu havia descoberto a “pérola preciosa”, e resolvi retornar para
vê-lo no verão seguinte.
Nesta época, o Padre Sofrônio não
era conhecido: somente nos estreitos círculos da emigração russa, em Paris,
sobretudo pelo seu livro Ancião Siluan,
que ele próprio havia publicado, em uma edição renovada, em 1948. Ele vivia em
condições extremamente modestas, para não dizer miseráveis. Somente algumas
raras pessoas conheciam e vinham lhe visitar para beneficiar de sua direção
espiritual.
Agora, depois de mais de 50 anos – e
10 após sua morte: estamos em outubro de 2003 – a situação mudou radicalmente.
O Padre Sofrônio é conhecido no mundo ortodoxo inteiro. É o caso, sobretudo no
Monte Atos, na Grécia, e em Chipre, onde o seu renome, igual aquele dos Anciãos
mais célebres da segunda metade do XX século, mas igualmente na Rússia e nos
outros países eslavos, como é o caso da Romênia, na Ortodoxia de língua arábica
(Líbano e Síria), sem deixar de nos esquecermos dos meios ortodoxos da
emigração, na Europa e na América. O Padre Sofrônio fora, sobretudo remarcado
enquanto autor do livro Ancião Siluan
(edição russa impressa em 1952, rapidamente traduzida em quase todas as línguas
na Europa ocidental). Fora ele imposto como biógrafo de São Siluan e como
teórico da ascese monástica ortodoxa. Também reconhecemos nele um verdadeiro
Ancião, no senso forte do termo: um Pai Espiritual beneficiando não somente de
uma longa experiência (diz-se que “no fim da sua vida era o Pai Espiritual mais
idoso da Igreja Ortodoxa”), mas também de uma incontestável inspiração vinda do
Alto.
Teólogo do monaquismo e da ascese
ortodoxos e, bem obviamente, Pai Espiritual: estas duas características estão,
todavia longe de esgotar a riqueza da personalidade do Padre Sofrônio. É a
respeito de outros aspectos do Ancião que eu gostaria de m dirigir neste rápido
sobrevôo.
Encontramos junto do Padre Sofrônio
uma diversidade de traços que se descobrem raramente em uma mesma pessoa, por
serem mais ou menos exclusivos, uns dos outros. Nele, todavia, estavam ao
contrário, harmoniosamente reunidos. Em uma palavra, era um homem de uma
excepcional complexidade. Eu darei um só exemplo dentre muitos outros: a união
de uma extrema fidelidade à Tradição e de uma criatividade com tamanha audácia.
O Padre Sofrônio era um criador corajoso, audacioso mesmo, o que confirma o
fato de que a Tradição, longe de ser um conservantismo morto e frívolo, é uma
“criação sempre nova” sob o sopro do Espírito Santo. “Eis que faço novas todas
as coisas” (Apocalipse 21: 5).
O Padre Sofrônio estava aberto a
todos. Tirava sua abertura da própria Igreja Ortodoxa, jamais limitada à uma
cultura particular, à uma área geográfica ou à uma época histórica: ela é a
Igreja do Cristo em toda a sua universalidade,
à qual nada falta. Ela não é a parte “oriental” da Cristandade. Também se
entristecia quando remarcava – muito geralmente – que um espírito de
nacionalismo se infiltrava na vida da Igreja e nela deformada esta
universalidade à imagem do Cristo, onde “não há nem judeu nem grego”. A
estreiteza do espírito, ou ainda o que ele chamava, com um sorriso, o espírito
“Dardanellino” lhe era totalmente estranho, este espírito que põe em perigo
outro aspecto da vida cristã ao qual ele está muito ligado: a liberdade. Para ele, todo ato espiritual
que não é livre (realizado na pressão física, moral ou psicológica) não tem
valor diante de Deus, o que não o impedia de colocar a obediência – aquela que
é à imagem de Cristo – na base de toda vida monástica, mas também da vida
cristã, enfim.
II
Tragamos, então, rapidamente à
memória algumas das facetas que compunham a riqueza da personalidade do Padre
Sofrônio e lhe permitiam de se entreter livremente, em um total respeito pelo
próximo, com praticamente não importa qual ser humano: criança ou idoso, homem
ou mulher, rico ou pobre, instruído ou ignorante, ortodoxo, de outra religião
ou até mesmo ateu, dispondo alto ou baixo status na hierarquia social ou
eclesiástica, grande teólogo ou piedoso e simples batchuska.
1. Pintor
Nascido em 1896, em Moscou, o Padre
Sofrônio consagra a primeira parte de sua vida à pintura. Ele chega a Paris em
1922, e diante dele se abrem as portas dos prestigiosos Sallon d´Automne e Sallon
de Tuilères, onde suas obras são expostas. Totalmente dado (dedicado) à sua
arte, ele o era de uma maneira que já anunciava seu desenvolvimento interior:
sua arte, em efeito, era como uma mistagogia destinada a penetrar nos segredos
do ser, ou melhor, a penetrar os segredos do Ser.
2. Místico Oriental
É nesta perspectiva que ele pratica,
já na Rússia, uma forma de meditação a qual o afasta temporariamente do
Cristianismo de sua infância, que ele considerava como situado sobre um plano
“psíquico” (do amor de Deus e do próximo) e não sobre aquele do Ser transcendendo toda limitação ou
determinação (por exemplo aquela da pessoa, que ele confundia com o indivíduo).
Ele mergulhava resolutamente na busca deste Absoluto transpessoal então a Seus
olhos únicos digno das nossas últimas aspirações.
3. Monge Cenobítico
É em Paris que ele vem a
encontrar-se sobre uma via conduzindo a um “suicídio espiritual”, à abolição
daquilo de mais precioso no homem: a pessoa. Seu retorno a Cristo e à Igreja
foi tão radical como sua busca precedente; nem a pintura nem os estudos de
teologia no Institut saint Serge puderam retê-lo no mundo: em 1925, ele se
dirige ao Monte Athos. É lá que ele encontra, em 1930, o Ancião Siluan, fato
determinante para todo o resto da sua vida. Em certo sentido, fora também neste
encontro que ele pôde fazer erguer a longínqua origem de nosso Mosteiro.
4. Eremita e Pai
Espiritual
O Ancião Siluan morre em 1938. No
ano seguinte, Padre Sofrônio se retira à Karoulia, na extremidade meridional da
península do Athos, onde vive como eremita em uma gruta, levando uma vida de extrema
autoridade. Foi ordenado padre em 1941 e torna-se Pai Espiritual em 1942. Seu
perfeito conhecimento da língua grega lhe permite exercer seu ministério junto
dos monges do Mosteiro de São Paulo e de outros Mosteiros na costa oeste do
Atos. Estava ele também em um estreito contato espiritual com os eremitas e
ascetas dos skite que se encontram nesta parte da Santa Montanha. Ele vivia
então em outro eremitério, aquele da Santíssima Trindade, igualmente em uma
gruta, situado em uma falésia descendo a pico no mar.
5. Teólogo e Autor de
Escritos ascéticos
Em 1947, depois de vinte dois anos
de vida no Monte Athos, o Padre Sofrônio retorna a Paris com a intenção de
publicar os cadernos e as notas do Ancião Siluan. Como já o dissemos, uma
primeira edição fora impressa pelos seus cuidados, em 1948, seguida por uma
primeira edição impressa em russo em 1952. Uma doença grave, a qual o deixa
semi-inválido, bem como outras tarefas interromperam parcialmente sua atividade
de escrito (ele tinha projetado uma terceira parte para o seu livro Ancião Siluan, no entanto, ela jamais
viu o dia). Ele retoma esta atividade nos anos 1970 e 1980 e publica Sua vida e a minha (em inglês, 1977), Ver
Deus tal como Ele é (em russo, 1985) e Sobre
a Oração (em russo, 1991). Seu domínio próprio é antes de tudo a teologia
da vida monástica e ascética, baseada em sua experiência própria e sobre a
tradição dos Padres da Igreja, todavia a teologia especulativa não lhe era nem
um pouco estrangeira: como prova, ver seu ensaio “Unidade da Igreja à imagem da
Trindade Santa” e seu livro Ver Deus tal
como Ele é.
6. Epistolário
No Monastério de São Panteleimom, o
Padre Sofrônio mantém, desde 1932, uma importante correspondência com David
Balfour, em seguida com menos intensidade, até a morte deste último em 1989.
Mais tarde, na França e depois na Inglaterra, teve relações epistolárias
seguidas com membros de sua família em Moscou, com Padres (como exemplo, o
Padre Boris Stark, em Iaroslav) e outras pessoas. Desta volumosa
correspondência, em vias de publicação, três volumes já foram publicados em
russo.
7. Escritor Litúrgico
O Padre Sofrônio compôs numerosas
orações pessoais mas também importantes coletâneas de orações podendo ser
utilizadas no quadro da Liturgia, ofícios para os defuntos, etc...
8. Fundador de um
Monastério
Desde o outono de 1956, um pequeno
grupo de pessoas de diferentes nacionalidades começa a se reunir para orar
junto em um curral transformado em capela, situado em uma propriedade privada
pertencente a um emigrante refugiado em França, Bédir Khan, que nesta época era
professor na Escola de línguas orientais em Paris. A ausência de livros litúrgicos em
eslavônico e a diversidade de línguas das pessoas concorrentes – homens e
mulheres – fez com que esta oração se concentra-se na recitação em comum da
Oração de Jesus, e sobre a Liturgia eucarística celebrada pelo próprio Padre
Sofrônio, único padre do grupo, na época. Em 1959, o Padre Sofrônio,
acompanhado de outras quatro pessoas deste grupo, atravessa o Canal da Mancha e
lançam as bases do que tornar-se-á, ao curso dos anos, o Mosteiro São João
Batista em
Tolleshunt Knights , próximo a Maldon (Essex).
9. Iconógrafo
No fim de sua vida, o Padre Sofrônio
retoma os pincéis que havia abandonado em sua juventude. A construção de um
grande refeitório podendo igualmente servir de capela (como por exemplo, na
Lavra da Trindade São Sérgio, próximo a Moscou) o leva a conceber e a executar
uma imponente composição de pinturas murais cobrindo as paredes e o teto deste
refeitório e representando as principais festas do ciclo litúrgico. Um grupo de
monjas, e outras pessoas as quais ele mesmo havia iniciado à iconografia,
trabalham com ele, no entanto, não hesita em subir, ele próprio, nos andaimes
para pintar as partes mais delicadas, particularmente os rostos. A Igreja de
São Siluan é igualmente coberta de afrescos, executados sob a sua direção ou
por ele mesmo, e isto depois de ter passado a marca dos noventa anos.
10. Oriental ou
Ocidental?
A grosso modo, o Padre Sofrônio passou
metade de sua vida no “Oriente” (Rússia e Grécia) e a outra metade no
“Ocidente” (França e Inglaterra). Mesmo guardando a riqueza, ele soube não
permanecer nela prisioneiro, abrindo-se ao Ocidente. O que pode ser demonstrado
pelo seu domínio do francês, e até mesmo do inglês, que ele começou a aprender
com uma idade já avançada. O mais longo quanto possível, guardou o contato com
o Padre Eugraphe Kovalevski, que preconizava uma abertura da ortodoxia sob a
herança cristã ocidental. Nisto, ele também era muito próximo a Vladimir
Lossky. Ele muito rapidamente insistiu no fato de que no mosteiro celebrássemos
a Liturgia também em inglês, isto em uma época onde o grego ou o eslavônico
reinavam quase absolutamente nas igrejas da diáspora ortodoxa na Europa. Uma
tradução inglesa da Liturgia, feita por uma pessoa próxima ao Padre Sofrônio
foi publicada em 1982, depois de ter sido utilizada sob a forma manuscrita
durante muitos anos, a título experimental. Este senso da inculturação é também
perceptível no estilo iconográfico pouco a pouco criado sob a sua influência no
Mosteiro de São João Batista: é o estilo bizantino, todavia interpretado de uma
maneira que reflete igualmente o ambiente físico e cultural da Inglaterra.
11. Dom da Palavra
O Padre Sofrônio tinha um
excepcional dom da palavra. Remarquei ainda acima que ele podia relacionar-se
praticamente com quem quer que fosse, todavia não é isso que agora tenho em vista. Quando falava
de realidades do mundo espiritual no qual ele vivia, ele possuía o dom de
fazer, de certa medida, penetrar seus auditores ou seus interlocutores. Sua
palavra era mais do que uma simples vibração do ar transmitido idéias ou
pensamentos: era uma energia espiritual que ele transmitia àqueles que eram
capazes de recebê-la. Ouvindo-o falar, podíamos entrever o que o Ancião Siluan
tinha em vista ao dizer: “Os perfeitos nada falam por eles próprios... só falam
o que o Espírito lhes inspira” (Starets
Silouane; p.56).
12. Humor
Para com o Padre Sofrônio, os
opostos se encontravam: ele era antinômico. Depois de todos os traços de sua
personalidade que aqui enumeramos, não era justo passar em silêncio este então:
o Padre Sofrônio tinha um excepcional senso de humor. Tinha todo um repertório
de anedotas as quais ele gostava de contar de vez em quando. Decerto ,
elas ocultavam geralmente uma “lição” sob sua aparente superficialidade, tal
como nas fábulas de Krylov – o La
Fontaine russo – que por tantas vezes ele citava.
Antes de concluir este breve esboço,
eu gostaria ainda de adicionar uma palavra. Falei (citei) da coexistência no
Padre Sofrônio das características que se encontram raramente reunias em uma
mesma pessoa. É isto que faz toda riqueza de sua pessoa no plano simplesmente
humano.
Sou conscientemente levado a me
limitar aos traços exteriores de sua personalidade, sem tocar em sua vida
interior, em sua vida espiritual íntima. Mencionarei, todavia, uma das vivas
impressões que guardo dele: a união da fragilidade de um corpo enfraquecido
pelas doenças e o peso dos anos, e a espantosa força de um espírito habitado
até a morte pela graça do Espírito Santo. Nele realizou-se verdadeiramente a
vocação do homem: da terra que pode falar com o Deus transcendente do Céu e, em
toda verdade, Lhe dizer: “Pai”.
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