O abandono de Deus
LARCHET Jean-Claude
tradução de monja Rebeca (Pereira)
Todo homem recebe a
graça de Deus de certa medida. Mas esta medida pode variar consideravelmente de
uma pessoa à outra, ou de um momento da existência ao outro. Pode ela ir de uma
simples impulsão divina, de uma ajuda em um ato ou acontecimento qualquer da
vida cotidiana à recepção do Espírito Santo vindo em plenitude fazer Sua morada
na alma e no corpo, divinizando-os pela Sua energia infinita.
Esta última experiência
é aquela que faz o Santo, quando purificado de todas as paixões e possuindo
todas as virtudes, Deus Se acha digno de revelar-Se a ele em Sua luz incriada,
de uni-lo intimamente a Ele, enfim, de o deificar.
Esta experiência, a
princípio, só se realiza junto aos Santos, porque estão eles, em seus
espíritos, corações e em seus corpos, suficientemente puros para estabelecerem
a união perfeita com Deus; somente eles, como o dizem os Padres, são dignos de
Sua presença.
Todavia, São Siluan
afirma, por várias vezes, que Deus pode em certos casos – que permanecem mesmo
excepcionais – revelar a plenitude de Sua graça a certos homens que não são
Santos e que não estão aptos, pelo estado interior, a tal revelação, não são
dignos de tal manifestação de Deus neles. Trata-se, então, de um dom
inteiramente gratuito de Deus, o quê manifesta que a graça não depende, de
maneira alguma, dos esforços ascéticos do homem, não é o “efeito” de uma
“causa” que teria sua fonte no homem, não está ligada a uma lei e não é a
conseqüência de uma necessidade, mas antes é dada por Ele de uma maneira livre,
liberal, desinteressada e por pura bondade. Por esta mesma razão, é difícil
dizer por que Deus Se revela e Se comunica de tal maneira a certas pessoas e
não a outras. Aqueles que beneficiam deste dom são objeto de uma eleição, de
uma escolha de Deus, de acordo com o desígnio particular e misterioso de Deus
para com eles, com os seus destinos espirituais próprios tais qual a
Providência divina conduz.
Se tal experiência é um
dom magnífico de Deus e convém recebê-la com imensa gratidão, por outro lado,
ela é muito difícil de assumir. Quando tal graça é comunicada; ela traz consigo
meios de recebê-la e provar os efeitos com proveito. Aquele que não é Santo,
que não está perfeitamente purificado em seu espírito, em seu coração e em seu
corpo, e que não é familiar a Deus pela possessão das virtudes não poderá, sem
que a própria graça proteja, suportar a plenitude de Sua presença. Quando Deus
aparece a Moisés, na luz e no fogo da sarça ardente, ele “encobre o seu rosto,
porque teme olhar para Deus” (Ex. 3,6). Os próprios Apóstolos ao verem o Cristo
transfigurado sobre o Monte Tabor são lançados por terra em virtude da visão,
ocultando o rosto como que para se protegerem do esplendor que provocava esta
luz intensa em seus olhos não preparados a contemplá-la.
Aquele que assim
experimenta sem ser Santo 1 se distingue deste último pela
impossibilidade de conservar a graça que ele recebeu e de viver continuamente
tal experiência.
Ele perde esta graça, e
é isto que provoca a experiência da derrelição.
Em verdade, a perda
desta graça não significa o abandono do homem da parte de Deus. Ela significa
da parte do homem a incapacidade de conservar a graça recebida e de viver
continuamente nela. A experiência da derrelição é a experiência do vazio e da
dor que ressente o espiritual quando esta graça o deixa. Esta experiência de
perda da graça é em efeito extremamente dolorosa. É uma provação que
pouquíssimos homens são capazes de suportar e é, sem dúvida, também porque o
dom antecipado da plenitude da graça só é dado a alguns dentre eles.
A vinda do Espírito
Santo na alma a preenche de vida, de calor, de amor, de júbilo e de
conhecimento. Quando ele deixa a alma, esta se sente morta, fria, seca,
ignorante. O júbilo dá lugar à tristeza; a luz à obscuridade. O homem se sente
deprimido.
Porque ele fez a experiência
da graça, sabe o quê lhe falta quando ela não está nele (ao que o homem
ordinário não se sente nenhum pouco consciente, ou só a percebe indiretamente,
através de um mal-estar indefinível). Podemos dizer então que o homem se
apercebe tal como ele é em seu estado decaído, em sua nudez, sua fraqueza, sua
indigência, com todas as paixões que nele permanecem, e em seu “pecado” – o quê
quer dizer em seu estado de separação de Deus. Tendo feito a experiência de
Deus, ele percebe toda a distância que o afasta d´Ele. Constata também que esta
distância é infinita, e ele desespera de poder sempre percorrê-la. Tendo
provado pela presença do Espírito Santo o que é a plenitude do amor de Deus,
ele ressente nele esta perda como um inferno.
Todavia, muito felizmente
esta experiência da perda da graça não deixa na alma somente sentimentos
negativos.
Ela é também a fonte de
uma profunda, permanente e tenaz nostalgia de Deus, de um desejo intenso de
reencontrar a graça perdida e de reviver a presença calorosa, resplandecente e
plena de júbilo do Espírito Santo.
Ela dá, então, à vida
espiritual um dinamismo considerável que leva o homem a se investir totalmente
na busca de Deus, a fazer de tudo e a se ultrapassar a fim de encontrar a
intimidade com Ele. Ela leva o homem à plenitude e à humildade, pois lhe dá um
sentido profundo de sua fraqueza e de sua insignificância, de sua indignidade e
de sua incapacidade de encontrar, ele-próprio, o que busca.
O que podia, em um
primeiro plano, parecer como um mal e era para o fiel a fonte de grandes
sofrimentos, parece desde então como uma benção. Deus só retirou do homem a Sua
graça que havia dado gratuitamente e por antecipação para lhe dar a buscar e
reencontrá-la livremente, voluntariamente e que ela seja então para ele não como
um bem que o impomos e que ele não pode verdadeiramente provar e conservar
porque lhe é, de certa forma, exterior e estrangeiro, mas como qualquer coisa
que torna-se seu próprio bem e que ele partilha verdadeiramente com Ele. 2
A perda da graça é
também uma revelação ao homem de toda a medida de sua fraqueza, de sua
impotência, de sua nudez, de sua miséria sem a graça pois aquele que conheceu a
sua presença e seus efeitos mede o vazio que marca a ausência, enquanto que
aquele que nunca viveu tal experiência não pode ter nada mais do que uma
pequena percepção, vivendo na ilusão de uma falsa plenitude. “Tendo sido tocado
pela graça, o homem vive pensando que tudo está bem e em ordem em sua alma,
mas, no entanto, quando a graça o visita e permanece com ele, ele se descobre
diferente, e só em seguida, quando a graça o abandona de novo é que ele se dá
conta que vive então sem graça e em um grande mal”. “Quando a graça está
conosco, ela confirma o nosso espírito; mas quando a perdemos, descobrimos a
nossa fraqueza”. “Quando ele é tocado pela graça, o homem é grande diante de
Deus”; mas “privado da graça, somos como animais”. Esta última consideração
reflete a experiência própria de Siluan depois de a graça o ter deixado: “Tive
de suportar que a graça do Espírito Santo me deixe e que me sinta como um
animal em um corpo humano. Eu me lembrava de Deus, mas, no entanto, minha alma
havia se tornado vazia como aquela de um animal”.
1. O que era, aliás, o caso dos Apóstolos, no episódio da
Transfiguração do Senhor; o Espírito Santo não havia ainda sido dado.
2. Podemos aqui nos lembrar desta frase de São Gregório de Nazianzo:
“Deus honrou o homem, conferindo-lhe a liberdade, a fim de que o bem pertença
como próprio àquele que o escolhe, não menos que àquele que põe as
primícias do bem em nossa natureza” (Discursos, XLV, pg.36,632 c).
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