ESPAÇO SAGRADO, ARTE SACRA E O PODER DAS MULHERES
PAGEAU Jonathan
tradução de monja Rebeca (Pereira)
Mas para aqueles que conseguem enxergar a centelha cintilante mesmo nos lugares mais sombrios, há um mistério oculto na redução, de outra forma verdadeiramente infeliz, das mulheres à sua única capacidade de seduzir, um mistério que esconde uma visão muito poderosa do feminino para aqueles que ousam agarrar a cobra pelo rabo. Quando vista corretamente, a sedução é, na verdade, um exemplo das categorias ontológicas mais essenciais. É uma versão do próprio poder de manifestação, dentro da díade tradicional de poder e autoridade, potestas e auctoritas, potencial e atualidade.
Vejo alguns leitores já pegando pedras, mas, por favor, tenham paciência. A sedução é um aspecto interessante do comportamento humano, pois não é uma ação sobre o mundo em si, mas sim um tipo de operação que, voluntária ou involuntariamente, desperta o desejo de agir nos outros. Não é um mandamento, nem uma injunção que se dirige à vontade de uma pessoa, nem é um ato de violência destinado a constranger ou controlar. Em vez disso, é uma mistura de mostrar e esconder, a revelação de um mistério que se espera que chame a atenção e concentre a ação no objeto ou pessoa que está seduzindo o observador, consciente ou inconscientemente. Acredito que este seja o aspecto mais profundo da sedução, que também encontramos na publicidade moderna. Sedução é um "pedido de atenção", a abertura ou o enquadramento de um espaço de ação dentro do fluxo dos fenômenos. Quando um jovem encontra o mundo, ele pode abrigar uma "ideia" da relação entre os sexos: rapaz conhece moça, casa-se com moça, tem filhos, etc. Mas o mundo é composto por 51% de mulheres, o jovem está cercado por elas. Certamente, estamos lidando com um processo multifacetado, mas, pelo menos no início, uma mulher específica deve aparecer em sua experiência do mundo e, de alguma forma, "se destacar" das outras, despertar nele o desejo de buscar um relacionamento com ela em particular, em vez de com todas as outras mulheres em seu horizonte. Dessa forma, a sedução e o desejo precedem a ação, em muitos aspectos, até mesmo a escolha.
É claro que a sedução é apenas uma faceta da ideia maior à qual espero chegar. O exemplo mais elevado da abertura de um espaço para o ser e a ação pode ser visto no feminino através do útero, gerando o corpo e nutrindo a criança (pois o que é nutrir senão proporcionar a possibilidade de um ser se desenvolver?). Ao prestar atenção às imagens poéticas que cercam a Mãe de Deus, descobriremos muitos exemplos de como Ela aparece como o espaço, o suporte, a base a partir da qual o Logos surge. Se Cristo é o Sol, então Ela é o oriente. Se Cristo é a glória, então Ela é a arca. Se Cristo é a pérola, então Ela é a concha[1]. Uma rápida olhada na hinografia produzirá dezenas dessas comparações.
Se ampliarmos a estrutura, veremos o tipo da Mãe distribuído em extensões sociais de espaço e corpo que tradicionalmente têm sido associadas ao feminino. Estas incluem o lar, a cidade e a igreja, tanto como um edifício real quanto a visão mais comunitária da Igreja como o Corpo de Cristo. Afirmo que, na história do Cristianismo, as mulheres, tanto como noivas quanto como mães, sistematicamente precederão e cercarão. Assim como vemos a Theotokos nos mostrando Seu Filho no famoso ícone da Hodogetria, as mulheres estarão lá para abrir o caminho para Cristo e a cruz. E assim como a Hodogetria foi exibida nos muros para salvar Constantinopla, assim como a Mãe de Deus foi vista por Santo André de Constantinopla estendendo Seu véu sobre o povo em proteção, outras santas, imitando a Theotokos, também estarão lá sempre que houver necessidade de abrir ou proteger espaços sagrados, as cidades, as igrejas e, claro, os ícones.
Reformulando a Tentadora como Hodogetria
Muita tinta foi derramada sobre Eva como a tentadora, e nos tempos modernos temos querido minimizar esse aspecto da história do Gênesis o máximo possível. Embora eu entenda o porquê e simpatize com aqueles que o fizeram, temo que, ao eliminar completamente esse aspecto, nos tornaremos cegos às implicações mais amplas de sua estrutura. Se ignorarmos como Eva tentou Adão até a morte, abrindo-lhe a possibilidade de morrer, de assumir as vestes de pele e tudo o que isso implica em termos da multiplicação do Homem em Humanidade, do desenvolvimento das artes e da saída do jardim para o mundo, então não entenderemos como essa mesma estrutura se desenvolverá no restante da história cósmica.Na Bíblia, há muitos exemplos de sedução para a morte[2], mas, para compreendê-los plenamente, devemos ter em mente a dualidade da morte. A morte é um afastamento da unidade de um centro (coração, jardim, terra santa, etc.) ou uma descida de volta à terra. Isso inclui tanto uma dissipação no "pó", quanto um "efeito vacina", um tipo de suplemento externo onde a morte se torna uma proteção contra a morte, daí a imagem patrística das vestes de pele morta dadas a Adão e Eva na queda para protegê-los. Esse efeito vacinal é também a raiz do sacrifício ritual que atinge seu ápice em Cristo arrazando a morte pela morte.
Uma das histórias surpreendentes que denotam essa sedução para a morte, ao mesmo tempo em que a associa ao papel da mãe, é a história de Jael no livro dos Juízes. Jael é uma mulher quenita que mata Sísera, um rei inimigo, enquanto ele foge de uma batalha perdida. Jael convida Sísera para sua própria tenda, conotando uma proposta sexual[3], mas então o cobre com um cobertor, lhe dá leite e o coloca para dormir, atos típicos de uma mãe, apenas para então assassiná-lo, empalando-o com uma estaca na cabeça. Os papéis da sedutora e da mãe se unem para revelar um aspecto poderoso do feminino. Jael não força Sísera, não lhe diz o que fazer, mas o convida e atende às suas necessidades físicas antes de matá-lo.
Como de costume, no Cristianismo há uma reformulação transfigurada dos modelos do Antigo Testamento, e um lugar onde vemos essa estrutura surpreendente reaparecer é no ícone da Natividade. No ícone da Natividade, a caverna desempenha o papel da tenda de Jael, e Cristo é mostrado envolto em um pano, assim como Sísera foi envolto em um cobertor. A relação Mãe-Filho é claramente definida no ícone da Natividade. Mas há outra vertente de significado, visto que a caverna, e mais especificamente a manjedoura em seu design e seu papel como recipiente de alimentação para animais, pretende evocar o túmulo. E assim, no nascimento de Cristo da Theotokos, o Corpo de Cristo já aparece tanto como o espaço para Sua vida quanto como o espaço para Sua morte. É claro que a Theotokos não mata Cristo, mas os meios de morte são analógicos, no entanto. Na história de Jael, a estaca é uma imagem explícita da pregação de Cristo na cruz e, embora no ícone da Natividade isso não precise aparecer literalmente, a cruz está implícita até mesmo no halo cruciforme ao redor da cabeça de Cristo.
No Novo Testamento, outra história que pode nos ajudar a ver a abertura de um espaço para a ação e, mais especificamente, para uma tentação à morte, está nas Bodas de Caná. Essa história é extremamente rica e complexa, e elucidá-la completamente exigiria um livro inteiro, mas há alguns detalhes que podem nos ajudar em nosso tema.
Quando o vinho acaba no casamento, a Theotokos vem a Cristo e lhe diz: “O vinho acabou”. Este comentário é a declaração de um problema, que implicitamente contém um chamado à ação. É um enigma ou uma pergunta para o Logos responder e atua como a moldura para Sua resposta. Ao ouvir isso, Cristo não transformaria uma pedra em pão, isso não faria sentido. Ele deve decidir se, e em caso afirmativo, como, fornecerá uma solução para o problema. Dessa forma, a Theotokos está fornecendo um “corpo”, enquadrando a possibilidade na qual Ele iniciará o processo de manifestação do Logos. A resposta de Cristo é reveladora. “Mulher, o que tenho Eu com isso? A Minha hora ainda não chegou.” A Minha hora ainda não chegou? Como veremos mais adiante no Evangelho de São João, esta expressão se relaciona com a morte de Cristo[4]. E assim, minha própria pergunta ecoa a de Cristo: o que a falta de vinho em um casamento poderia ter a ver com Sua morte? Já vemos que está relacionada, mesmo que não entendamos o porquê[5]. Vemos que a Theotokos não está apenas abrindo um corpo, um caminho, para a manifestação do Logos, mas esse corpo já é visto como algo que leva à morte desde o início. De alguma forma, Ela está espelhando o ato de Eva, que, ao dar o fruto ao marido, não lhe disse o que fazer, não o constrangeu de forma alguma, mas, ao colocar a possibilidade diante dele, Eva "enquadrou" o curso de ação de Adão e o seduziu à morte. É claro que no Cristianismo esse motivo, esse quebra-cabeça cósmico, será completado, conduzindo da morte à salvação e à ressurreição. Como a Nova Eva, como a Hodogetria, a Mãe de Deus também nos convidará a saborear o fruto do conhecimento do Céu e da Terra pendurado no arco da cruz, seduzindo-nos também a morrer para nós mesmos, para que possamos comungar com Seu Filho.
Abrindo o caminho
A história não para por aqui. Mesmo o olhar mais superficial da história da Igreja nos mostrará mulheres sendo o precedente oculto dos homens em todos os momentos, aquelas cujos sussurros se escondem profundamente sob os relatos históricos públicos. São esposas, mães, avós, irmãs que, por seu exemplo, suas orações e gestos muitas vezes secretos, atraem seus filhos, maridos, irmãos e netos para a Igreja. A história começa já na Bíblia, com Santa Maria Madalena precedendo os apóstolos no encontro com Cristo ressuscitado.Há também a esposa de Pôncio Pilatos, enviando-lhe uma mensagem para não ter nada a ver com a condenação de Cristo. A esposa de Pilatos é um exemplo interessante, pois mais tarde será venerada como santa sob o nome de Santa Prócula (ou Procla). Ela também prepara o cenário para um padrão da "mulher real cristã" que precede a conversão do rei. Essa história é tão comum e é encontrada em tantas das principais conversões históricas que tudo o que posso dar é uma lista para o leitor explorar. Exemplos que pude encontrar incluem Santa Helena, a mãe de São Constantino, o Grande, o primeiro imperador romano cristão; Santa Olga, a avó de São Vladimir de Kiev, o primeiro rei cristão da Rus; e Santa Clotilde, a esposa de Clóvis, o primeiro rei carolíngio cristão.
Todas essas mulheres foram cristãs em primeiro lugar, abriram o caminho para Cristo e, embora o registro histórico nem sempre atribua as conversões à sua influência direta, o padrão está lá para aqueles que percebem o mistério. Outras mulheres precederão os grandes teólogos; esses exemplos incluem Santa Macrina, irmã dos padres capadócios São Basílio o Grande e São Gregório de Nissa, no Oriente, e Santa Mônica, mãe do Bem-Aventurado Agostinho, no Ocidente.
Espaço Sagrado
Como mencionei anteriormente, a noção do corpo como tendo suas raízes no feminino, no útero, tem extensões sociais. A extensão do espaço vital é a casa, a cidade e a igreja, vistas como femininas em suas representações. Observar essas extensões do corpo fornecerá a chave para enxergar muitas das ações das mulheres imperiais como uma importante raiz e proteção para a arte litúrgica no Cristianismo. Tudo começa com Santa Helena, Igual aos Apóstolos, mãe de São Constantino, que inicia a reconstrução de Jerusalém, definindo a forma da cidade e seus santuários, mapeando espacialmente a vida de Cristo por meio de uma série de igrejas na Terra Santa. Outro exemplo poderoso é como, durante os motins de Nika, em 532 d.C., quando uma multidão atacou o complexo do palácio, destruindo a igreja original de Haghia Sophia, o Imperador Justiniano quis fugir, mas foi a Imperatriz Teodora quem o convenceu a ficar, dizendo: "A Púrpura Real é o Sudário Mais Nobre". Que declaração poderosa, quase profética, reunindo a noção de vestimenta, cidade, sedução e a dualidade da morte. A reconstrução de Hagia Sophia se tornaria o modelo para as Igrejas Ortodoxas até hoje.Mas é na história dos ícones que encontramos os maiores exemplos do papel das mulheres na fisicalidade da Igreja e de sua arte. Assim como a Mãe de Deus estende Seu véu como proteção, durante todo o período da iconoclastia, foram as mulheres que preservaram a prática da iconografia em Constantinopla. Foi a Imperatriz Irene quem convocou o Sétimo Concílio Ecumênico que oficializou a veneração dos ícones, e foi Santa Teodora, esposa de Teófilo, quem finalmente restaurou os ícones no que passou a ser celebrado como a Festa da Ortodoxia.
Sabemos principalmente sobre Irene e Teodora e seu papel na restauração de ícones, mas Madre Nectária, que publica o Road to Emmaus Journal, escreveu um artigo maravilhoso no qual explica que não eram apenas essas duas, mas que esposas iconódulas eram escolhidas por imperatrizes iconódulas para seus filhos, criando assim uma corrente secreta de mulheres que preservavam a veneração dos ícones mesmo quando seus maridos eram hostis às imagens. Madre Nectária chega a sugerir, com argumentos convincentes, que a prática bizantina do "show de noivas", em que uma noiva para um imperador era escolhida por meio de uma espécie de concurso de beleza, pode ter sido uma estratégia para a imperatriz em exercício escolher uma esposa iconófila para seu filho. Se isso for verdade, toda a história se torna um poderoso tributo à beleza, à sedução e ao poder secreto do feminino na transformação do mundo.
Madre Nectária conta uma história maravilhosa do futuro imperador iconoclasta Teófilo abordando Santa Cassiana, que havia sido uma das possíveis futuras noivas escolhidas por sua madrasta em um show de noivas:
“Primeiramente atraído por Cassiana, o jovem imperador aproximou-se dela dizendo: ‘Por meio de uma mulher surgiram as coisas vis’, insinuando o pecado de Eva, ao que Cassiana respondeu: ‘E por meio de uma mulher surgiram as coisas melhores’, relembrando a Encarnação.”[7]
Descontente com esse comentário, o futuro imperador finalmente decidiu se casar com outra das candidatas, Teodora. Santa Cassiana mais tarde se voltaria para o monasticismo e se tornaria uma renomada abadessa e hinógrafa. Finalmente, embora o imperador Teófilo fosse o mais fervoroso dos iconoclastas, sua esposa Teodora restauraria definitivamente a veneração aos ícones após sua morte, provando de fato que “por meio da mulher surgiram as coisas melhores”.
A restauração dos ícones é, em muitos aspectos, uma "transformação das vestes de pele", pois todas essas imagens físicas, essas múltiplas versões dos protótipos invisíveis, estão sujeitas à morte, à decadência e à destruição. Mas as imagens também são o testemunho de Cristo e mostram como as vestes de pele podem se tornar vestes de glória, que a morte e a multiplicidade foram transformadas por Cristo em veículos de graça até os confins da terra. Este é o mistério do próprio Cristianismo: como o fim da sedução de Eva tornaria realidade, de uma só vez, tudo o que fora prometido, mesmo com má vontade. O homem morreria e se tornaria deus, um aspecto segurando o outro pela mão através do poder da cruz, que é tanto a árvore do conhecimento quanto a árvore da vida. A pergunta feita por Eva no Jardim seria finalmente respondida por completo, a lacuna aparentemente sem fundo estabelecida naquele momento primordial seria preenchida até transbordar por Cristo, que é tudo em todos.
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[1] Para mais exemplos dessas relações, veja Henry Macguire, Body, Clothing, Metaphor: The Virgin in Early Byzantine Art em The Cult of the Mother of God in Byzantium: Texts and Images, Ashgate Publishing. 2011.
[2] Diferentes exemplos ilustrarão a relação entre sedução, desejo e morte de múltiplas maneiras, o que exigiria maior aprofundamento. Mas uma lista resumida que vale a pena pensar incluiria as esposas de Abraão e Isaac sendo sequestradas por Abimelec (Gn 20,26. Neste exemplo, é mais a ameaça de morte e não a morte em si), o estupro de Diná (Gn 34), o esconderijo de Josué e Calebe pela prostituta Raabe (Js 2 Esta história é semelhante à de Jael, mas tem um final invertido, onde os inimigos ocultos não são mortos, mas sua própria cidade cai), Ester e a morte de Hamã (Est 7), Salomé e a morte de São João Batista (Mt 14), Judith e a morte de Holofernes (Judith 10-13). Há também versões não bíblicas importantes disso, a mais óbvia é a história da guerra de Troia.
[3] Para uma descrição de por que isso acontece e como o hebraico denota hospitalidade sexual, veja Thalia Gur-Klein, Sexual Hospitality in the Hebrew Bible: Patronymic, Metronymic, Legitimate and Illegitimate Relations, Routledge, 2014. p. 39
[4]Compare com João 12:23, 13:1, 17:1
[5] Mas o que transformar água em vinho tem a ver com a queda ou com a morte do homem? Para responder, precisamos considerar outro exemplo na Bíblia em que há uma transição clara entre água e vinho, e isso se encontra na origem bíblica do vinho. Após Noé sair da arca, quando as águas do dilúvio baixaram, ele plantou uma videira. Noé então se embriagou com o vinho que produziu, despiu-se e desmaiou. A história se desenrola como uma inversão da história do Jardim do Éden, pois Moisés, inconsciente e nu, torna-se uma pedra de tropeço para Caim, que contempla sua nudez e é amaldiçoado por seu gesto indecente. Isso restabelece a maldição e a queda que haviam sido brevemente contidas pela nova aliança do arco-íris feita com Deus. E assim o vinho de Noé, vindo após o dilúvio, torna-se o lugar da nova queda. O vinho também é uma versão interessante das vestes de pele, a tecnologia humana, visto que é feito invertendo o processo de decomposição contra si mesmo. O próprio processo de "morrer" da fruta, quando contido, cria uma bebida inebriante. Para entender tudo isso melhor, pode-se também refletir sobre os lugares na Bíblia onde a água é transformada em sangue, por exemplo, a primeira praga do Egito, que eventualmente levou à morte do primogênito, e à Páscoa, também os momentos finais de Cristo no Jardim, onde Ele transpira sangue.
[6] Hulagu não se converteu, mas ainda assim se retratou como o novo Constantino em sua iconografia.
[7] Madre Nectaria Mclees. Mostras de Noivas Bizantinas e A Restauração de Ícones, em Road to Emmaus #51, Outono de 2012, p.57
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